As novas linguagens e a educação: entrevista com Lucia Santaella
Como as tecnologias digitais estão afetando as formas de conhecimento e as relações humanas, entre elas a educação? Confira entrevista concedida pela especialista em semiótica Lucia Santaella em 2014.
Por Lilian Romão, para a Plataforma do Letramento (Cenpec)
As tecnologias da comunicação e o mundo digital estão alterando profundamente a dinâmica da vida em sociedade. Sociedade pós-humana, cultural digital, convergência das mídias, linguagem ubíqua, hipermídia, hipertexto. Por mais que esses termos estejam presentes no cotidiano, inclusive na educação, eles são ainda muito nebulosos.
Aliás, essa é uma das maiores queixas que professoras(es) atualmente: muitas vezes, estudantes, via celular, têm a atenção voltada a outros ambientes e temas de seu interesse, disputando espaço com a sala de aula e as propostas pedagógicas.
Para tratar desse e de outros assuntos relacionados à questão das tecnologias digitais na educação, conversamos com Lucia Santaella, pesquisadora e professora de comunicação, especialista em semiótica que tem lançado, durante sua trajetória, reflexões e profundas análises sobre as linguagens humanas, os meios e suas transformações.
📖 Semiótica é o estudo dos signos, ou seja elementos que representam um significado e sentido para as sociedades humanas, incluindo linguagens verbais e não verbais.
Lucia acompanha de maneira muito próxima a relação das tecnologias digitais e suas influências culturais na sociedade. “Ela tem um currículo tão grande que é capaz de travar o navegador de quem o acessa na internet”, disse o saudoso ator e apresentador Antônio Abujamra para descrevê-la em sua entrevista no programa Provocações, em junho de 2010 na TV Cultura.
Natural de Catanduva, interior de São Paulo, Santaella é uma das pesquisadoras brasileiras com maior reconhecimento no meio acadêmico, não só nacional como mundial. É professora titular no programa de pós-graduação em Comunicação e Semiótica e coordenadora do programa de pós-graduação em Tecnologias da Inteligência e Design Digital da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Tem mais de 20 livros publicados, mais de 200 artigos em periódicos nacionais e internacionais. Em 2011, recebeu o Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro (CBL), pelo livro A ecologia pluralista da comunicação.
O reconhecimento acadêmico e intelectual da professora pós-doutora é inegável, principalmente na área de semiótica e comunicação. Seu livro, Comunicação ubíqua: repercussões na cultura e na educação, lançado em 2013, traz importantes reflexões e inquietações sobre a área da educação.
Para Santaella, a revolução digital não está apenas transformando os formatos de comunicação. Seus estudos apontam para a necessidade permanente de reflexão sobre as modificações pelas quais o ser humano vem passando em contato com as tecnologias, modificações “não apenas mentais, mas também corporais, moleculares” (SANTAELLA, 2003, p. 31).
Diante desse contexto, o “digital” está criando uma nova linguagem humana, que mistura o visual, o verbal e o sonoro. No que ela chama de mundo pós-humano, a comunicação não depende mais de diferentes suportes, como o papel, a TV, o rádio, pois o ciberespaço se apropria de todas as linguagens anteriores, criando uma identidade própria e lhe dando uma nova configuração.
Quais são os desafios da escola na tentativa de acompanhar tantas mudanças? Como se comunicam, aprendem, interagem os alunos que estão chegando às escolas hoje?
Na entrevista a seguir, concedida em 2014 à Plataforma do Letramento (Cenpec), Lucia Santaella fala das tecnologias da linguagem, das modificações que sofreram ao longo do tempo e dos desafios lançados aos educadores e à escola diante do atual cenário das convergências das mídias, da revolução digital e da relação mutante do humano com a máquina.
Confira abaixo:
Portal Cenpec: Que desafios as novas tecnologias impõem aos educadores em sua formação?
Lucia Santaella: Tecnologias que importam para a educação são tecnologias de linguagem. A primeira tecnologia de linguagem é o aparelho fonador, que se instalou em nosso próprio corpo por uma questão de sobrevivência adaptativa da espécie humana. Era essa tecnologia que se empregava nas sociedades tribais para a transmissão das narrativas necessárias à preservação de suas culturas. Um grande avanço se deu com a implantação do alfabeto no mundo grego, quando se instaurou a escrita no mundo ocidental. É devido a isso que estamos lendo os gregos até hoje.
Outro avanço ocorreu com a invenção da prensa manual de Gutenberg (em meados do século XV), que possibilitou a criação disto que passamos a chamar de livro: linguagem impressa em folhas sequenciais de papel encadernado. A explosão do livro viria com a revolução industrial no século XIX, que permitiu a aceleração da impressão em máquinas rotatórias.
Foi também no século XIX que surgiu o modelo de escola que atravessou uma boa parte do século XX, um modelo cada vez mais adaptado ao desenvolvimento de competências e especializações para atender às necessidades do mercado de trabalho capitalista. Trata-se de um modelo escolar baseado na atomização dos campos do conhecimento e centrado no saber do professor e na transmissão desse saber por meio de exposições orais e livros-textos.
Com o advento do rádio e da televisão, que são meios não apenas noticiosos, mas, sobretudo, de entretenimento, a escola e especialmente o livro começaram a sofrer a competição dessas tecnologias de linguagem mais rápidas e mais afeitas a repertórios de informação médios, inclusive acessíveis a pessoas de baixa escolaridade. Essa competição não chegou a abalar o modelo escolar vigente. Ambos passaram a conviver em paralelo. Foi essa época que viu nascerem processos de ensino complementares via TV educativa, com eficácia bastante discutível.
Foi só a partir dos anos 1990, quando a cultura do computador passou a cada vez mais fazer parte da vida da sociedade em geral, que surgiriam as grandes revoluções nas tecnologias de linguagem, com o manancial de desafios que estão trazendo para os modelos tradicionais de educação.
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Portal Cenpec: Quais dificuldades de aprendizagem essas novas tecnologias podem ajudar a superar?
LS: As exigências são mais profundas. Estamos assistindo a mudanças não apenas nos suportes das linguagens, mas nos modos de formar das linguagens humanas. Alguns comparam a revolução digital com a revolução de Gutenberg. Grande equívoco. Lá se tratava apenas de uma mudança técnica no registro da escrita, do manual ao reprodutível. A linguagem do nosso tempo, entretanto, é a hipermídia, que não se reduz a uma transformação apenas no seu registro.
Antes de tudo, é preciso considerar o grande impacto revolucionário que se deu quando a escrita saltou do papel para a tela eletrônica. Por sua natureza, o computador permite que a escrita se liberte da linearidade sequencial, obrigatória no papel, podendo estruturá-la em nós que se conectam através de links, o que é chamado de hipertexto.
🎞️ A invenção do livro: imaginem as possíveis dificuldades que um leitor da época medieval se deparou quando o livro tomou o lugar do rolo? Talvez tantas quantas vivem as pessoas não habituadas ao ambiente digital! É o que mostra, de forma divertida, o vídeo ao lado:
Além disso, o computador é uma metamídia, mídia que absorve e deglute todos os tipos de linguagens humanas, de imagens − fixas ou animadas, gráficos, mapas etc. − e também de linguagens sonoras − fala, música, ruído etc. Como se não bastasse, longe de simplesmente somar essas linguagens, o computador mistura textos, sons e imagens. Isso é chamado de hipermídia. Os links nos levam não apenas a outros textos, mas a misturas de texto escrito, imagem e som. Ora, as consequências disso não são poucas, pois um novo modo de formar as linguagens implica transformações cognitivas relevantes.
Esses desafios estão exigindo uma transformação radical no modelo educacional herdado do século XIX, pautado no livro e na transmissão do saber. Isso não significa reinventar a roda da educação, entregando-se ao último grito das tecnologias, mas sim traduzir o passado, trazê-lo para um presente reinventado segundo os potenciais que as novas tecnologias digitais apresentam.
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Portal Cenpec: Como as(os) docentes podem trabalhar com um público leitor amplamente conectado, diante das novas vivências de letramento e oralidade, incentivado principalmente pelos recursos tecnológicos?
LS: Aqui precisamos colocar alguns pingos nos is. Antes de tudo, não aprovo essa nomenclatura de “letramento”. Sei que é uma tradução do inglês literacy, mas, tanto em inglês como em português, essa terminologia, que contém a palavra “letra”, não esconde seu linguocentrismo. A linguagem das redes e dos aplicativos a que temos acesso de qualquer lugar e a qualquer hora contém letras, mas estas deixaram de ter a exclusividade quase absoluta de que gozavam nos livros. Por que, então, chamar de letramento algo que não tem mais muito a ver com a lógica que é própria das letras? Não se trata aí de mera implicância de uma semioticista. Trata-se, isso sim, de reconhecer que estamos diante de um novo tipo de linguagem humana que é preciso ser encarada sem saudosismo, especialmente nos ambientes de escolaridade.
Ligada a essa questão, encontra-se outra que lhe é paralela: a oralidade. Passamos por um período de segunda oralidade bastante proeminente no que foi e continua a ser chamado de cultura de massas, ou seja, o cinema, o rádio e a televisão, quando a oralidade própria da fala emergiu nesses meios de comunicação com uma força notável. Nas redes computacionais, contudo, a oralidade, embora possa estar presente, não é tão forte quanto nos meios de massa. Hoje navegamos pelas redes, sem que diálogos orais estejam necessariamente presentes.
As crianças e os jovens que estão nas escolas hoje apresentam um processamento mental bastante distinto daqueles que não tiveram acesso à hipermídia. Isso é feito a qualquer tempo e em qualquer lugar, basta ter nas mãos um computador, tablet ou celular para navegar nas redes.
A grande características dessas redes é ser ao mesmo tempo um meio de informação e de entretenimento, ou seja, infotenimento. Portanto, é o modelo escolar que tem de se reestruturar à luz desse novo meio e desses novos processos cognitivos.
Não tenho receitas prontas para que as(os) professoras(es) possam lidar com esses seres humanos cognitivamente transformados que estão nos espaços escolares contemporâneos. Penso, inclusive, que receita não é o que precisamos agora, mas sim de projetos sérios, bem fundamentados e bem planejados, que envolvam as escolas na sua totalidade. Trata-se, como já disse, de se enfrentar uma necessária renovação, uma grande reviravolta no modelo de escolaridade que herdamos do passado.
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Portal Cenpec: Quais as principais características da aprendizagem na rede que o professor pode explorar nas práticas de letramento?
LS: Hoje, a educação formal, aquela que se desenvolve nas escolas, tem de aprender a conviver e criar estratégias de complementaridade com aquilo que chamo de aprendizagem ubíqua (SANTAELLA, 2013).
É um tipo de aprendizagem que, para obtermos, basta ter um celular nas mãos. Qualquer curiosidade acerca de qualquer tema pode ser saciada instantaneamente, sem a presença de nenhum mestre.
Além disso, uma vez que os equipamentos móveis estão também conectados a redes de relacionamento, pode-se contar com a colaboração de amigos mais sabidos sobre o assunto quando surgem dúvidas. Já existem projetos para incorporar esse tipo de aprendizagem aos planejamentos da educação formal.
Isso não significa que a escola deva abdicar de suas estruturas mais sistemáticas de aprendizagem, confiando à aprendizagem ubíqua tarefas que não podem deixar de ser suas. As novas tecnologias estão aí para enriquecer os processos de aprendizagem. Estamos em época de somar e não de diminuir. Ademais, é preciso levar em conta que a aprendizagem ubíqua é dispersiva, descontínua. Se ela não for complementada com processos mais sistemáticos, ninguém se especializa em coisa nenhuma.
📖 Ubíquo: que está ou existe ao mesmo tempo em toda parte; onipresente. É um adjetivo pouco corrente na nossa fala, mas que qualifica fenômenos muito presentes no cotidiano.
Por exemplo: quando falamos com uma pessoa ao vivo pelo celular ou computador ou acessamos informação de qualquer lugar, a qualquer momento, essa ação gera uma presença simultânea, tanto no lugar físico que ocupamos, como no ambiente virtual.
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Portal Cenpec: Quais estratégias as(os) professoras(es) podem usar para formar leitoras(es) fluentes no hipertexto ou com base no hipertexto?
LS: As(Os) estudantes já estão formadas(os) nesse modo de ler. Praticam a todo instante, desde a mais tenra infância, antes da alfabetização já são exímios na arte de tocar as telas em busca de infotenimentos que lhes interessam. Reconhecem os ícones, as pistas, os movimentos, antes que tenham qualquer familiaridade com as letras do alfabeto. O desafio da escola hoje é outro: neutralizar os saltos de galho em galho próprios das redes pelos exercícios de paciência, sem os quais não há aprendizagem duradoura.
Abujamra entrevista a professora que ama os livros e gosta da televisão brasileira. Assista à entrevista de Lucia Santaella no programa Provocações, da TV Cultura, abaixo:
Referências
SANTAELLA, Lucia. Da cultura das mídias à cibercultura: o advento do pós-moderno. Revista Famecos, Porto Alegre, dez. 2003, p. 23-32. ______. Comunicação ubíqua: repercussões na cultura e na Educação. São Paulo: Paulus, 2013. Conferência proferida pela Prof.ª Dr.ª Lucia Santaella (PUC/SP) durante o 4º Simpósio Hipertexto e Tecnologias na Educação. Recife, nov. 2012. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=vzlhvVHLE1s. Acesso em: 28 ago. 2014.
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