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Cenpec,
São Paulo,
Dezembro, 2016
Fotos: Fotolia
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Pesquisa mostra que quanto mais conhecimento sobre os efeitos negativos da repetência, menos o docente concorda com a prática
Os professores que são mais favoráveis à reprovação tendem a ser adeptos de conceitos específicos sobre avaliação e justiça escolar. Em relação à justiça na distribuição do conhecimento, esses educadores geralmente acham que os alunos devem receber o mesmo tratamento, independentemente da origem social, e ser reconhecidos segundo o talento ou mérito (é a justiça meritocrática, que se contrapõe à corretiva e à igualdade de tratamento). Quanto à avaliação, acreditam que ela tem de levar em consideração o desempenho do aluno em relação ao grupo-classe, por meio da comparação entre os pares (avaliação normativa).
Esse é um dos principais resultados da pesquisa Crença de professores sobre reprovação escolar, realizada com professores dos ensinos fundamental e médio de todo o país. Trata-se de uma amostra de conveniência obtida junto a docentes que participaram, em 2014, da plataforma de um programa de formação de professores de escolas públicas do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Educação Comunitária (Cenpec). Cerca de 5.500 docentes (6% do total de inscritos na plataforma) responderam ao questionário. A amostra tende a representar profissionais que estão em busca de formação continuada. No caso dos que atuam nos anos finais dos ensinos fundamental e médio, representa apenas professores de língua portuguesa.
O estudo feito no Brasil é parte de um projeto internacional, coordenado pelo pesquisador belga Marcel Crahay, da Universidade de Genebra, Suíça, em que participaram também França, Bélgica, Suíça (cantões em que se fala francês), Romênia, Bulgária e Turquia. O projeto buscou entender que concepções sobre o desenvolvimento do ensino e os princípios de justiça e avaliação se associam às crenças de professores sobre reprovação.
O questionário foi desenvolvido com base na escala de Likert, na qual os respondentes especificam o grau de concordância com uma afirmação. A análise dos dados permite apreender o grau de adesão à crença sobre a reprovação e as crenças e os conhecimentos associados a essa adesão, assim como o perfil dos respondentes.
As crenças foram examinadas, primeiramente, por meio de uma análise fatorial exploratória; em seguida, o grau de adesão foi estimado por meio da Teoria de Resposta ao Item (TRI). O perfil dos docentes que tendem a ser mais favoráveis à reprovação foi obtido por intermédio da análise de regressão, enquanto a relação com outras crenças com o conhecimento sobre pesquisas foi obtida por meio da análise de correlações.
Crenças são representações, compilações de conceitos e proposições construídas socialmente às quais os indivíduos aderem. Elas são amplamente disseminadas, apesar de não estarem embasadas em um sistema de validade – característica que as diferencia do conhecimento, que exige um rigoroso sistema de validade e evidências empíricas baseadas em pesquisa.
Para Crahay e colaboradores (2010), as crenças se constituem com base em experiências vividas e informações, saberes, modelos de pensamento recebidos e transmitidos pela tradição, educação e comunicação social. Relacionam-se com a cultura, a ação e a experiência do professor, a relação entre o indivíduo, a constituição da própria identidade e o contexto. Segundo os pesquisadores, as crenças proporcionariam uma visão prática de como proceder, propiciando certo domínio sobre o ambiente.
Por isso, para o estabelecimento de estratégias efetivas e bem fundamentadas de formação de professores, é relevante investigar o tipo de crenças e conhecimentos mobilizados pelos docentes em determinada situação, como eles se relacionam entre si, quais características do perfil interferem na adesão a uma ou outra crença e que contextos interferem nessa adesão, bem como se tais crenças e conhecimentos se modificam ao longo do tempo.
Cruzando-se as crenças e os conhecimentos dos professores sobre os efeitos da reprovação escolar com as noções de justiça e avaliação e alguns dados do perfil dos docentes, foi possível perceber que são mais favoráveis à reprovação os professores que:
Acham que a meritocracia
é um bom critério de
distribuição de conhecimento.
São partidários da
avaliação normativa.
Têm menos tempo de
experiência docente.
Tiveram contato somente com
as políticas de ciclos implantadas
no Brasil na década de 1990.
Atuam majoritariamente
no ensino fundamental 1.
Têm menos conhecimento de
pesquisas sobre os efeitos da reprovação
e não possuem pós-graduação.
• Acham que a meritocracia é um bom critério de distribuição de conhecimento.
Os partidários da distribuição de nota por mérito ou talento acreditam que a inteligência é um fator genético e a escola, então, teria não só o papel de oferecer ensino de qualidade a todos, mas também de identificar os talentos e “investir” neles. Há também a ideia de que quem repete não se esforçou suficientemente para atingir bons resultados e, portanto, não merece avançar. Trata-se, assim, de uma questão de talento e mérito: o estudante aprovado “merece” isso por seu “dom” ou “esforço”. Fatores sociais que interferem no desempenho, como recursos culturais familiares, não são levados em conta. Esse princípio de justiça meritocrático se opõe ao de justiça corretiva, que considera que todos podem aprender, desde que aqueles que mais precisam recebam mais tempo e atenção da escola, melhores professores e procedimentos didáticos adequados.
• São partidários da avaliação normativa.
Quanto mais acreditam que provas ou outros instrumentos avaliativos servem para estabelecer comparações entre alunos e turmas, identificar os “fortes” e punir os que não estudaram, mais os professores acham a repetência justa.
• Têm menos tempo de experiência docente.
A experiência do professor afeta a crença de que a reprovação seja uma estratégia eficaz para lidar com situações de ensino e aprendizagem. Com o tempo, os docentes vão aprendendo e percebendo as práticas e condições realmente capazes de solucionar situações de sala de aula, sem precisar recorrer à reprovação – ou à ameaça – para lidar com problemas de ensino, aprendizagem e disciplina.
• Tiveram contato somente com as políticas de ciclos implantadas no Brasil na década de 1990.
Quem vivenciou apenas políticas de progressão continuada na década de 1990 tende a ser mais favorável à reprovação. Talvez isso se deva, em certa medida, a uma distorção dessas políticas, que foram transformadas em “políticas de aprovação automática”, sem garantia de aprendizado, gerando uma forte reação contrária e uma nova afirmação da “eficácia” da reprovação. Tendo em vista a influência do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) sobre as políticas educacionais mais recentes e a pressão pró-regularização do fluxo que esse índice exerce, pode-se levantar a hipótese de que, por alguma razão a ser investigada, o atual contexto estaria gerando ambientes mais favoráveis a crenças contrárias à reprovação.
• Atuam majoritariamente no ensino fundamental 1.
Provavelmente, esses docentes são os mais pressionados pelas políticas de progressão, já que ensinam conhecimentos mais “concretos” (como a aprendizagem da leitura e da escrita e os saberes básicos da matemática), cujo domínio é mais facilmente avaliável e passível de registro e, por isso, objetos de maior controle social.
• Têm menos conhecimento de pesquisas sobre os efeitos da reprovação e não possuem pós-graduação.
Ter feito mestrado ou doutorado e conhecer mais resultados de pesquisas sobre os efeitos sociais e emocionais da reprovação e os impactos sobre a trajetória escolar do estudante colabora para o posicionamento contrário à repetência. Trata-se de indicativo de que a formação de professores influencia as crenças sobre reprovação.
A metodologia de análise, como se indicou, apreende graus de adesão. Apesar disso, foi possível também buscar determinar a própria adesão à reprovação. A maior parte dos professores – 78% – adota uma postura intermediária, concordando ou discordando parcialmente da reprovação. Apenas 13% dos docentes são claramente contra e 9,4% claramente favoráveis. Esse último grupo se caracteriza pelo desconhecimento de pesquisas sobre o tema.
Posição dos professores quanto à reprovação
É possível que os professores que evitaram demarcar opinião sobre o assunto tenham feito isso devido ao contexto atual de políticas contrárias à reprovação. Pode ser que tenha havido também uma autocensura ao manifestar adesão à reprovação junto ao Cenpec, instituição que, historicamente, aponta os efeitos negativos dessa prática – considerando ainda que estão participando de um programa de formação realizado por essa instituição. Por isso, e pelo fato de que 54,5% dos respondentes disseram que os colegas são favoráveis à reprovação, acredita-se que o índice dos que a defendem seja maior.
No Brasil, apesar de as taxas de reprovação demonstrarem tendência de queda, ainda apresentam números preocupantes: em 2015, o índice de reprovação no ensino fundamental foi de 8,2%, e no ensino médio, de 11,5% (contra 12,1% e 12,7%, respectivamente, em 2007).
Pesquisadores afirmam que há relação entre fracasso escolar e determinadas características dos alunos, entre elas, as origens social e racial. Também há estudos que mostram que os altos índices de reprovação são um entrave à universalização do acesso e da conclusão do ensino médio na idade adequada.
Nos anos de 1960 e 1970, estados como Santa Catarina, Minas Gerais e Rio de Janeiro adotaram políticas pontuais para reverter os altos índices de reprovação, colocando esse debate em pauta. Nos anos de 1980, as redes estaduais de ensino de São Paulo, Minas Gerais, Pará, Paraná e Goiás implementaram o Ciclo Básico de Alfabetização com progressão continuada do 1º para o 2º ano. Sérgio Costa Ribeiro, no artigo “A pedagogia da repetência” para a publicação Estudos Avançados, de 1991, concluiu que a repetência era mais grave que a evasão: entre a 1ª e a 2ª série, o índice de reprovação era de 52,5%; o de evasão, 2,3%. Na década de 1990, a rede municipal de São Paulo organizou o ensino fundamental em três ciclos com progressão continuada. Depois da aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), em 1996, o Brasil teve o maior número de experiências de organização do ensino em ciclos. Contudo, em 2014, de acordo com dados do Censo Escolar, apenas 30,14% das escolas brasileiras de redes públicas e privadas aderiam ao modelo.
Pesquisas qualitativas indicam que as primeiras experiências de ciclos e progressão continuada produziram mais posicionamentos contrários do que favoráveis a elas. A associação feita por boa parte da população – professores, inclusive – entre reprovação e piora da qualidade da educação se deve a uma cultura incorporada no cotidiano escolar e no imaginário familiar de que a repetência é necessária e benéfica ao aluno em situação de fracasso escolar. Entretanto, não há evidências de que estudantes de escolas com reprovação anual tenham melhor desempenho do que os matriculados em unidades com progressão continuada.
Márcia Aparecida Jacomini (2004) analisou a fala de professores da educação básica sobre a progressão continuada, principalmente no estado de São Paulo, e categorizou os argumentos e explicações contrários em três condicionantes:
1) materiais – inadequação das condições de ensino, como número elevado de alunos por turma, material didático inapropriado, espaço físico insuficiente, falta de tempo para trabalho coletivo na escola e preparação de aula;
2) ideológicas – adesão a concepções de escolarização e de relação da escola com a sociedade tais como “a reprovação dá ao professor poder para controlar a disciplina dos alunos e exigir dedicação aos estudos” e “a sociedade pratica a seleção por meio do mérito, portanto, a escola deve incutir nos estudantes a ideia de mérito e seleção”; e
3) institucionais-pedagógicas – currículo, tempos e espaços escolares, avaliação e metodologia de ensino não foram organizados de acordo com os pressupostos dos ciclos e da progressão continuada, dificultando a adoção de uma nova prática pedagógica.
Segundo as pesquisas mencionadas, a saída que a maioria dos professores tem encontrado é criticar a progressão continuada, atribuindo a ela a responsabilidade por problemas relacionados à disciplina e à não aprendizagem.
Pesquisas internacionais e nacionais, porém, indicam que a reprovação escolar é um dos principais entraves para o ingresso no ensino médio, conturba a trajetória escolar, é dispendiosa e gera resultados negativos, conduzindo a mais reprovação e a menos aprendizado (REBELO, 2009; HONG; YU, 2007; SOUZA et al., 2012).
Influenciados pelo contexto, pelos processos de construção de identidade, pelas políticas educacionais e pela experiência, os professores fazem uso de crenças e conhecimentos para agir diante dos desafios pedagógicos. Tanto as crenças quanto os conhecimentos podem ser modificados durante a vida profissional dos educadores. Porém, nada indica que as mudanças necessariamente caminham em direção a situações mais justas, pois essa evolução depende de inúmeros fatores, como a complexidade das situações de ensino que os professores enfrentam, os aspectos emocionais, as lembranças pessoais e também as funções que as crenças e o conhecimento exercem no contexto, gerando resultados que os docentes e seus pares consideram positivos ou negativos.
Trabalhar em processos formativos de professores, com a desconstrução de crenças, bem como com evidências científicas sobre os malefícios da reprovação pode resultar em substituição dessas crenças. Isso pode afetar positivamente a ação pedagógica: diante de uma situação de ensino, o professor irá recorrer a crenças que acredita funcionarem. Mesmo que a substituição não seja garantia de alteração nas práticas do professor, significa uma ampliação do conjunto de crenças ao qual ele recorre para agir. Evidentemente, essa possibilidade de mudança na prática cresce conforme há também propostas, no contexto, que favorecem ações mais justas nas situações de ensino.
Como há uma tendência de o professor fiel ao princípio meritocrático e à avaliação normativa ser mais adepto da reprovação – e considerando que a sociologia da educação afirma a correlação entre desigualdade social e desempenho educacional –, é interessante que as redes desenvolvam, junto aos docentes, a compreensão do significado do princípio de justiça meritocrática na educação básica que, segundo o sociólogo francês François Dubet, é uma forma de distribuição de conhecimento incompatível com a noção de direito obrigatório e subjetivo.
Foto: Marcos Santos/USP Imagens
CENTRO DE ESTUDOS E PESQUISAS EM EDUCAÇÃO, CULTURA E AÇÃO COMUNITÁRIA (CENPEC). Pesquisa Crenças de professores sobre a reprovação escolar: relatório final. São Paulo: Cenpec, 2016.
CRAHAY, M. et al. Fonctions, structuration et évolution des croyances (et connaissances) des enseignants. Revue Française de Pédagogie, n. 172, juillet-août-septembre 2010.
HONG, G.; YU, B. Early-grade retention and children’s reading and math learning in elementary years. Educational Evaluation and Policy Analysis, v. 29, n. 4, p. 239-261, 2007.
JACOMINI, M. A. A escola e os educadores em tempo de ciclos e progressão continuada: uma análise das experiências no estado de São Paulo. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 30, n. 3, p. 401-418, set./dez. 2004.
REBELO, J. A. S. Efeitos da retenção escolar, segundo os estudos científicos, e orientações para uma intervenção eficaz: uma revisão. Revista Portuguesa de Pedagogia, v. 43, n. 1, p. 27-52, jan. 2009. Disponível em: http://impactum-journals.uc.pt/index.php/rppedagogia/article/view/1258. Acesso em: 7 nov. 2016.
RIBEIRO, S. C. A pedagogia da repetência. Estudos Avançados, São Paulo, v. 12, n. 5, p. 7-21, 1991.
SOUZA, A. P. de; PONCZEK, V. P.; OLIVA, B. T.; TAVARES, P. A. Fatores associados ao fluxo escolar no ingresso e ao longo do ensino médio no Brasil. Pesquisa e Planejamento Econômico (PPE), Rio de Janeiro, v. 42, n. 1, abr. 2012. Disponível em: http://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/4916?mode=full. Acesso em: 7 nov. 2016.
Realização
Coordenação de Desenvolvimento de Pesquisas e Assessoria de Comunicação
Edição
Paola Gentile
Projeto gráfico
Alba Cerdeira
Editoração eletrônica
Vilmar Oliveira
Os "informes Educação & Equidade” comunicam resultados de estudos e pesquisas desenvolvidas pelo Cenpec com o objetivo de incidir no debate público, em práticas pedagógicas e políticas educacionais que reduzam as desigualdades e promovam equidade.