Primeira reportagem do especial Educação Integral & Novas Tecnologias, publicado originalmente na plataforma Educação&Participação
Vanessa Nicolav
A educação integral, na perspectiva de formação integral do aluno, deve estar voltada para as diversas dimensões do ser humano, entre elas as novas formas de comunicação e expressão. Desenvolver habilidades para acessar, processar e produzir informações no contexto da cultura digital é uma das grandes demandas nos processos educativos hoje.
A questão que se coloca é: como implementar estratégias pedagógicas que, além de considerar as múltiplas dimensões do indivíduo, busquem integrar as novas linguagens por meio das tecnologias de informação e comunicação (TIC). Diferentes posicionamentos ecoam nas discussões sobre o tema: por um lado, é comum considerarem as novas tecnologias como salvação da educação e, por outro, muitos apontam a falta de acesso e o uso descontextualizado como alguns dos desafios fundamentais a serem superados para o desenvolvimento dos alunos.
Para abordar as possibilidades e os desafios do uso da tecnologia nas práticas da educação integral, elaboramos o especial Educação Integral & Novas Tecnologias, dividido em duas reportagens.
Esta primeira problematiza, por meio de pesquisas e entrevistas com especialistas, o desafio da inserção das TIC nas práticas de educação e como elas podem ser uma estratégia para o desenvolvimento de ações de educação integral. A segunda parte do especial apresenta experiências com o uso das tecnologias.
Escolas analógicas, alunos digitais
O Brasil é um dos países mais conectados do mundo. Segundo a recente pesquisa “Connected Consumers Are Not Created Equal: A Global Perspective” [Consumidores conectados não são todos iguais: uma perspectiva global], além de mais de 50% da população do país ter acesso à internet atualmente, são os brasileiros os que mais tempo ficam conectados à rede no mundo todo. A média de tempo de navegação é de 5 horas por dia.
Entre a população brasileira, o público cujo acesso à web mais cresceu é de crianças, jovens e adolescentes. Segundo pesquisa divulgada recentemente pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br), 8 em cada 10 crianças, adolescentes e jovens brasileiros entre 9 e 17 anos usuários de internet costumam acessar a rede pelo celular todos ou quase todos os dias.
Esse cenário mostra a transformação das relações sociais promovidas pelo desenvolvimento das tecnologias da informação e, consequentemente, pelo aumento da interação e comunicação.
Contudo, o uso dessas tecnologias tão comuns entre crianças, adolescentes e jovens ainda não é uma realidade no cotidiano das escolas, que muitas vezes trabalham prioritariamente com dinâmicas de baixa interação e inovação.
Assista ao vídeo Uma escola entre as redes sociais, da Universidade Federal Fluminense (UFF), que reflete sobre estas questões.
Pesquisa sobre o uso de tecnologias na escola
Comparada ao mundo [de hoje] todo tecnológico, a escola parece meio parada, parece não… fica um pouco parada para eles [os alunos].”
“Nós estamos em um mundo onde as crianças são ‘excitadas’ o tempo todo. Por que na escola tem que haver uma atenção focal? A gente precisa usar isso [a tecnologia] dentro da sala de aula como um facilitador da aquisição do conhecimento.”
As frases acima, que são de professoras e aparecem em uma pesquisa sobre o uso das tecnologias na escola, refletem questionamentos e dificuldades vividos nas escolas brasileiras. Desenvolvida pelo Núcleo de Comunicação e Educação da Universidade de São Paulo (NCE/USP), essa pesquisa foi coordenada por Richard Romancini, doutor em Ciências da Comunicação pela USP, e realizada por estudantes de uma disciplina da Licenciatura em Educomunicação da ECA/USP.
Segundo Romancini, é praticamente consenso entre os professores a necessidade de adaptar métodos à realidade do aluno da era digital. Neste estudo, a maioria dos docentes reconhece a falta de formação para a implementação de práticas pedagógicas com uso de tecnologias, além de outros desafios. “No âmbito mais macro, as jornadas de trabalho em diferentes escolas, por vezes com sobrecarga de trabalho e os baixos salários, classes com número excessivo de alunos, também são mencionados com frequência como limitadores de ações inovadoras.”
Os relatos da pesquisa também revelam a existência de uma série de questões de infraestrutura que, mesmo tendo melhorado sensivelmente nos últimos anos, estão longe de serem ideais.
Nem sempre as escolas possuem equipamentos ou serviços de apoio adequados. Alguns professores notam que, pela falta/quebra de uma peça em algum dispositivo, seu uso pode ficar inviabilizado por bastante tempo. As conexões à internet geralmente são lentas e não favorecem que todos os alunos usem a rede ao mesmo tempo.”
Richard Romancini
As impressões do pesquisador estão corretas. Segundo a pesquisa TIC Educação de 2013, 71% das escolas públicas já têm acesso à internet sem fio, um aumento de 14% em relação ao ano anterior. Porém, a qualidade de acesso ainda é precária – 52% das escolas públicas declararam ter uma conexão de até 2 MB.
Boas práticas
Apesar das condições restritas, é possível trabalhar conteúdos educativos com o uso de tecnologias digitais às quais todos têm acesso. Um desses exemplos aconteceu em Afogados da Ingazeira, município no sertão de Pernambuco.
Pensando em uma forma de atrair a atenção de seus alunos – que mesmo em região distante das grandes metrópoles têm aparelhos celulares e acesso à internet –, a professora Patrícia Amaral propôs a 70 alunos, de duas classes do 9º ano, o estudo da disciplina de Língua Portuguesa, por meio do uso de mídias digitais.
Percebemos que nossos alunos possuíam bastante interesse e conhecimento das mídias. Sempre gostavam muito de apresentar músicas, vídeos. Aí, nós unimos o letramento sobre questões da comunidade e o potencial e interesse que os alunos já tinham.”
Patrícia Amaral
O projeto, nomeado Curta Poesias, envolveu o estudo dos poemas de Dedé Monteiro, reconhecido poeta local, com base em atividades que trabalhavam os conteúdos programáticos, mas também a aquisição de novas habilidades, como pesquisa sobre o histórico do poeta, entrevista, oficina de roteiro, captação de imagem e gravação e edição som. A ideia era, ao final, editar os curtas-metragens produzidos pelos alunos.
A ideia, acolhida pelos estudantes, tinha o intuito de, além de estimular outras habilidades e formas de criar conhecimento, aproximar dois extremos que fazem parte da vida dos alunos – os meios digitais e a cultura popular.
“Estamos longe dos grandes centros e a conexão de internet não é de qualidade, mas eles têm esse acesso. Alguns dos alunos têm conhecimento, sabem construir um blog, conhecem editores de vídeo como o Movie Maker”, conta a professora.
Segundo ela, as dificuldades apareceram principalmente no início do processo, mas as soluções logo foram encontradas pelo grupo. A apresentação do projeto à comunidade escolar foi uma das etapas fundamentais para seu funcionamento. As habilidades técnicas que a professora não detinha foram trazidas por outros professores que, de forma coletiva, auxiliaram Patrícia nas formações com os alunos e também na proposta de diferentes análises do conteúdo estudado.
“Para mim foi um desafio, porque eu não conhecia muito esses programas. Então eu tive que pesquisar. Usei a apostila da TV Escola. Contei com uma oficina para produção de roteiro. O professor de História, que tem um conhecimento bom sobre a produção de vídeo, me ajudou e, nas aulas de informática, ele também dava um suporte”, conta ela.
Novas aprendizagens e o Mais Educação
A escola na qual Patrícia trabalha está inscrita no Programa Mais Educação, do governo federal, que propõe às escolas a expansão da carga horária e também a ampliação de oportunidades educativas que promovam formações mais abrangentes e atualizadas para os alunos de hoje.
Dois dos macrocampos dessa política nacional são destinados a atividades que contemplam a aquisição desses novos conhecimentos e habilidades: uma prevê atividades de inclusão na Cultura Digital, e outra é voltada para práticas de Educomunicação (elaboração de jornais, revistas, rádio, TV dentro das escolas).
Segundo Patrícia, a oferta de novos conteúdos e oportunidades de aprendizagem dentro das escolas é fundamental, principalmente para grupos e localizações com pouco acesso.
“A maioria dos alunos que atendemos é de uma classe social baixa. Eles não têm acesso a cinema, até pela própria localização do município. Nesse sentido, o Mais Educação ajuda, pois agora eles têm acesso a musica, aulas de flauta e também um grupo de teatro. A gente entende que é fundamental aproveitar essas horas para ampliar as oportunidades de cultura e educação”, diz a professora Patrícia.
Richard Romancini alerta, porém, para a importância de se pensar os modelos deeducação integral como o Mais Educação não apenas com práticas educativas “mais do mesmo” (isto é, somente aulas de reforço ou o conteudismo já conhecido).
Para o professor, uma das vantagens do uso das tecnologias na escola é justamente a exploração de novas aprendizagens, novos processos educativos, que têm em vista o desenvolvimento pleno dos sujeitos no mundo atual, e não a adequação a conteúdos estáticos.
“Propostas que envolvam a educação integral são fundamentais para melhorar a educação no Brasil, dar novos sentidos às práticas pedagógicas, aproximar a escola de seus contextos e da vida dos alunos”, considera.
Desse modo, segundo Richard, elas se tornam uma oportunidade para o desenvolvimento de práticas no contexto da educação formal, que envolvem a “aprendizagem social”, que ele classifica da seguinte forma:
1) colaborativa, com os participantes trocando aprendizagens entre si; 2) contextualizada em tarefas e fazeres que envolvem o domínio de determinados conhecimentos; 3) com ênfase em domínios relacionados a campos identitários reais e não “escolares”.
Novos letramentos e aprendizagem social
Na visão dos pesquisadores Colin Lankshear e Michele Knobel, as novas tecnologias não são percebidas como “salvação” nem como “perdição” para o aprendizado – escolar ou não –, mas sim numa dupla perspectiva, como parte de um novo contexto social, que provoca mutações no próprio estatuto do saber e como possível instrumento para promover o aprendizado social – entendido como aquele que se conecta a zonas de experiência reais em contextos estabelecidos, nos quais os indivíduos interagem buscando resolver problemas, enfatizando, assim, mais o aprender a ser do que o aprender sobre.
A professora Patrícia acredita que seus alunos adquiriram senso de responsabilidade, comprometimento, ampliação nas competências leitoras, na capacidade de transcrição da linguagem oral para a escrita e que foi um aprendizado amplo, tanto para os alunos, como para ela e toda comunidade escolar. A professora finaliza acreditando que novas aprendizagens são possíveis quando não se teme a inovação.
A gente tem que se inquietar com nossa falta de informação. Quando a gente busca caminhos, a gente encontra. Encontra através da internet, foi lá que encontrei os cursos, sobre como elaborar um projeto. Quando a gente conversa com um colega da nossa escola que também tem muito a compartilhar. Tem que se inquietar e buscar. E depois vai valer a pena você planejar, porque assim você vai ver o resultado do seu trabalho.”
Patrícia Amaral
Saiba mais
Conheça a coleção Ensinar e Aprender no Mundo Digital, que apresenta propostas didáticas para incorporar as tecnologias ao currículo escolar por meio de uma abordagem interdisciplinar
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