20 anos da Lei 10.639: por mais avanços rumo a uma educação antirracista

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20 anos da Lei 10.639: por mais avanços rumo a uma educação antirracista

Neste aniversário de 20 anos da Lei 10.639/03, entenda por que essa legislação foi importante, como ela tem sido implementada e o que falta para garantir a sua efetivação

Por Stephanie Kim Abe

Há 20 anos, passava-se a incluir no texto de um dos mais importantes marcos da educação nacional – a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei no 9.394/1996) – o seguinte artigo: 

“Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório [grifo nosso] o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira.

§ 1o O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil.

§ 2o Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras”.

Essa inclusão se deu por conta da Lei 10.639, sancionada no dia 09 de janeiro de 2003. 

Antes dela, o que existia de orientação neste sentido na LDB era apenas que o “ensino da História do Brasil levará em conta [grifo nosso] as contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro, especialmente das matrizes indígena, africana e européia” (Art. 26 § 4º).

Lara Santos Rocha, assessora de educação do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades – CEERT, explica o que essa inclusão de fato significa:

Foto: acervo pessoal

Quando você torna o ensino de história e culturas africanas e afrobrasileiras obrigatório nos currículos escolares da educação básica nacional, você dá respaldo para que os professores e gestores tratem dessa questão na sala de aula. Não é mais uma questão opcional, mas sim uma obrigatoriedade trabalhar a questão do racismo na educação – em um país extremamente racista. Então é um peso institucional muito grande, que também promove outros documentos norteadores, a exemplo das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, que possibilitam que esse trabalho seja realizado de forma estruturada e sistematizada em todo o país, impactando diversas ações (formação de professores, produção de material didático, revisão curricular etc)“.

Lara Santos Rocha

Lara Santos Rocha é mestre em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa pela Universidade de São Paulo, onde graduou-se em Letras, e foi professora e coordenadora pedagógica na Rede Municipal de Educação de São Paulo. 

Ela conversou com o Portal Cenpec para explorar um pouco mais os avanços que tivemos nos últimos anos com essa importante legislação e os desafios que ainda precisam ser superados para continuarmos buscando uma educação efetivamente antirracista, que traga diferentes olhares sobre a negritude e a formação histórica brasileira

Confira abaixo!

Portal Cenpec: Vinte anos é bastante tempo para se implementar uma política pública. Que balanço você faz da Lei 10.639/03 e da sua efetivação?

Lara Santos Rocha: Eu penso que, no nível curricular, a gente avançou muito. Ainda que não seja da maneira que sonhamos, a maior parte das escolas hoje entende que algo tem que ser falado sobre as relações raciais, africanidade ou afrobrasilidade. Que esses são temas necessários para a educação. As concepções política e pedagógica por trás disso ainda não estão consensuadas nem aprofundadas o suficiente, e ainda há muita coisa equivocada acontecendo, mas houve avanços sim.

Além disso, a lei não vem sozinha. Ela desencadeou uma série de processos e diretrizes que têm sido fundamentais para respaldar o trabalho que é feito nas escolas e demais áreas correlacionadas. Essa mudança implicou, por exemplo, no boom que as editoras tiveram em relação aos(às) autores(as) negros(as), já que antes havia muita ausência dessas obras no mercado.

A Lei depois ainda foi ampliada pela Lei 11.645, que incluiu a obrigatoriedade do ensino de cultura e história dos povos originários, trazendo mais diversidade e novos olhares para o currículo escolar.

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Portal Cenpec: Qual o papel dos materiais didáticos nessa discussão e como eles têm se adaptado à Lei 10.639?

Lara Santos Rocha: Sabemos que são os livros didáticos que guiam o trabalho do professor na sala de aula e, por isso, é muito importante que eles estejam 100% alinhados com o que a legislação preconiza e que ofereçam para o professor um repertório amplo, oferecendo diferentes maneiras de abordar o tema e realmente incorporando-o em diferentes assuntos e possibilidades. 

Apesar de terem avançado, os materiais didáticos ainda têm um longo caminho a percorrer nessa questão. Se pegarmos um livro didático de língua portuguesa hoje, ele vai ter talvez um apêndice falando sobre autores africanos e afrobrasileiros, vai dar uma pincelada sobre o assunto apenas, muito provavelmente no final do livro. Em algumas obras, são apenas algumas atividades específicas falando sobre essa temática, ou uma lista de filmes que fecha um capítulo para quem quer saber mais sobre. Em outras, ainda reforçam estereótipos e preconceitos.

É preciso fugir disso e ampliar o olhar sobre o que é falar de negritude em sala de aula – que está para além de falar de racismo e escravidão. É preciso trazer negritude e tecnologia, negritude e ciência, usar como referência autoras negras etc.

Tendo trabalhado em editoras como consultora nessa área especificamente, eu percebi que essa produção não acontece porque não está bem estabelecido no corpo editoral dessas empresas que é uma responsabilidade coletiva pensar nessas possibilidades e garantir esse olhar amplo sobre como trabalhar a cultura e a história africana e afrobrasileira no currículo escolar. As pessoas seguem apreensivas em falar sobre o tema, acham que não estão preparadas. Mas se já faz 20 anos da lei, é preciso correr atrás e encarar isso enquanto uma prioridade formativa para as equipes. É um processo difícil, mas que precisa acontecer. 

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Portal Cenpec: Quais os avanços e desafios na questão da formação docente para as relações étnico-raciais e para efetivar a implementação da Lei 10.639?

Lara Santos Rocha: Acredito que aqui temos a parte mais delicada. Primeiro, porque existe uma forte questão de racismo religioso, que afeta a maneira como muitos professores e professoras vão olhar para várias questões relacionadas à história e à cultura africana e afro-brasileira.

Segundo, porque existe uma delicadeza, uma sutileza sobre o que significa de fato trabalhar a negritude em sala de aula – e é exatamente para isso que a formação docente precisa, de algum jeito, sensibilizar os professores. Porque por mais que tenham boa vontade, muitos profissionais foram ensinados a enxergarem a negritude apenas a partir de um viés único: este da dor, da violência, da lástima. 

A consciência negra é entender e romper com esse lugar de que as pessoas negras são só aquelas cuja única história é a de escravização. É justamente potencializar outros aspectos das vidas negras e ampliar esse leque de representações. Assim, a formação precisa falar de amor no viés da negritude, de esperança, de criatividade, de ciência, de tecnologia, de vários aspectos para que as professoras entendam que não dá para ficar perpetuando o lugar da dor dos povos africanos, porque as crianças precisam se enxergar em outros espaços e vislumbrar outras possibilidades. 

Ou seja, a formação precisa trazer os professores para refletir e pensar como trabalhar essa temática dentro da sala de aula a partir de um lugar que inverta a lógica do que está posto. 

Portal Cenpec: Qual o papel da gestão escolar nesse processo e quais desafios ela enfrenta para garantir o cumprimento dessa lei?

Lara Santos Rocha: A gestão escolar tem duas responsabilidades importantes e centrais. A primeira é essa de formação de professores. A segunda é a de mediação de conflitos e de contato com os alunos e as famílias  – e que também deve seguir a lógica de incorporação da inversão da perspectiva. 

Hoje em dia, é comum que os próprios estudantes reconheçam casos de racismo e o levem para a gestão. Mas como encaminhar esses relatos? Isso é algo que a gestão escolar precisa olhar com calma e analisar o que são questões criminais que precisam ser levadas para delegacia e o que pode ser solucionado com trabalhos formativos. 

É preciso então um trabalho de articulação entre professores e direção, inclusive para saber quando pausar o restante das atividades para focar nessa questão. Principalmente no ensino médio, é comum que a gestão sinta uma apreensão em trabalhar de forma mais aprofundada no tema, porque há o peso do vestibular e de “quebrar o currículo”. Mas tanto coordenação pedagógica quanto direção precisam entender que trabalhar questões de racismo e de relações étnico-raciais é parte do currículo, como a própria Lei 10.639 coloca. 

A gestão precisa estar atenta tanto para oferecer processos formativos como para identificar casos de racismo e saber encaminhá-los para garantir que eles não afetam as notas, o aprendizado e a trajetória escolar dos estudantes. 

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Portal Cenpec: Como a gestão educacional deve e pode agir para apoiar as escolas?

Lara Santos Rocha: Além de proporcionar formação para a rede como um todo, a secretaria de educação precisa dar esse respaldo às escolas que apresentam casos de racismo e apoiá-las por meio de orientações e encaminhamentos. Elas devem estar abertas e atentas para responder a essas questões tanto de escolas particulares quanto públicas, ter um papel ativo de garantia do cumprimento da Lei 10.639.

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