- Tamara Castro
Quando criança, ela sentia um descompasso entre pensar e escrever. A mão nem sempre acompanhava seu raciocínio rápido. Faltavam letras nas palavras escritas no caderno. Por conta disso, enquanto os outros alunos saíam em algazarra para o recreio, ela permanecia na sala de aula copiando a lição da lousa. Sílvia Colello, professora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, lembra bem:
Eu lia demais, mas não conseguia escrever. A leitora desesperada era uma péssima escritora. Eu era uma aluna esforçada e fui até oradora da classe porque decorava o discurso. Mas escrever era muito difícil para mim.”
Aos 10 anos, percebendo que a filha repetiria de ano, seus pais foram chamados na escola para uma conversa. Silvia foi encaminhada a uma psicopedagoga que detectou a causa do problema e realizou um treinamento para sintonizar o ritmo do pensamento com o da escrita.
A psicopedagoga me colocava para escrever batendo um tamborzinho porque era um problema de natureza motora e não de caráter cognitivo. Meu problema foi resolvido em um ano. Se não tivesse essa intervenção, teria arrastado esse problema pela vida inteira. Tive sorte de ser encaminhada para uma especialista que detectou meu problema. Mas quantas crianças não tiveram a mesma sorte?”
Essa história veio à tona enquanto escrevia o memorial para sua tese de livre-docência A escola e as condições de produção textual: conteúdos, formas e relações, defendida na Universidade de São Paulo (USP) no ano passado.
O memorial é um balanço da vida profissional e pessoal. Fui investigar de onde vinha meu interesse por criança com dificuldades em aprende a ler e escrever. Eu me lembrava da minha dificuldade em escrever, mas nunca a associei ao meu trabalho. Então quando uma criança me diz ‘Professora, muito obrigada, eu não tenho mais vergonha em ir para a escola’ é muito forte para mim porque eu tinha vergonha em ir para a escola.”
Sílvia Colello
Sua trajetória está entrelaçada à educação. Após se formar em Pedagogia na USP, ela fez um curso de especialização em psicomotricidade e atendeu muitas crianças com problemas semelhantes ao seu. Fez mestrado e doutorado na mesma instituição, onde atua como professora há 34 anos. Escrita e vida escolar também estão associadas em sua tese. Sua proposta é repensar conteúdos, formas e relações na escola, mais especificamente pelo recorte do ensino da língua escrita, levando em conta a necessidade de construir uma escola inclusiva, ajustada aos perfis dos alunos e aos apelos de uma sociedade democrática e tecnológica.
A pesquisa de campo foi realizada na ONG Instituto André Franco Vive, em São Paulo (SP), com 30 crianças de 6 a 10 anos de diversas escolas públicas (10 do 1º ano, 10 do 3º ano e 10 do 5º ano do Ensino Fundamental). Silvia ofereceu cinco atividades para escreverem sobre a vida escolar, variando no suporte (papel ou computador) e nas autorias (sozinhos ou em duplas, trios ou quartetos).
✍🏾 A primeira atividade foi um questionário em que as crianças responderam individualmente a duas perguntas sobre a escola: “Por que as pessoas vão para a escola?” e “Por que as pessoas aprendem a ler e escrever?”.
🗣️Já na segunda atividade, para provocar o debate entre as crianças, Silvia criou uma situação hipotética. Ela contou que seu vizinho, que tinha a idade deles, não queria ir à escola. Ela perguntou então se poderiam escrever algo para ele.
O linguista João Wanderley Geraldi é professor titular da Unicamp e colaborador visitante da Universidade de Porto, em Portugal. Escreveu diversos livros sobre linguagem e escrita que são referência para educadores e pesquisadores da área, como Portos de passagem (2013) e O texto na sala de aula (1996).
👩🏾💻Para a terceira atividade, Silvia propôs a criação de um blog. Para incentivar a turma, ela contou o caso de Isadora Faber, uma aluna de 13 anos que criou a página “Diário de classe” no Facebook para mostrar as condições de sua escola em Florianópolis (SC).
Mostrei que quem sabe escrever pode conversar com o mundo. Percebi que eles tinham um vínculo muito frágil com a escola, apesar de frequentá-la diariamente. Todos apresentaram os mesmos discursos extremamente empobrecidos: a escola é suja, tem criança que bate, a professora grita, a comida é ruim. Porém, na hora de escrever, já começavam a pensar e me perguntavam se a palavra ‘sujo’ era escrita com s ou com ch.”
🎮 Para a quarta atividade, Silvia criou um game com diversos problemas relativos à vida escolar com o objetivo de provocar reflexão. Algumas universidades já desenvolvem experiências centradas na resolução de problemas, como a Universidade Estadual de Londrina (UEL) e a Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) no Brasil, e a Universidade de Stanford, nos Estados Unidos.
No curso de Medicina da Universidade de Londrina, os professores de diversas disciplinas criam problemas visando a determinado conteúdo. Por exemplo, eles propõem o caso da Maria, que é diabética, tem pressão alta e está sofrendo um processo de aborto. Com algumas indicações dos professores, os alunos têm um prazo para pesquisar. É um saber interdisciplinar, integrando vários assuntos, que estimula o aluno a pensar porque envolve um desafio com um significado. Eu pensei como poderia fazer o mesmo com as crianças.”
Jogando e aprendendo a pensar
Antes de iniciar seu projeto de livre-docência, Silvia percorreu, durante meses, inúmeras escolas na tentativa de encontrar um local para aplicar a pesquisa. Enquanto aguardava a conversa com as diretoras, ela se deparou com diversas situações. Com base nelas, Silvia formulou 50 problemas, adaptando os enunciados à linguagem das crianças. As questões são de três tipos: pedagógico, relacional e administrativo.
O game é um jogo de percurso. Ao clicar na imagem da roleta, o jogador recebe um número que representa quantas casas deve avançar. Cada casa apresenta um problema diferente.
As crianças conversam sobre o problema e apresentam diversas possibilidades – muitas vezes conflitantes entre si − para solucionar a questão. Então, o jogador contemplado com aquele problema define seu posicionamento e resolve oralmente a situação. Ao longo do jogo, os participantes ganham, perdem ou transferem problemas para os parceiros, de acordo com as casas em que caem.
“Eu lhes expliquei que na vida da gente sempre aparecem situações problemáticas. Às vezes conseguimos resolvê-las. Outras vezes, a questão se resolve sem precisarmos tomar nenhuma atitude. Há ainda momentos em que transferimos o problema para outra pessoa. O jogo funciona da mesma forma”, explica Silvia.
O tempo para resolver o problema depende de cada criança. Mesmo após o fim do jogo, elas continuam pensando sobre o assunto. Ao final da partida, cada jogador tem até cinco problemas e deve escrever a solução que considera mais adequada. No grupo em que o jogo foi aplicado, muitas crianças tinham dificuldades de escrita. Silvia os tranquilizava dizendo que poderiam escrever da forma que achassem melhor. Algumas pediam ajuda à pesquisadora para isso.
O game se mostrou uma atividade rica não pela escrita, mas por aquilo que alimenta essa prática, pois cria sentido para ela. É um jogo aberto, com problemas que não oferecem respostas certas, pois o objetivo é estimular a reflexão. A riqueza da atividade é a pluralidade de ideias. A escola trabalha em uma lógica de saber doado. O professor tem o conhecimento e passa a matéria. É uma transferência passiva. Eu acredito que é preciso criar situações em que as crianças possam pensar, manifestar e debater ideias.”
Com o nome “Escola: dá pra encarar?”, escolhido em votação pelas crianças, o game pode ser jogado por dois até quatro participantes. Cada um escolhe um avatar (personagem) que o representa. Para fugir da estereotipia, os avatares contemplam diferentes etnias, como brancos, negros, indígenas e orientais. Os participantes recebem uma medalha virtual ao fim do jogo, indicando a importância de terminar uma tarefa. Antes de iniciar a partida, o grupo pode escolher os três critérios para definir quem será o vencedor: quem alcançar primeiro a linha de chegada, quem tiver menos ou mais problemas etc.
Todos os problemas apresentam um conflito entre duas partes que precisa ser solucionado. Com isso, as crianças aprendem a refletir, a manifestar suas opiniões e a ouvir seus colegas, ampliando seu repertório, praticando a oralidade e lidando com as diferenças. Mesmo que determinada situação não esteja relacionada a sua realidade, as crianças têm a possibilidade de se colocar no lugar do outro, criando um sentimento de empatia. Percebem ainda que há mais de uma resposta para um problema e que podem negociar a solução, contemplando os vários envolvidos.
Silvia conta que, ao escrever sua solução para o problema, muitas já haviam alterado sua própria percepção, uma prova de que tinham se transformado na interação com o outro.
Um dos problemas era sobre a briga dos alunos pelo uso da quadra esportiva da escola no recreio. Uma criança propôs fazer um rodízio entre as diversas séries. Outro argumentou que a melhor solução seria deixar a quadra para os alunos menores, pois eles precisavam de mais espaço. Já uma criança disse que a saída era queimar a quadra, assim ninguém brigaria, o que demonstra uma visão autoritária. Na mesma hora, seus parceiros foram contra essa ideia e ela repensou o que havia dito.”
Com as respostas, Silvia categorizou os padrões de pensamento das crianças em cinco perfis: criterioso, autoritário, diplomático, individualista e generoso. No exemplo da briga pela quadra, a criança que propõe um rodízio entre as diversas séries revela perfil diplomático, enquanto aquela que deixaria a quadra para os menores indica caráter generoso. Já a que sugere queimar a quadra apresenta indício de perfil autoritário. Após categorizar as respostas de acordo com esses perfis, a pesquisadora fez uma estatística para analisar a frequência com que elas se apresentavam nos grupos e verificou percentagens semelhantes ao longo da faixa etária, dos 6 aos 10 anos.
O jogo também pode ser uma maneira para o professor conhecer melhor seus alunos e perceber suas tendências e necessidades. O game pode ser uma ferramenta para promover mudanças na forma de pensar e agir do grupo. Uma criança autoritária, por exemplo, pode perceber as diferenças no discurso de uma diplomática. O professor pode acompanhar as mudanças nos pensamentos das crianças sobre determinada situação. Com base nos problemas, pode-se discutir com toda a classe um tema específico, trazendo livros, filmes ou contando histórias que dialoguem com o assunto. Há inúmeras possibilidades de uso.
No final da pesquisa, Silvia repetiu o questionário inicial e percebeu uma diferença brutal na ampliação da percepção das questões escolares.
Eu me impressionei com o poder de transformação das crianças. Você dá o menor estímulo e elas decolam. Elas ampliaram seu modo de pensar e até de escrever. Isso é encantador na educação. Para a escola fazer sentido aos alunos, ela deve capturar o interesse pelo desafio de compreender o mundo.
Maingueneau diz que são necessárias três competências para escrever: linguística, que implica conhecer as regras, e é nisso que os professores centram fogo; genérica, identificando o que será escrito e os tipos textuais que serão usados; e enciclopédica, que é o conhecimento do mundo. Um dos problemas da escrita é que os alunos têm um horizonte muito curto. O game se apoia na competência enciclopédica ao dar oportunidades de a criança pensar na complexidade das situações de vida, dentro e fora da escola. Se o professor quer ensinar a escrever, é preciso promover a reflexão compartilhada, estimular a pensar e alimentar repertórios.”
Dominique Maingueneau é linguista e professor da Universidade de Paris-Sorbonne. Suas pesquisas associam um olhar pragmático sobre o discurso com teorias da enunciação linguística, trazendo contribuições importantes para a teoria literária e para a análise do discurso, ao estudar a relação entre texto e contexto. É autor de Análise de textos de comunicação (2001) e Discurso e análise do discurso (2015).
Tecnologia em jogo
As crianças e os jovens em geral apresentaram enorme facilidade em se apropriar de ferramentas tecnológicas digitais. No entanto, muitas escolas ainda mantêm forte resistência a incorporar a tecnologia ao ensino. Em sua tese, Silvia expôs os três grandes movimentos da web com o surgimento da internet. O primeiro movimento, nas décadas de 1980 e 1990, foi marcado pelo acesso à informação, em que o conteúdo de enciclopédias e dicionários podia ser acessado pelo computador. Já no segundo, nos anos 1990, a tônica foi a interação e a comunicação em chats (bate-papos), que evoluíram para as atuais redes sociais. No terceiro, a partir dos anos 2000-2010, o desafio foi lidar com situações complexas e resolver problemas que seguem a lógica dos games.
A maioria das escolas se apropriou apenas do primeiro movimento da web, em que o conteúdo do livro didático foi transposto para o tablet. Se antes os alunos pesquisavam na biblioteca, agora eles utilizam a internet. Já os estudantes estão no segundo movimento, o das redes sociais, que poderiam servir para enriquecer as aulas ao possibilitar discussões mais amplas dos temas estudados.”
Mais do que equipamentos de informática ou acesso à rede, é preciso mudar a postura das escolas e dos educadores. “Pela primeira vez na história da educação, o aluno domina mais que o professor um assunto, que é a tecnologia, até porque eles são nativos digitais. É por isso que se torna necessária uma integração, porque o professor é responsável pela curadoria e seletividade do imenso conteúdo disponível na internet. A tecnologia pode ser usada como meio para promover a inclusão, a construção de saberes, a aprendizagem interativa e a produção de trabalhos colaborativos”, afirma a professora.
Cultura letrada e educação de valores
Após a defesa de sua tese, além das questões sobre a vida escolar, a pesquisadora, em parceria com outras especialistas da USP, desenvolveu mais dois programas para o game: educação de valores e cultura escrita e letramento. Este último envolve 50 problemas organizados em dois eixos: apropriação linguística, acerca da variação e da adequação linguística, e propostas sociais, sobre a função da escrita.
Por exemplo, Renato e Marcela estão fazendo um trabalho sobre a alimentação e os hábitos dos filhotes de elefantes. Renato sugere que eles escrevam que o filhote de elefante é muito fofo, mas Marcela diz que “fofo” não é uma palavra apropriada para esse tipo de trabalho. Após a leitura do problema, o participante deve manifestar o que pensa sobre isso. “Esta é uma questão sobre adequação da linguagem, porque o filhote de elefante pode ser fofo, mas essa não é uma palavra a ser usada em um trabalho científico”, aponta Silvia. Outro problema de letramento aborda formas de localizar uma determinada história em livro.
Uma criança respondeu que é preciso virar todas as páginas até encontrar a história. Outra disse que pode se orientar pelas figuras. Uma terceira disse que basta olhar no índice. As crianças ficaram curiosas para saber o que era índice.”
Já as 50 perguntas relacionadas à educação de valores apresenta conflitos de ordem moral, que envolvem questões de amizade, trabalho em grupo, formas de violência (física, psicológica, bullying e cyberbullying), inclusão social (diversidade cultural; deficiências física, intelectual, auditiva e visual; questões de gênero e de raça); e questões de família, projeto de vida, normas de convivência, regras e princípios de conduta na escola. Hoje, o jogo tem 150 perguntas ao todo e está sendo utilizado em algumas escolas.
Jogo da fotografia, Conquista da palavra, Pontos de vista… Visite nosso Acervo e conheça nossos jogos educativos
O game mostra que, mais importante do que as respostas certas, a compreensão de um problema pode ter diversas soluções e interpretações. O objetivo é fazer os estudantes entenderem que podem agir sobre a realidade e agir colaborativamente, ouvindo as opiniões dos outros. Acredito que ser educador é estar preparado não para ouvir as respostas que queremos, mas sim estimular os educandos a pensar e refletir sobre um assunto. Ao longo da vida escolar, as crianças e os jovens são desestimulados a arriscar. É preciso não perder o fogo de ousar, de buscar, de perguntar, de ser criativo.”
Silvia Colello
Pedagoga com Mestrado, Doutorado e Livre-docência pela Faculdade de Educação da USP. É docente e orientadora nos programas de Mestrado e Doutorado da mesma instituição. Como coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Alfabetização e Letramento – GEAL/FEUSP, membro do Núcleo de Pesquisa “Novas Arquiteturas pedagógicas” – NAP/USP e do “Centro de Estudos – Oriente & Ocidente – CEMOrOc”, desenvolve pesquisas na área de ensino da língua escrita, letramento e produção textual.
Publicou diversos artigos no Brasil e no exterior. É autora dos livros Alfabetização em questão (2004), A escola que (não) ensina a escrever (2012), A escola e a produção textual: práticas interativas e tecnológicas (2017), coautora de Alfabetização e letramento: pontos e contrapontos (2011) e organizadora de Textos em contextos – Reflexões sobre o ensino da escrita (2011).
Veja também
- Entrevista com Roxane Rojo: Como os professores podem promover letramentos críticos, seletivos e criativos
- Como garantir um bom clima escolar?
- Clima escolar: da indisciplina e violência às relações e regras de convivência
- Censo Escolar 2022: uma coordenação nacional se faz mais do que necessária
- APC: prevenção da evasão escolar e da distorção idade-série na Paraíba
CONTEÚDOS RELACIONADOS