Porto Alegre: educação integral se faz com a articulação das escolas e organizações sociais

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Porto Alegre: educação integral se faz com a articulação das escolas e organizações sociais

Conheça a experiência educação integral desenvolvida entre 2016 a 2019 na capital gaúcha nesta reportagem da Plataforma Educação&Participação (Cenpec/Itaú Social)

“A educação é direito de todos e dever do Estado e da família.”

Assim diz o artigo 205 da Constituição Federal. Mas como garantir plenamente o direito à educação? Qual o melhor caminho para isso?

Esta reportagem especial mostra a experiência de Porto Alegre (RS) que, durante 3 anos, desenvolveu uma política de educação integral baseada na articulação entre escolas públicas e organizações sociais para garantir o desenvolvimento integral de crianças, adolescentes e jovens.

Eu vejo muitos avanços no que diz respeito à garantia de direitos, políticas públicas. Mas, ao mesmo tempo, há muitas famílias em situação de vulnerabilidade que nos acionam para que suas crianças possam fazer parte de nossa organização. As nossas portas sempre estão abertas porque vemos que a educação integral contribui com a formação cidadã e que tanto as organizações como as escolas são fundamentais para isso.”

Daniela Modesto
Daniela Modesto: “Meu trabalho é também uma forma de retribuir toda a formação e apoio que a entidade me deu quando eu era uma das crianças atendidas”.

Daniela é assistente social e há cinco anos trabalha no Centro de Educação Profissional São João Calábria. Porém, seu vínculo com a entidade vem desde que ela era criança. “Eu conheço o Calábria há muito tempo, desde minha infância. Moro na comunidade há 35 anos e sempre participei das atividades da entidade, então o vínculo é muito forte”, explica.

Fundado em 1962, o Centro contribui para o desenvolvimento das pessoas em situação de vulnerabilidade, por meio da acolhida e da formação humana, profissional e cidadã. “Antes, conhecíamos como Escola Calábria, mas hoje o Centro é uma instituição social, porque deu conta de uma demanda da comunidade”, explica a assistente social.

Após terminar sua graduação em Assistência Social, Daniela voltou a participar da organização já como assistente social. Ela acompanha as atividades das crianças e, principalmente, faz um trabalho com as famílias das crianças e adolescentes do Centro.

Depois da minha formação profissional, poder retornar para cá é muito especial. Como profissional, trabalhar na garantia de direitos, na formação cidadã e, especialmente, com as famílias da região em situação de vulnerabilidade é mais do que gratificante. Sempre vou a campo, faço visitas domiciliares. Faço tudo com muito amor e dedicação, já que meu trabalho é também uma forma de retribuir toda a formação e apoio que a entidade me deu quando eu era uma das crianças atendidas.”

Daniela Modesto

Ao todo, o Centro atende 140 crianças e há três anos é parceira do Programa Cidade Escola, responsável pela implementação de políticas de educação integral de Porto Alegre (RS) e, por meio dele, desenvolve diversas atividades com crianças de três escolas públicas.

Carla Ferraz, do Centro de Educação Profissional São João Calábria e responsável pelas ações do Programa Cidade Escola na instituição, explica:

O principal objetivo do programa é o reforço de numeramento e letramento. Além disso, temos outras ofertas, atividades de esportes, de informática e lanches rápidos. Sempre procuramos saber a necessidade dos alunos e também temos contato com as escolas para saber as atividades que os educandos estão tendo e, dessa forma, relacionar as atividades da escola com as nossas.”

Carla Ferraz

A educadora de letramento da organização, Mônica Mendes, explica que na organização as crianças aprendem por meio da ludicidade.

As crianças aprendem a ler e escrever ao, por exemplo, brincar de pular corda, elas soletram palavras à medida que acertam a brincadeira e, dessa forma, desenvolvem não só o letramento, como a fala também. Essa é a riqueza da educação integral.”

Mônica Mendes

Assista ao vídeo sobre as ações da organização:


Assessoria à Política de Educação Integral de Porto Alegre: articulação entre escolas e organizações

A atuação do Centro de Educação Profissional São João Calábria no desenvolvimento da educação integral em Porto Alegre é uma das pontas para que essa política seja efetivada, que também depende do trabalho realizado pelas escolas de Ensino Fundamental do município.

Para articular esses dois atores da educação integral, construindo um trabalho mais integrado, o governo municipal de Porto Alegre (RS) e a Fundação Itaú Social, sob a coordenação técnica do Cenpec, vem desenvolvendo há três anos um trabalho de formação de educadores, coordenadores pedagógicos e gestores de escolas e organizações que participam do Programa Cidade Escola.

Objetivo

A iniciativa, chamada Assessoria à Política de Educação Integral de Porto Alegre, tem como objetivo principal “conseguir integrar o trabalho das entidades conveniadas e o das escolas. Identificar os pontos de convergência entre eles e atuar sob o ponto de vista da política educacional, e também da política pedagógica”, afirma Solange Feitoza, do Cenpec.

Conceitos e práticas

Os parâmetros que orientam a formação focaram a investigação de temas ligados a políticas públicas, aprendizagens e educação integral. A ideia é possibilitar que conceitos e práticas se alinhem, criando estratégias combinadas que reflitam os princípios estipulados pela educação integral.

Reflexão

De forma colaborativa e propositiva, foram promovidos ciclos de encontros que estimulam a reflexão e o aprofundamento de assuntos relativos ao trabalho e à contribuição desses diferentes agentes educativos.

Resultado

Ao final de todo esse processo, a iniciativa construiu, com educadores e gestores de organizações e da rede de educação do município, o Plano de Educação Integral de Porto Alegre. Lançado no Seminário de Educação Integral, que aconteceu no fim de novembro deste ano, o documento apresenta elementos do amplo espectro da educação integral, desde o histórico, os fundamentos e as bases conceituais, às metas e estratégias para a implantação e avaliação dessa política.


Educação integral: a escola aberta para a comunidade

Se por um lado as organizações acompanham e promovem a aprendizagem de crianças, adolescentes e jovens durante suas atividades durante o período em que estão fora das escolas, estas também precisam exercer seu papel para que a educação integral seja efetivada.

De acordo com o Plano de Educação Integral de Porto Alegre, “a escola assume o papel de articuladora e gestora de espaços, tempos e conhecimentos”. Segundo a coordenadora pedagógica da Escola Municipal Nossa Senhora de Fátima, Márcia Centeno, a educação integral foi se desenhando aos poucos na rede de ensino. “Cada escola possui características próprias. Aqui vimos quais eram as demandas dessa comunidade, o que despertava o interesse dos alunos e o que poderíamos desenvolver”, explica.

Ela conta que na escola são desenvolvidas diversas atividades de esportes, já que na região não há áreas de lazer. “Nossa vila é considerada uma das mais violentas e por isso os pais não deixam seus filhos frequentarem os poucos espaços públicos”, conta.

Para ela, a escola tem de estar aberta à comunidade. “Antes os alunos invadiam a escola para usar a quadra. Com as oficinas de esportes, como a de vôlei, não é preciso mais fazer isso. Foi uma mudança muito grande não só para a escola como para a comunidade. A escola é o espaço dessa comunidade, ela tem um papel social e os projetos da rede [educacional] vieram para isso, para que os alunos e a comunidade estivessem aqui dentro, aprendendo e transformando o contexto”, explica.

Além das atividades de esporte, que contam com aulas de hóquei, judô, basquete, vôlei entre outras, a escola realiza oficinas de xadrez, robótica e jornal. “Além das oficinas, temos a oferta de aulas em turno integral, na qual as turmas ficam na escola mais tempo. Pela manhã eles têm a carga horária de aulas regulares, e à tarde os alunos são acompanhados por um professor-referência, que faz um trabalho mais lúdico. Nessas turmas integralizadas, temos uma parceria com a Feci (Fundação de Educação e Cultura do Sport Club Internacional), em que se desenvolvem aulas de numeramento, letramento e esporte para quatro turmas, das 12h às 15h”, diz a coordenadora.

Há também uma preocupação da escola com o currículo integrado. “Fazemos a construção de currículo junto com a Feci. Não é só a gente estender a carga horária, é estender com qualidade. O aluno tem que querer estar aqui dentro, fazer a atividade”, conta ela.

Para Márcia, são claros os resultados das ações integradas. “Nós vemos o crescimento dessas crianças, principalmente com relação à alfabetização. Nossas crianças de primeiro ano já estão todas alfabetizadas, toda a turma está sabendo ler e escrever. Nós não tínhamos isso antes.”


Educação integral – Escola Municipal Nossa Senhora de Fátima

Conheça um pouco mais sobre as ações de educação integral que acontecem na Escola Municipal de Ensino Fundamental Nossa Senhora de Fátima. Assista ao vídeo:


Seminário: reflexões sobre a experiência de três anos promovendo a educação integral

“A educação integral nos dá a oportunidade de pensar que uma outra educação é possível, e problematiza a hierarquia dos conhecimentos e traz a reflexão da ampliação do tempo na escola.” Assim disse Romualdo Portela, professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, durante sua fala no Seminário: Perspectivas para a Educação Integral em Porto Alegrerealizado no dia 25 de novembro nessa cidade. Ele marcou o fechamento de um ciclo de formação da Assessoria de Educação Integral, uma parceria da Fundação Itaú Social com a Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegre, sob a coordenação técnica do Cenpec, e lançou o Plano de Educação Integral, com base nessa experiência.

No Seminário, Romualdo fez uma análise sobre as políticas públicas e os desafios da educação brasileira. Segundo ele, o país conseguiu avançar a cobertura da rede, no acesso à educação, contudo, a aprendizagem não muda. “Na década de 1930 não havia escolas para todos. Então, a política era investir na construção de escolas. A partir da década de 1970, a exclusão era caracterizada pela reprovação, ou seja, de 100 crianças que começavam o 1º ano do Ensino Fundamental, apenas 22 delas concluíam a etapa. Hoje, com as políticas de combate à reprovação, 75% das crianças não reprovam. Porém, as taxas de aprendizagem são muito ruins, isto é, metade das crianças que chegam ao 9º ano do Ensino Fundamental apresentam a aprendizagem de 5ª série”, explica.

Nesse contexto, o professor vê na educação integral uma oportunidade para transformar a educação e, consequentemente, a aprendizagem. Para ele, é preciso mexer no que ele chamou de “caixa preta” da escola, em suas práticas. Nesse caso, a educação integral pode trazer alguns caminhos para enfrentar esse desafio.

“Se a gente quer dialogar com a criança, o adolescente e o jovem, tudo tem que ser interessante. É possível ensinar Português e Matemática cativando as crianças? Sim, e nós conhecemos quem faz”, disse.

Currículo na Educação Integral

Na medida em que propõe o pleno desenvolvimento de crianças, adolescentes e jovens, a educação integral precisa dialogar intimamente com propostas curriculares que contemplem a ampliação e a integração de saberes; o território; os tempos e espaços; e a gestão democrática.  

Saiba mais na Temática Currículo e Educação Integral.

Ainda que a educação integral traga novas propostas metodológicas para a aprendizagem, já que trabalha com novas áreas do conhecimento e problematiza a questão da hierarquia das disciplinas, o professor, contudo, chama a atenção para a ampliação do tempo nas escolas. Segundo ele, é preciso ter o cuidado para não ampliar também o problema. “Se o problema existente nas escolas não foi debatido e permanecer, ele será aprofundado nas escolas de tempo integral”, explica.

De acordo com Ocimar Alavarse, professor da Faculdade de Educação da USP, que também participou do Seminário, é preciso ir além da ampliação do tempo. “Não é só esse problema, temos que nos atentar para a qualidade desse tempo escolar, como usamos esse tempo”, explica.

Para isso, segundo ele, é preciso rever a função social da escola e olhar para novos sujeitos da educação. “A educação integral propõe a ampliação do tempo escolar, incorpora o fato de que o espaço físico da escola não basta e fala sobre novos conteúdos também. Porém, há uma tradição de que a escola tem como sujeitos privilegiados os professores e os alunos, mas a educação integral apresenta a articulação com o novo sujeito, o educador de entidades conveniadas. Eles se veem como parte do processo?”, argumenta.

Parceria

Ao defender o pleno desenvolvimento de crianças, adolescentes e jovens, a perspectiva de uma educação integral propõe a cooperação de outros atores e espaços educativos além da escola.

Saiba mais na Temática OSC e escola pública: garantia de educação integral


Currículo articulado em Porto Alegre

O encontro também trouxe a reflexão sobre o currículo escolar na educação integral, com base na experiência de três anos de assessoria em Porto Alegre. Nesse sentido, Cláudia Valentina Galian, professora da Faculdade de Educação da USP, apresentou os principais elementos de uma publicação sobre o tema que será lançada em breve.

“O documento traz a história e a legislação referente à política de educação integral da cidade e está dividido em três partes: aspectos teóricos; pesquisa nas escolas e proposições de orientações curriculares. É um texto de estudo, que chama a atenção tanto para a produção acadêmica quanto para questões da rede”, explica.

Para ela, uma das preocupações é a ampliação das demandas escolares. “É preciso reconfigurar os tempos e saberes, articular as experiências da escola regular com o período complementar, integrando esses dois currículos”, diz.

Entre os aspectos positivos observados no estudo, Galian destaca para a mudança na relação entre os sujeitos com as escolas. “Percebemos que há um maior interesse em aprender. Os professores experimentam novas ações no tempo ampliado e isso é visto em uma melhor aprendizagem dos alunos”, conta.

Para Luciane Swirsky, da Escola Municipal de Educação Integral Afonso Guerreiro Lima, a experiência e as reflexões sobre educação integral na capital gaúcha não devem se encerrar no seminário. “Tanto o estudo sobre currículo, como o Plano de Educação Integral devem chegar em cada sala de aula, em cada professor, em cada aluno da rede e fazer parte da nossa história”, explica.

Veja os relatos de quem participou do processo de formação que culminou na entrega do Plano de Educação Integral de Porto Alegre durante o seminário:


Plano de Educação Integral: dos fundamentos às estratégias para implantação e avaliação dessa política em Porto Alegre

A construção do Plano teve início no primeiro semestre de 2016, quando a Secretaria Municipal de Educação iniciou um processo de discussão − com o apoio da Fundação Itaú Social e do Cenpec − reunindo cerca de 40 educadores que atuam nas escolas e nas entidades conveniadas, além de técnicos e coordenadores da Secretaria, para narrar suas experiências acerca desse universo, bem como discutir as necessidades e as perspectivas da educação integral à luz de rigoroso referencial teórico e das demandas emergentes nesse segmento.

As discussões em torno do tema consideraram as ideias de estudiosos sobre experiências que vêm sendo implementadas no país, contribuindo para a elaboração dessa proposta de educação integral, sem perder de vista a necessidade de atualização do currículo, da dinâmica escolar e dos parceiros, bem como a função da escola nos dias atuais.

Dividido em dez capítulos, o documento apresenta elementos do amplo espectro da educação integral, desde o histórico, fundamentos e as bases conceituais, às metas e estratégias para a implantação e avaliação dessa política.

“Trata-se, contudo, de um processo em construção para o qual, certamente, o diálogo com profissionais da educação, com alunos e seus responsáveis apontará medidas de aperfeiçoamento”, descreve a publicação.

De acordo com o documento, a educação integral visa “ampliar o processo formativo, o que pressupõe, a ampliação da jornada escolar e a reestruturação do currículo, superando as limitações constatadas na escola de tempo parcial, em sintonia com a perspectiva formativa assumida”.

Nessa perspectiva, de acordo com o Plano, a escola assume o papel de articuladora e gestora de espaços, tempos e conhecimentos. É na escola, ou nas instituições com as quais ela faz parceria, que os estudantes vão se deparar com novos desafios de aprendizagem e de socialização.

Para isso, o Plano estipula seis metas que vão desde a qualificação da política de recursos humanos para o atendimento da educação integral até a melhoria da estrutura interna das escolas.

Plano de Educação Integral

Conheça os objetivos e metas propostos no Plano Municipal de Educação Integral de Porto Alegre. Baixe aqui a publicação.


Créditos

TEXTOThais Iervolino
VÍDEOVanessa Nicolav
ENTREVISTASThais Iervolino e Vanessa Nicolav
FOTOSVanessa Nicolav
TRATAMENTO DE IMAGENSSuélio Silva e Thiago Luís de Jesus