Artigo de Paola Prandini publicado originalmente na plataforma Educação&Participação
Por Paola Prandini
A escola, como um local que reproduz aquilo que é vivenciado no dia a dia das pessoas, tradicionalmente cedeu espaço para que a população negra a adentrasse – ressaltando que essa população está, na maioria dos casos, nas escolas públicas brasileiras. Todavia, não possibilitou e ainda não possibilita, muitas vezes, que haja oportunidades cotidianas para que compreendam suas identidades e para que, quando ainda crianças, aprendam a se amar e a valorizar suas ancestralidades afrodiaspóricas.
Tal perspectiva configura uma proposta de educação para a alteridade, para a igualdade de dignidade e de oportunidades, uma proposta democrática ampla que, conforme o percurso histórico e as relações culturais estabelecidos em sociedade, trata do desafio de respeitar as diferenças e de integrá-las em uma unidade que não as anule, mas que ative o potencial criativo da conexão entre diferentes agentes e seus respectivos contextos, levando em conta o pertencimento a um grupo étnico-racial.
A promulgação da Lei Federal nº 10.639, em 2003, determinou o ensino de História e cultura afro-brasileira e africana como parte dos currículos já existentes nas escolas dos ensinos Fundamental e Médio de todo o país. No entanto, essa ação não é resultado de uma empreitada recente. Desde a irrupção dos movimentos de caráter identitário (voltados para questões de gênero, etnia e sexualidade) no cenário do processo de redemocratização do país, educadores(as) e pesquisadores(as) discutem a necessidade de inclusão da História e das culturas africanas e afro-brasileiras na grade curricular das escolas públicas e privadas e de outras ações para o combate ao preconceito e à discriminação racial no Brasil.
Já na década de 1960, alguns estudos apontavam para a necessidade de discutir e superar os estereótipos acerca da população afrodescendente presentes nos livros didáticos. Depois da Constituição de 1988, cujo processo incentivou os debates em torno do respeito à diversidade étnico-racial e à pluralidade cultural na sociedade brasileira, essa discussão foi incorporada à formulação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB – Lei nº 9.394) de 1996. A LDB contém um conjunto de determinações que dialogam com as antigas bases disciplinares, com base em uma abordagem transversal, contemplando as reivindicações e propostas de amplos setores da sociedade civil organizada em movimentos sociais, étnico-raciais e de gênero.
Para muitos espaços educativos, dialogar sobre as negritudes presentes em seu cotidiano é tarefa prevista apenas para o mês de novembro ou sequer está presente e/ou transversaliza o planejamento curricular dessas instituições.”
Sofremos com o silêncio sobre o racismo nas diversas instituições educacionais em razão de uma histórica orientação eurocêntrica. Já se passaram 13 anos desde a aprovação da Lei Federal nº 10.639/03 e os avanços foram pontuais e esparsos. Instaurar uma cultura de valorização da consciência negra na escola depende de uma total perda de conceitos pré-formulados e ultrapassados do papel dos(as) educadores(as) e de seus (suas) educandos(as). Afinal, para muitos espaços educativos, dialogar sobre as negritudes presentes em seu cotidiano é tarefa prevista apenas para o mês de novembro ou sequer está presente e/ou transversaliza o planejamento curricular dessas instituições.
Nesse sentido, parece possível afirmar que o indivíduo, quando inserido em uma sociedade em que o racismo é algo generalizado – tido como “natural” e institucionalizado – tende a compreender a discriminação racial, por exemplo, como algo que não é prioritário e até mesmo imutável, muitas vezes. Por esse motivo, defendemos, aqui neste texto, a presença dos discursos e das práticas antirracistas dentro e fora desses espaços educativos, a fim de construir espaços em que o convívio entre as diferentes personagens da sociedade brasileira possa ocorrer de forma justa e o mais distante possível de práticas discriminatórias e excludentes.
A coragem de travar microrrevoluções dentro e fora dos espaços educativos não pode faltar a educadores(as) brasileiros(as) comprometidos(as) com uma sociedade antirracista.”
Não é sem razão que a eficácia da ideologia racial dominante em nosso país se manifesta, por diversas vezes, na ausência do conflito racial aberto, em que negros(as)² não são “explicitamente” atacados(as), mas impingidos(as) de um racismo cordial cortante baseado na ideia de que se o(a) negro(a) não alcançou os mesmos direitos da pessoa branca, o problema é do(a) negro(a) e não do(a) branco(a).
A coragem de travar microrrevoluções dentro e fora dos espaços educativos não pode faltar a educadores(as) brasileiros(as) comprometidos(as) com uma sociedade antirracista. Para esse grupo, o exercício da alteridade – ou seja, da construção de identidades a partir da relação com o outro e com o mundo – e da dialogicidade passam a ser poderosas ferramentas para o enfrentamento de problemas que, muitas vezes, se apresentam ideologicamente minimizados em uma sociedade que se autoconsidera uma “democracia racial”.
Por esse motivo, defende-se que a aplicação da Lei Federal nº 10.639/03 seja realizada de forma educomunicativa nos ambientes escolares, a fim de possibilitar a entrada em um universo que, muitas vezes, pode ser alheio a quem o adentra, colaborando para uma mudança de visão em relação à temática referente à população negra, não o tratando como “externo”, mas com base em conceitos que se tornam familiares, numa tentativa de construir identidades afirmativas.
Nesse sentido, é necessário que haja um maior preparo dos(as) profissionais que estão em sala de aula, pois são eles(as) os(as) responsáveis por abordar as temáticas de cultura negra em seus cronogramas curriculares. Além disso, é igualmente importante que essa aproximação dos conteúdos prescritos na Lei Federal nº 10.639/03 seja feita de forma agradável e atraente e, se possível, por meio da utilização dos preceitos educomunicativos, a fim de que possam adquirir conhecimentos sobre cultura negra, tendo como base o conhecimento de primeira mão e, como pilares, o diálogo, a democracia e a transdisciplinaridade.
Outro desafio para os(as) educadores(as) é trabalhar o currículo de forma que a aula não seja desestimulante ou que ela apenas reproduza os produtos da comunicação, como vídeos, programas de rádio etc. Por isso, eles(as) têm que conhecer e entender, com profundidade e clareza, o potencial educativo das mídias e a necessidade de a escola se apropriar coletiva e criticamente das tecnologias da informação e da comunicação (TICs). Outro fato importante a ser considerado é a necessidade de conhecer o projeto pedagógico da escola, o contexto da comunidade e a experiência docente, a fim de reforçar os valores solidários e democráticos da comunidade escolar.
A cultura negra tem que passar a fazer parte de todo o currículo das escolas brasileiras, sejam elas privadas ou públicas. […] A contribuição do que poderíamos chamar de cultura afro-brasileira não se resume a capoeira, feijoada e carnaval.”
Afinal, conforme prerrogativas da Lei Federal nº 10.639/03, a cultura negra tem que passar a fazer parte de todo o currículo das escolas brasileiras, sejam elas privadas ou públicas. Por um lado, é necessário que as contribuições da cultura africana para as diversas culturas existentes no mundo sejam parte do maior número de disciplinas possível, englobando desde as séries iniciais, como as que compõem a Educação Infantil, até as séries que correspondem ao Ensino Médio. E de outro, é salutar ter em mente que a contribuição do que poderíamos chamar de cultura afro-brasileira não se resume a capoeira, feijoada e carnaval.
O processo pode ser mais lento do que nossa ansiedade almeja, mas é preciso continuar as lutas que já foram iniciadas e abrir espaço para novos enfrentamentos para romper com o que está dado e possibilitar a descolonização efetiva do currículo e do pensamento dominantes.
Nesse sentido, a AfroeducAÇÃO, a partir das bases conceituais e das práticas da educomunicação, busca, desde 2008, atuar em prol de uma educação antirracista levada a sério, com ações que estão organizadas em torno da cultura e da comunicação.
Fundadora da empresa social AfroeducAÇÃO. Mestra em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP) e integrante da Comissão dos Jornalistas pela Igualdade Racial (Cojira-SP). Sócia fundadora e integrante do Conselho Científico Deliberativo da Associação Brasileira de Pesquisadores e Profissionais em Educomunicação (ABPEducom), também faz parte do Núcleo de Comunicação e Educação (NCE) da USP. Autora dos livros Cruz e Sousa, publicado pela Selo Negro Edições (2011); e Carolinas (2014), em parceria com o fotógrafo Diego Balbino, além de coautora do livro Eu sou Ilê (2012) e cotradutora de Batidas, rimas e vida escolar: pedagogia hip-hop e as políticas de identidade, publicado pela Editora Vozes (2014). Facebook, Instagram e Twitter: @afroeducacao.
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