Por Jorge Miguel Marinho
Fabular é preciso, fabular faz parte da natureza humana, fabular é um modo de ser que acorda em cada um de nós o apelo ao sonho, a necessidade da fantasia, a vivência da imaginação. Ninguém consegue viver sem conviver com momentos de fabulação, que na arte literária acontece do feliz casamento do sonho com o real. E é nesse jogo de contar e imaginar a vida surpreendida pelo poder encantatório e inventivo da ficção que o ato de fabular revela como o mundo é e como o mundo poderia ser.
Por isso mesmo a fabulação humaniza, não só por estar sempre voltada para a condição humana, mas também, e talvez sobretudo, por atender à carência de fantasia como contraponto da inteligência lógica, que faz da realidade um território árido e carente de imaginação.
Para viver e sobreviver, é preciso sonhar, e sonhar com palavras é um modo de reinventar a vida e fazer da existência um lugar de descobertas e de revelações.
São muitas as formas de fabulação como prosa ou poesia: o conto, a novela, a peça de teatro, a história em quadrinho, a canção, a anedota, o causo e tantas outras. Todas elas ganham forma e cor por força do imaginário, que faz parte da natureza humana e, no universo literário, é sempre experiência criativa no gesto de quem escreve, no movimento de quem lê.
Existe uma historieta, “A fábula do oleiro”, que identifica o traço lúdico de quem fabula como aquele que brinca, que se diverte, que subverte as normas, que reinventa a vida e sonha nas palavras o sonho de todos. Sugerindo mais do que afirmando, o fabulador diz:
Uma criança se aproxima de um oleiro que molda bonecos no barro e pendura as estatuetas num varal para secar. Chega perto, admira os seres enfileirados, fica fascinada com a perfeição daquelas pequenas criaturas que se multiplicam nos movimentos exatos das mãos do escultor. Mesmo assim, pergunta:
– Por que você está fazendo tantos bonecos, se o mundo já está cheio de gente?
E o oleiro, sem tirar os olhos e as mãos do trabalho, responde:
– É para preencher os vazios da vida, e não faz mal nenhum equilibrar as criaturas de barro com os homens reais.”1
Esta breve narrativa, que se afasta da fábula de ensinamento e se oferece como matéria de indagação, mostra como a fabulação presente na arte literária joga a favor da vida e extrai do sonho e da fantasia um modo de corrigir o real. O ato de fabular ou recriar o universo busca preencher o que o mundo tem de falta ou de carência, anunciando de forma muito expressiva um mundo onde todos devem inventar criaturas para “preencher os vazios da vida” com o exercício da fabulação.
É aqui que a literatura entra como um direito de todos e um componente essencial para uma vida motivada pelo equilíbrio harmonioso entre porções do real e porções da fantasia. Sem o sonho de fato ou o sonho presente no espaço da fabulação, seria impossível viver.
O professor Antonio Candido identifica o ato de sonhar como enseada necessária para a existência do ser:
Assim como todos sonham todas as noites, ninguém é capaz de passar vinte e quatro horas sem alguns momentos de entrega ao universo fabulado. […] E durante a vigília a criação ficcional ou poética […] está presente em cada um de nós, analfabeto ou erudito, como anedota, causo, história em quadrinhos…”2
Muitos escritores e estudiosos reconhecem que a fabulação pulsa nas camadas mais profundas do homem e ele precisa transitar no universo da fabulação para viver a experiência lúdica da literatura, sonhar sonhos possíveis e impossíveis, fazer o trajeto da fantasia para existir. É bom lembrar alguns:
“Fabular é uma questão de saúde”, diz Deleuze.
“Quanto é melhor quando há bruma/ Esperar por Dom Sebastião quer ele venha ou não”, insiste Fernando Pessoa.
“Invente uma canção de roda para que o povo cante, principalmente as crianças”, confirma Thiago de Mello.
“O que interessa mesmo não é a noite em si, são os sonhos. Sonhos que o homem sonha sempre”, celebra William Shakespeare.
“Sonhe com aquilo que você quer ser/ Porque você possui apenas uma vida”, clama Clarice Lispector.
Apenas uma palavra final: a fabulação sempre se anuncia como uma voz coletiva que oferece palavras e cores acolhedoras e revela “um mundo onde todos sonham”.
1 Fábula popular recriada por mim em A maldição do olhar. São Paulo: Biruta, 2008, p. 112.
2 CANDIDO, Antonio. “O direito à literatura”. In: Vários escritos. São Paulo/Rio de Janeiro: Duas Cidades, 2004, p. 174-5.
Professor de Literatura Brasileira com pós-graduação pela Universidade de São Paulo (USP), coordenador de oficinas de criação literária, dramaturgo, roteirista, ator, pesquisador de componentes lúdicos na crítica literária com os livros Nem tudo que é sólido desmancha no ar – ensaios de peso e A convite das palavras – motivações para ler, escrever e criar, autor de livros de ficção literária, entre eles, Te dou a lua amanhã – uma biofantasia de Mário de Andrade e Lis no peito – um livro que pede perdão, premiados com o Jabuti. Jorge Miguel Marinho faleceu em junho deste ano.
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