- José Alves
Por João Marinho e Vanessa Nicolav
O ano era 2012 quando a então adolescente Rosana Maria Martins, moradora da comunidade quilombola de Vargem do Inhaí, situada a cerca de 70 km do centro de Diamantina (MG), foi convidada a participar do Conselho Municipal de Jovens e Adolescentes do Meio Rural de Diamantina, o COMJAMRD.
“Fui representar a comunidade de Vargem e os jovens de lá. O Conselho tem vários núcleos temáticos, principalmente relacionados a políticas públicas. Na minha comunidade, que fica na zona rural, falta muita informação, conhecimento, tem defasagem de ensino. Com o Conselho, já participei de oficinas, mesas redondas com autoridades, com o vice-prefeito, secretário de Educação, professores de universidade… Depois, como representante, levo tudo para Vargem. Fazemos uma reunião em um rancho, em um domingo à tarde, por exemplo, e a comunidade fica por dentro dos assuntos. Falamos muito sobre desemprego, ingresso na universidade, o fato de termos de nos mudar de onde moramos para trabalhar e estudar, de direitos dos quilombos, que as próprias pessoas da comunidade não sabiam quais eram”, conta.
Criado em 2006, O COMJAMRD é uma iniciativa do Projeto Caminhando Juntos (Procaj), uma organização da sociedade civil (OSC) que hoje atende 53 comunidades rurais de Diamantina, no Vale do Jequitinhonha, e cerca de 5,4 mil pessoas, entre crianças, adolescentes, jovens e adultos. “O COMJAMRD surgiu a partir da necessidade de dar voz aos jovens que vivem nas comunidades rurais (…) e vivem silenciados, invisíveis à sociedade. As informações são concentradas nos jovens da cidade, da zona urbana. Os da zona rural não tinham acesso a elas”, explica a coordenadora da OSC, Joariza Conceição de Souza Santos.
O Conselho, que hoje tem 104 representantes de 14 a 24 anos eleitos pelas comunidades em um sistema proporcional, de acordo com o número de habitantes de cada uma, e paritário – dois homens e duas mulheres –, é uma instância ao mesmo tempo formativa e deliberativa.
No início, eles [Executivo e Legislativo] ficaram assustados: de repente, viram jovens da zona rural falando de Plano Plurianual (PPA), controle social, exigibilidade de direitos… Hoje, têm um grande respeito pelo Conselho.”
Joariza Santos, coordenadora da organização Projeto Caminhando Juntos – Procaj
“Vou ficar até quando eu puder”
Por meio dos diferentes núcleos temáticos, que realizam oficinas com duração média de três dias, os jovens do COMJAMRD discutem e aprendem assuntos que vão de políticas públicas e legislação – como orçamento público, organização comunitária e Lei Orgânica do município –, até equidade de gênero, drogas, sexualidade e doenças sexualmente transmissíveis (DSTs).
O processo tem ainda uma característica multiplicadora: além de levar os temas à comunidade, cada jovem precisa replicar o que aprendeu para outros seis jovens, que posteriormente são convidados a participar da próxima oficina. “Eles mesmos promovem encontros nas comunidades e, em cada uma, temos um educador social que acompanha os encontros, a elaboração de relatórios, a avaliação do processo e dos resultados”, explica Joariza.
Para além das discussões sobre políticas públicas, sempre realizadas, os temas tratados nas oficinas são escolhidos pelos próprios jovens e contam com o apoio e suporte de diferentes parceiros, como a Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM) – já estiveram presentes representantes dos cursos de Nutrição, Economia, Educação Física, Enfermagem, entre outros –, o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente de Diamantina (CMDCA), o Conselho Tutelar e até o Programa Polícia e Família, lançado em Diamantina no ano de 2013 pelo 3º Batalhão de Polícia Militar (PM).
Ao final de cada oficina, os jovens podem apresentar suas necessidades e de suas comunidades e propor demandas. O Procaj promove, então, encontros com o Executivo e o Legislativo municipais, a fim de que os jovens e adolescentes dialoguem com os políticos e essas demandas cheguem ao poder público. Dessa forma, o COMJAMRD constitui uma verdadeira experiência de gestão democrática.
Para Rosana Martins, hoje com 21 anos de idade, o COMJAMRD tem permitido o empoderamento não apenas dos jovens, mas das comunidades em que vivem. A estudante cita como exemplo o autorreconhecimento como quilombola e a participação da comunidade de Vargem do Inhaí no 4º Encontro de Comunidades Afrodescendentes, realizado em novembro de 2015. “Antes, as pessoas nem sabiam explicar o que era comunidade”, conta.
Ela vê como positiva a abertura do poder público, mas precisa melhorar: muitas soluções ficam no campo das promessas – porém isso não é motivo para desistir. “Você pretende ficar até quando no Conselho?”, perguntamos. “Até quando eu puder”, respondeu Rosana, sem hesitar.
“Acreditávamos que a democracia era um valor consolidado”
O que vem a ser, porém, essa tal gestão democrática? No artigo “A gestão democrática na escola e o direito à educação”, publicado na Revista Brasileira de Política e Administração da Educação em setembro de 2007, Carlos Roberto Jamil Cury, professor do Departamento de Educação da PUC Minas, inicia a discussão pelo significado da palavra “gestão”. Para ele, “a gestão democrática implica o diálogo como forma superior de encontro das pessoas e solução dos conflitos”.
Dentro desse princípio, é possível vivenciar a gestão democrática nas mais diferentes esferas do Estado, da sociedade civil organizada, da vida em comunidade. No Brasil, ela encontra respaldo legal, por exemplo, na discussão sobre os Planos Diretores das cidades e no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) – e também nas políticas e processos que envolvem a escola pública e a educação integral.
“Gestão democrática envolve a compreensão de que aprendemos a participar participando e de que podemos ser sujeitos de nossa própria história e construir novas realidades mais justas e sustentáveis”, escreve Ângela Antunes, diretora pedagógica do Instituto Paulo Freire, no artigo “Gestão democrática para a qualidade social da educação”, publicado na revista Presença Pedagógica em julho de 2015.
A participação é condição para a gestão democrática: uma não é possível sem a outra.”
Regina Vinhaes Gracindo (“A escola inclusiva e a gestão democrática”. Revista Educação Municipal, ano 16, n. 7, dez. 2004)
Na medida em que toma a democracia como valor e a participação social como fundamento, o conceito de gestão democrática é essencial para a educação integral.
O Guia Políticas de Educação Integral informa que a gestão é um importante aspecto a se analisar na implementação de políticas de educação integral e deve ser potencializada em espaços coletivos de reflexão: “Essa é uma oportunidade especial para compartilhar o significado do acesso à educação integral como questão de direito inalienável de crianças e adolescentes”.
Segundo Alexandre Isaac, coordenador do Núcleo de Educação Integral do CENPEC Educação, a gestão democrática é condição fundamental para a educação integral e pode se realizar tanto no âmbito da macropolítica, na definição de políticas públicas de educação; quanto na micropolítica, na discussão e definição do projeto político-pedagógico da escola, por exemplo.
Ele alerta ainda para o contexto político atual, em que crescem iniciativas que procuram restaurar práticas autoritárias e representam um desafio para a gestão democrática. “Acreditávamos, erroneamente, que a democracia era um valor consolidado nas diferentes instâncias, no trabalho, na sociedade, do ponto de vista do discurso.” Confira a entrevista em vídeo.
Os sentidos da educação integral
O especial “Educação integral: um conceito em busca de novos sentidos” aprofunda por que os conceitos de cidadania e o reconhecimento de crianças, adolescentes e jovens como sujeitos de direitos são necessários para a educação integral. Confira.
“Você não passa por uma experiência de gestão democrática sem que isso transborde para sua vida”
Especialista em gestão e avaliação de projetos e integrante do Núcleo de Educação Integral do CENPEC Educação, Solange Feitoza Reis destaca que a gestão democrática é importante por promover a estabilidade e o fortalecimento das políticas e instituições públicas, além do empoderamento do indivíduo.
No entanto, se a gestão democrática pode se realizar tanto na macropolítica quanto na micropolítica, como ela de fato ocorre no Brasil?
Além dos aspectos cognitivos, a relação entre gestão democrática e educação integral ocorre na medida em que, ao defender o pleno desenvolvimento dos educandos, a educação integral trata de inserir crianças, adolescentes e jovens no mundo de maneira cidadã.”
Solange Feitoza, do Núcleo de Educação Integral do CENPEC Educação
O mecanismo de consultas públicas é uma das possibilidades. Um dos exemplos recentes nesse sentido tem sido a discussão em torno da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Aberto à consulta pública até o último dia 15 de março, o documento preliminar da BNCC recebeu mais de 12 milhões de contribuições para seu aprimoramento, e uma segunda versão deve ser publicada em abril.
Durante o processo, mais de 300 mil indivíduos, organizações e escolas se cadastraram no site para debater a proposta de um currículo nacional para a educação. Desse total, cerca de 208 mil eram professores e mais de 4 mil eram organizações. As escolas cadastradas chegaram a quase 45 mil.
Para além das consultas públicas, no entanto, o cidadão pode integrar os processos de gestão democrática por meio da participação em conselhos municipais, como o Conselho de Alimentação Escolar (CAE), o Conselho de Acompanhamento e Controle Social do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) e o Conselho Municipal de Educação (CME), ou ainda, localmente, nos Conselhos de Educação e grêmios estudantis.
Os avanços e retrocessos da gestão democrática na educação e na escola pública brasileiras, a relação com a educação integral e a participação nos conselhos e grêmios são temas da entrevista em vídeo com Solange Feitoza. Confira.
“Temos que admitir que fazer educação não é só técnica: envolve política”
Na esfera da micropolítica, portanto, da unidade escolar tomada individualmente, também é possível haver gestão democrática – e há vezes em que o convite vem da própria direção escolar.
Foi assim na Escola Estadual (EE) João César de Oliveira, em Diamantina (MG), uma das parcerias do já citado Procaj e grande vencedora nacional, com essa OSC, da 11ª edição do Prêmio Itaú-UNICEF, com o Projeto Eu, Você e a Escola: Educação que Transforma.
A gestão democrática na escola entra em cena sobretudo depois da Constituição de 1988, no sentido de como essa gestão poderia incorporar os princípios da Constituição em favor de seus cidadãos.”
Regina Estima, coordenadora de projetos do CENPEC Educação
A diretora da EE João César, Eliane Sales Pereira, assumiu o posto em 2007 e observou as dificuldades por que a população do distrito de Inhaí, onde se localiza a escola, passava. “Estamos localizados em uma região de vulnerabilidade: a escola fica num distrito rural. Quando chove e o Rio Jequitinhonha enche, os córregos transbordam e não tem como sair: ficamos ilhados. O acesso a escola, lazer, saúde, era sempre mais difícil. Muitos jovens desistiam e iam para o garimpo. O Procaj já vinha realizando trabalhos com as famílias da comunidade. Então, nós os convidamos a trabalhar juntos na perspectiva de, na escola, trazer para as crianças uma ação global e melhorar esse acesso: trouxemos órgãos médicos, universidades, tiramos documentos, veio pessoal da nutrição, Senac, tivemos oficinas de cuidados pessoais… Tudo para oferecer esse sentimento de direitos à comunidade”, conta Eliane.
A direção, no entanto, deu um passo além e passou a investir na participação das famílias para definir os rumos da escola. Foi aberto um canal de diálogo com os pais, que, aos poucos, passaram a participar dos projetos e eventos. Hoje, a EE João César de Oliveira conta com assembleias deliberativas e um Colegiado Escolar do qual participam representantes de todos os segmentos da escola: pais, alunos, professores e funcionários. “O Colegiado auxilia em tudo que vamos fazer, com ideias, reclamações etc. Realizamos reuniões semanais com a equipe pedagógica e mensais com o Colegiado”, explica Eliane.
Os resultados são animadores. De brigas constantes nos recreios a professores ameaçados de agressão por pais de alunos, hoje as crianças, adolescentes e jovens têm passe livre para conversar com a direção, e os pais participam ativamente das reuniões, com expressiva adesão inclusive na definição do projeto político-pedagógico (PPP) da escola.
A participação no PPP é outro mecanismo de que a gestão democrática dispõe aos interessados. Sobre isso, comenta a especialista Regina Estima, gerente de projetos com educação do CENPEC Educação e autora da frase que abre este tópico. Assista.
Parceria, democracia e educação integral
· Quer saber mais sobre o potencial da parceria entre OSC e escola para a educação integral? Confira o especial “Organização da sociedade civil e escola pública: garantia de educação integral“;
· O Procaj e a EE João César realizaram uma ação de valorização do Prêmio Itaú-Unicef em 18 de fevereiro, da qual participaram cerca de 450 pessoas no auditório da reitoria da UFVJM. Na presença de convidados e autoridades, a ideia foi mostrar agradecimento a todos que contribuem para a parceria e divulgar os resultados do Projeto Eu, Você e a Escola: Educação que Transforma. E o encontro rendeu frutos: já há outra escola interessada no projeto, e as ações devem começar entre abril e maio. Confira aqui a galeria com as fotos do evento.
Estudo de caso: a cidade de Irupé
Viver a gestão democrática é uma meta e um princípio de quem apoia e trabalha com educação integral– mas como começar o processo? Como introduzir o assunto para os interessados e trazê-lo para a realidade de crianças, adolescentes e jovens?
Nossa experiência tem demonstrado o quanto o jovem, o adolescente e a criança, quando potencializados, são capazes de mudar o status e causar uma revolução no espaço que ocupam.”
Norma Sueli de Souza Carvalho, supervisora da organização Lar Fabiano de Cristo
Uma das experiências nesse sentido é o Projeto Cidade de Irupé, parceria entre a OSC Lar Fabiano de Cristo e a Escola Estadual de Ensino Fundamental e Médio (EEEFM) Frei Daniel. O projeto foi vencedor na categoria grande porte da regional Belém na 11ª edição do Prêmio Itaú-UNICEF.
Irupé, que em tupi-guarani significa vitória-régia, é uma cidade-laboratório fictícia. Mais de 200 crianças, adolescentes e jovens atendidos pelo Lar Fabiano de Cristo são divididos em salas e cada sala constitui uma comunidade. Cada comunidade escolhe um vereador e, do conjunto delas, sai o prefeito, o vice-prefeito e representantes de secretarias temáticas – Saúde, Meio Ambiente, Segurança etc.
A proposta nasceu da necessidade de discutir o tema da habitação dentro da OSC. “Há muitos bairros com condições precárias em Belém e nós estávamos discutindo com as crianças e adolescentes a questão da moradia, procurando explicar quem gere a política de habitação e como eles poderiam intervir nessa política. No processo, surgiu a ideia de vivenciarmos uma experiência de gestão pública, mostrando como o prefeito administra a cidade, para que eles pudessem experimentar. Foi assim que nasceram as comunidades e a cidade de Irupé”, conta Norma Sueli de Souza Carvalho, supervisora do Lar Fabiano.
O que era apenas um exercício acabou por se transformar em uma experiência concreta de gestão democrática. Com o apoio de assistentes sociais e orientadores pedagógicos, a Prefeitura, as Secretarias e a Câmara de Irupé hoje realizam campanhas, jogos cooperativos e promovem discussões – a redução da maioridade penal foi um dos temas abordados, por exemplo –, definem necessidades estruturais na OSC, como a reforma de cadeiras, atuam em problemas de desentendimento e convivência e mantêm um diálogo direto com a gestão da organização na identificação de problemas, melhorias no atendimento e na busca de soluções.
A cidade já se envolveu na criação de um grupo de dança e teatro; conquistou, via manifestação, a instalação de um semáforo no cruzamento de duas ruas relevantes no bairro Guamá, onde se localiza a OSC; tem uma ex-prefeita – Juliane Cristina Moreira Santos, de 16 anos – que representará o Pará na X Conferência Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, no período de 24 a 27 de abril de 2016; e já vivenciou até mesmo um impeachment. De quebra, contribuiu para uma maior aproximação entre as famílias e a organização. “Mesmo as crianças mais novinhas levam muito a sério a dinâmica. Há o Jornal de Irupé e agora um grupo de mídia está envolvido na instalação de uma rádio interna para a cidade”, conta Norma.
A gestão democrática é estratégica, porque possibilita uma maior participação, transparência, democracia. Se, na educação integral, defendemos que o indivíduo desenvolva todas as suas potencialidades, isso inclui sua liberdade e suas escolhas – e a capacidade que ele tem de lidar com o que ele escolhe e com as suas consequências.”
Norma Sueli de Souza Carvalho
A parceria com a EEEFM Frei Daniel surgiu quando a OSC buscou dialogar com os alunos que pulavam o muro que separa as instituições vizinhas para entrar e sair. Hoje, a escola e o Lar Fabiano constroem agendas comuns, participam da rede de proteção no território e promovem momentos com as famílias – e a parceria vai se aprofundar, uma vez que a escola começará a implantação de sua própria cidade-laboratório.
“A gestão democrática é estratégica, porque possibilita uma maior participação, transparência, democracia. Se, na educação integral, defendemos que o indivíduo desenvolva todas as suas potencialidades, isso inclui sua liberdade e suas escolhas – e a capacidade que ele tem de lidar com o que ele escolhe e com as suas consequências […]. A gestão da OSC tem crescido muito nesse processo com a cidade de Irupé, e lançaremos um livro com essa experiência, com previsão para abril. Em relação à escola Frei Daniel, já foram feitas reuniões com a equipe pedagógica e com os professores para replicar a metodologia. Muitos acreditam que, quando isso acontecer, a gestão da escola será impactada, como foi a gestão da OSC. Pela minha experiência, digo que, quando os meninos vivenciam o poder, vivenciam essa liberdade, alguma coisa muda neles. Acredito realmente que a implantação de uma proposta como essa na escola vai enriquecê-la. Nossa experiência tem demonstrado o quanto o jovem, o adolescente e a criança, quando potencializados, são capazes de mudar o status e causar uma revolução no espaço que ocupam”, finaliza Norma.
Foto de destaque: Reprodução.
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