A música, a educação, os festivais e o banco de trás da Variant bege

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A música, a educação, os festivais e o banco de trás da Variant bege

Artigo publicado originalmente da Plataforma Educação&Participação

Por Paulo Padilha

Fui convidado a escrever este texto ressaltando a importância da música nos diferentes ambientes educativos ou, para ser mais preciso, para a educação integral de crianças, adolescentes e jovens.

Como cantor, compositor e professor de música há mais de 30 anos, claro que me sinto motivado a escrever sobre o assunto. Afinal, a paixão pela música e pela educação é um dos combustíveis da minha existência, além de ser minha conexão com a sociedade.

Foi por meio delas que encontrei um canal de inserção no mundo, venci uma timidez paralisante da adolescência e tornei-me alguém inimaginável para quem me conheceu aos 14, 15 anos de idade – e não foi fácil para mim descobrir esse canal, esse lugar. Acredito que encontrá-lo tenha sido uma das maiores conquistas da minha vida.

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Foto: Acervo CENPEC

Filho de engenheiro, aluno de uma escola considerada exigente e com colegas focados em se tornarem médicos ou engenheiros, ser músico era algo pouco provável – e pouco “aprovável” também – no meu rol de possibilidades profissionais. Não conhecia ninguém que exercesse a profissão, senão os artistas que ouvia e via no rádio e na tevê.

Meus amigos da rua riam ao me ouvir estudar violão enquanto eles jogavam bola. Os amigos da escola, apesar de não terem grande interesse pelo assunto, até que me encorajavam, mas aí era minha timidez que atrapalhava.

Vejam, porém, como são as coisas e as reviravoltas que a vida dá. Foi justamente dentro de uma escola conteudista, voltada quase que exclusivamente para o vestibular, que comecei a vislumbrar uma saída para meus dilemas. A porta de entrada foi um festival de música.


O festival era fora da grade curricular […] Mas mobilizou grande parte dos alunos que tinham afinidade com música. A partir daí, criei todo um novo círculo de amigos. Alguns deles acabaram enveredando pela carreira artística e são meus colegas de profissão até hoje.”


Organizado por um professor de Geografia com uma visão um pouco mais aberta do que a que escola propunha, o festival certamente era, para a direção, apenas uma atividade recreativa com o intuito de dar vazão a um pouquinho de subjetividade no “mar de objetividade” das disciplinas formais, evitando, assim, que os alunos tivessem alguma síncope por falta de acesso às artes.

A intencionalidade da escola ao propor a atividade, no que diz respeito à importância da música no currículo, era quase zero. O festival era fora da grade curricular, em um teatro fora da escola, no sábado e optativo, ou seja, era um festival “quase fora da escola”… Mas mobilizou grande parte dos alunos que tinham afinidade com música. A partir daí, criei todo um novo círculo de amigos. Alguns deles acabaram enveredando pela carreira artística e são meus colegas de profissão até hoje.

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Foto: Acervo CENPEC

É importante lembrar que, mesmo tendo vivido intensamente tudo aquilo, eu ainda não tinha coragem de assumir para mim mesmo que queria a música como profissão. Posteriormente, enquanto me aprofundava sem ter muita certeza de aonde aquilo me levaria, vaguei três anos por outras faculdades. Fiz Ciências Sociais num ano; no ano seguinte, cursei Educação Física! Bom, enfim, cheguei à Música e nela estou até hoje: sou compositor, gravo discos, faço shows e dou aulas em uma escola que tem música na grade curricular.

Conto essa história aos meus alunos do Ensino Médio e os vejo se identificarem com o personagem tímido que queria, mas, ao mesmo tempo, tinha vergonha de tocar na frente dos colegas. Vejo seus olhos brilharem, entreolharem-se com cumplicidade quando falo da minha primeira banda. Vejo também a identificação quando falo da minha indecisão diante das escolhas profissionais. Vejo um elo se criando, uma porta de comunicação abrindo-se entre nós, e a educação e a arte se aproveitando dessa brecha para realizarem sua principal missão: a de transformar as pessoas.

Sim, educação e arte são muito parecidas nesse aspecto, e a música é um importante instrumento para criarmos elos fundamentais na relação ensino-aprendizagem. Afinal, por si só, a música é uma área riquíssima de conhecimento humano.


Dotada de tradições milenares, a música pode ser utilizada para a aprendizagem sobre outras culturas e tempos históricos. Trata-se, portanto, de uma área do conhecimento com a grande vantagem de unir simultaneamente habilidades cognitivas, expressivas, sensíveis, motoras e também de contextualização histórico-cultural e socialização.”


Aprender ritmos, os compassos e a notação musical, por exemplo, ajuda a desenvolver o raciocínio lógico e matemático. Utilizar um instrumento de percussão, cordas ou teclas traz vantagens para o desenvolvimento psicomotor, e os de sopro, na prática, propiciam exercícios respiratórios. Cantar estimula a expressão pessoal e também é importante para o desenvolvimento da linguagem e a dicção. Dotada de tradições milenares, a música pode ser utilizada para a aprendizagem sobre outras culturas e tempos históricos. Trata-se, portanto, de uma área do conhecimento com a grande vantagem de unir simultaneamente habilidades cognitivas, expressivas, sensíveis, motoras e também de contextualização histórico-cultural e socialização.

Por que não contar a história de um determinado local a partir das canções escritas sobre ele? Por que não aliar conteúdos de Língua Portuguesa e Literatura às letras escritas por grandes artistas? No simples ato de cantar em grupo, quantas aprendizagens diferentes podem ser envolvidas? Memória, atenção, afetividade, coletividade, contextualização, expressão, interpretação expressiva, interpretação de texto, repertório, rima, poesia, escuta, relação entre música e letra, emissão vocal, percepção rítmica e melódica, afinação, entre outras.

No caso do festival, além de todas essas, temos habilidades ligadas ao protagonismo e o trabalho em grupo e ainda podemos envolver alunos em tarefas ligadas à organização do evento, divulgação e produção, além de apontarmos para possibilidades profissionais que podem ser importantes.


Gostaria de encorajar vocês, professores, a continuar incorporando, com paixão, intencionalidade e clareza de seus objetivos didáticos,  festivais e cantorias no ambiente da educação integral.”


Fazendo uma retrospectiva, penso que tive a sorte de ter uma ótima educação musical – mas isso não se deu na escola. Desde meus mais tenros anos, ouvi um repertório imenso e fascinante de canções que minha mãe cantava, alimentando uma tradição de oralidade que vinha de sua origem baiana, e que era acompanhado por meu pai, batucando com a aliança no volante da nossa Variant bege. Nesse caso, assim como no festival, também não havia uma clara intencionalidade educativa, apenas uma intuição e paixão.

Hoje, porém, consigo enxergar aprendizagens desenvolvidas em atividades como: aulas instrumentais e de canto, oficinas, bandas, visitas a espetáculos e até mesmo a associação de conteúdos musicais com outras disciplinas, e espero inspirar você, professor, a propô-las aos alunos ou à instituição, sabendo da relevância de cada uma delas para a formação de seus alunos. Gostaria de encorajá-los a continuarem incorporando a música, festivais e cantorias com paixão, intencionalidade e clareza de seus objetivos didáticos no currículo da educação integral.

Não pretendo apresentar estatísticas, pesquisas, ou citar autores e educadores que comprovem minha tese. Contei um pouco do meu percurso pessoal e confesso que ainda me soa estranho, a esta altura do campeonato, fazer a defesa de algo que, para mim, é bastante claro. Considerando-se, porém, as últimas notícias sobre a reforma do Ensino Médio, vejo que ainda temos muito a conversar sobre música, educação e desenvolvimento integral.

Conclusão: tantos anos atrás das carteiras escolares, mas as experiências educacionais que mais me comovem, nas quais me reconheço e desenvolvi habilidades e competências que me definem como cidadão até hoje, foram adquiridas no festival “quase fora da escola”… E no banco de trás da Variant bege. É hora de os professores de todas as disciplinas defenderem essa potência da música para a educação integral.

Por isso, gostaria de encorajar vocês, professores, a continuar incorporando, com paixão, intencionalidade e clareza sobre seus objetivos didáticos, festivais e cantorias no ambiente da educação integral.


Paulo Padilha

Graduado em Música pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP), cantor, compositor e professor de música há mais de 25 anos. Ministra um curso de Música na grade curricular do Ensino Médio da Escola Vera Cruz, na capital paulista, unindo de maneira original a prática musical a uma pequena história da canção brasileira no século XX. Tem canções gravadas por Simone, Daúde, Palavra Cantada, Suzana Salles, Juçara Marçal, entre outros. Foi por 15 anos baixista fundador do Aquilo Del Nisso, grupo de música instrumental criado nos anos 1980. Tem quatro CDs solo: Cara legal (Velas, 1997), Certeza (Dabliú, 2001), Samba deslocado descolado samba (Dabliú, 2006) e Na lojinha de um real eu me sinto milonário (Borandá, 2013).


Veja também:

Reportagem: Música na educação integral

Canção é explosão: texto de Paulo Padilha