O brincar e a educação integral – algumas reflexões
Quais são os momentos e espaços reais de brincadeira dentro dos espaços educativos?
Leia o artigo de Maria Lúcia Medeiros
Por Maria Lúcia Medeiros
Se a sociedade quer alunos bem preparados, precisa levar a sério que as diferentes partes do ser humano são inextricavelmente interligadas. Se as necessidades emocionais, sociais e físicas forem ignoradas, isso trabalhará contra a excelência acadêmica. Por isso, mesmo que o objetivo seja só melhorar os resultados acadêmicos, não dá para ser apenas conteudista. Isso afasta novas descobertas.”
Adele Diamond (2012)
Num senso comum, a relação entre infância, criança e brincadeira parece óbvia. Não é raro pensarmos em crianças e logo virem imagens de brincadeiras. Da mesma forma, falamos em brincar e automaticamente pensamos nas crianças. Dificilmente imaginamos uma criança que não brinca e uma infância sem brincadeiras. Apesar dessa associação quase imediata, dentro dos espaços educativos – escolas/OSCs – organizações da sociedade civil – a permissão da brincadeira ainda gera muito polêmica.
Ao observar uma criança brincando, se prestamos muita atenção a seu corpo, a seu olhar, ao que ela diz, ao que inventa, certamente nos encantamos com aquilo que vemos: a inteireza da criança entregue ao momento.
Um bebê que descobre suas mãos, mexe, põe na boca, toca objetos está brincando com elas. Ao brincar de “cadê? achou!” quando um adulto esconde o rosto, o bebê está fazendo descobertas importantes, como a noção de permanência das coisas.
A criança que se fantasia e assume papéis sociais em uma brincadeira simbólica, está elaborando elementos da sua cultura, se conhecendo em posições sociais diferentes, aprendendo a conviver com colegas, construindo enredos, criando cultura com seus pares.
Uma criança mais velha ou adolescente que brinca, por exemplo, de pula-cela, está conhecendo e desenvolvendo a força de seu corpo, seguindo ou criando regras, buscando estratégias, aprendendo a conviver com seus pares. Esses são alguns exemplos de brincadeiras e aprendizados envolvidos.
A brincadeira assume diferentes formas, de acordo com o espaço, o clima, o grupo, o tempo, a idade etc. Há as individuais e as coletivas. As que envolvem movimentação ampla como pega-pega, esconde-esconde, queimada, corda e tantas outras. Brincadeiras de roda, de mãos e gestos. Brincadeiras simbólicas, em que a criança assume diferentes papéis sociais. Jogos de tabuleiro, de raciocínio. Jogos virtuais. A própria construção de brinquedos, quando, muitas vezes, o prazer maior está na construção e não tanto no brincar.
O brincar muitas vezes se transforma em diferentes linguagens expressivas: desenhar, pintar, modelar, cantar, dançar, representar – dependendo da intenção que se coloca ao fazer essas coisas. Ele acontece quando estamos entregues a um fazer de corpo e alma, estamos inteiros, escolhendo o quê, quando, como fazer. Nesse sentido, é um fazer espontâneo, que envolve imaginação e liberdade.
Pela brincadeira, a criança entra em contato com a cultura em que está inserida, recria e produz cultura. Brincando, ela tem a possibilidade de um desenvolvimento mais integral: corpo, mente, emoções, relações sociais. Ela aprende a resolver problemas, raciocinar, desenvolve a criatividade, a memória, a capacidade de concentração, a flexibilidade.
Mas brincar também é algo a ser aprendido: jogar conforme as regras; negociar os papéis que serão assumidos; empilhar blocos de madeira e fazer com que se equilibrem; ajustar e transformar o espaço para determinada brincadeira; criar estratégias corporais; controlar-se emocionalmente para aguardar a sua vez. Quanto mais se brinca, melhor se brinca.
Quando o adulto observa a criança brincando, muitas vezes não se dá conta de quantos aprendizados estão presentes naquele momento. E, por considerar uma coisa que a criança faz naturalmente e que dá prazer a ela, nem sempre valoriza esse momento tão especial.
Nas escolas e OSCs, com muita frequência, esse momento é visto como hora de recreio das crianças e descanso dos educadores. Isso acontece quando a escola é vista como local de instrução, de aprendizados numa perspectiva cognitiva – português, matemática, ciências. Como se esse aprendizado não estivesse diretamente relacionado ao ser como um todo.
A escola precisa garantir esses aprendizados, mas não de forma isolada, separada, fria. Pelo contrário, as escolas e outras instituições educativas que reconhecem, na organização de seus tempos, espaços e conteúdos, a necessidade da brincadeira, seja aquela orientada pelos educadores ou não, constroem processos de aprendizagem mais orgânicos e integrados com os fazeres e com as habilidades de suas crianças e adolescentes. Nesse sentido, a presença da brincadeira e das diversas linguagens é fundamental no decorrer de cada dia.
Porém, ainda vemos o professor, em grande parte, extremamente preocupado apenas com a previsibilidade dos resultados de suas ações, à espera de respostas predeterminadas. Lidar com o espontâneo e inesperado que a brincadeira propicia assusta, pois desacomoda.
Abrir a oportunidade da brincadeira é abrir-se para o imprevisível, é um lugar onde não se controla tudo. É mais fácil dar espaço para algumas brincadeiras tradicionais da infância, pois o professor orienta começo, meio e fim delas; um tipo de brincadeira que envolve liberdade de escolha é mais escasso.
Para a presença da brincadeira fazer sentido nesses espaços educativos, é preciso considerá-la, incentivá-la e acompanhá-la. É preciso ampliar o olhar para um olhar intencional a este fazer infantil. E é preciso ser da responsabilidade de todos os profissionais da escola (além dos professores, também gestores e equipe de apoio).
Quando a equipe escolar reconhece a necessidade da brincadeira e das diferentes linguagens, ela redimensiona os seus tempos, espaços e materiais com a intenção de colher e fazer avançar as aprendizagens observadas nas brincadeiras. Ela pode, por exemplo, considerar os temas e enredos levantados pelas crianças nas brincadeiras ao ensinar os conhecimentos que serão sistematizados.
Os espaços dentro das instituições são potencializados para essas experiências, desde os ocupados para armazenamento de equipamentos sem utilidade, até aqueles cuja a presença do brincar descobre novos modos de utilizá-lo.
Cabe também à escola formar as famílias para que compreendam o papel da brincadeira para o desenvolvimento humano, para que apoiem a escola e promover o brincar em outras ocasiões.
Viemos de uma época em que a criança tinha tempo e espaço para brincar fora da escola. As crianças se encontravam em ruas, praças, quintais. Movimentavam seus corpos e exploravam o mundo à sua maneira, com seus pares. Assim, apreendiam muitos conhecimentos que depois sistematizavam na escola.
Os estudos recentes da neurociência vêm nos mostrando o grande desenvolvimento que acontece no sistema nervoso principalmente (mas não exclusivamente) nos primeiros sete anos de vida e que, para isso, é importante receber os estímulos certos – confirmando aquilo que a psicologia do desenvolvimento já apontava –, quais sejam: a possibilidade de entrar no mundo da fantasia, movimentar-se amplamente, agir com o corpo, cantar, dançar, desenhar, representar, entre outros.
Como nos lembra Sonia Padovan:
quanto menos a gente dá tempo para o sistema nervoso encontrar referências bem sólidas e concretas de espaço e tempo e de transformar imaginação em ação, transformar tudo que as crianças captam do mundo em ação real de brincar, mais vão aparecendo a família das disfunções – dispraxia, dislexia, desatenção, descapacidade…”
Pedagoga, com larga experiência na temática do brincar e em Educação Infantil e primeiros anos do Ensino Fundamental. Trabalha com assessoria e formação de professores. Coordenou o projeto Brincar, desenvolvido pelo CENPEC em parceria com a Fundação Volkswagen e Secretarias de Educação estaduais e municipais. Contato: mlumedeiros65@gmail.com.
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