31 anos de ECA e a situação de crianças e adolescentes na pandemia

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31 anos de ECA e a situação de crianças e adolescentes na pandemia

Saiba como a insegurança alimentar e o trabalho infantil se agravaram durante a crise sanitária e entenda como o ECA garante os direitos das crianças e adolescentes

Por Stephanie Kim Abe

Enquanto o mundo avança, ainda que de forma desigual, na imunização da população contra a Covid-19, os reais impactos da pandemia que se iniciou em dezembro de 2019 começam a aparecer em pesquisas e relatórios mundiais que analisam o cenário atual. 

De acordo com o relatório O Estado da Segurança Alimentar e Nutricional no Mundo, publicado ontem (dia 12/7) por diversas agências internacionais, a fome voltou a aumentar em 2020, depois de quase cinco anos sem mudanças significativas, atingindo cerca de um décimo da população mundial – até 811 milhões de pessoas. 

Além disso, cerca de 2,3 bilhões de pessoas (30% da população mundial) não tiveram acesso à alimentação adequada durante todo o ano. As agências chamam especial atenção para como a má nutrição tem atingido as crianças, já que 149 milhões de crianças menores de 5 anos sofriam de desnutrição crônica, mais de 45 milhões tinham desnutrição aguda e quase 39 milhões estavam acima do peso em 2020.

O trabalho infantil também aumentou no mundo todo pela primeira vez em duas décadas, atingindo 160 milhões de crianças e adolescentes. De acordo com o relatório Trabalho infantil: Estimativas globais de 2020, tendências e o caminho a seguir, da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), quase 28% da população de 5 a 11 anos e 35% das crianças de 12 a 14 anos em situação de trabalho infantil estão fora da escola. 


Insegurança alimentar no Brasil

O cenário no Brasil não é muito diferente do apresentado nos relatórios acima, e tem sido agravado pela pandemia. Como explica Aldaíza Sposati, professora titular da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social:

Foto: reprodução

O principal problema que enfrentamos hoje com as escolas fechadas, além de impactar o desenvolvimento das crianças, é a não garantia da alimentação. E, quando ela ocorre, é numa condição de desnutrição. A alimentação é algo tão necessário e imanente à sobrevivência humana que o Estatuto da Criança e do Adolescente nem particulariza essa questão.”

Aldaíza Sposati

De acordo com a pesquisa Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, realizada pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Penssan) em dezembro de 2020, 116,8 milhões de brasileiros(as) conviviam com a insegurança alimentar – o que corresponde a 55,2% dos domicílios brasileiros -, e 19 milhões (9% da população) estavam passando fome.

No caso de crianças e adolescentes, a merenda escolar tem um importante papel de garantir uma alimentação saudável. Mas com as escolas fechadas, esse acesso ficou comprometido. A pesquisa Impactos Primários e Secundários da Covid-19 em Crianças e Adolescentes, realizada pela Unicef no final do ano passado, constatou que 42% das famílias entrevistadas que recebem até um salário mínimo deixaram de ter acesso à merenda escolar durante a pandemia. 

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Ambas as pesquisas revelam que o perfil daqueles(as) que se encontram em insegurança alimentar reflete as desigualdades sociais. Essa situação é mais recorrente em famílias pretas/pardas, com menor escolaridade, e de classes mais baixas. Além disso, de acordo com a pesquisa da Rede Penssan, a insegurança alimentar foi seis vezes maior quando a pessoa referência da família estava desempregada e mais grave quando essa pessoa é do sexo feminino.

Para Aldaíza, que integra o Conselho de Administração do Cenpec, esse cenário se agrava em uma situação em que não há políticas públicas de transferência de renda, por exemplo:

De outro lado, temos uma sinalização de precarização, sobretudo para as famílias de menor renda, com a retirada de benefícios que levam a um menor padrão de sobrevivência, que já é limitado.”

Aldaíza Sposati

Trabalho infantil no Brasil

Já os dados da Pnad Contínua 2019 mostram que 1,7 milhões de crianças e adolescentes de 5 a 17 anos se encontravam em situação de trabalho infantil no Brasil. Dentre esses, 706 mil exerciam algumas das consideradas piores formas de trabalho infantil: na agricultura, trabalho doméstico, na produção ou tráfico de drogas, no lixo ou com lixo, trabalho informal urbano ou exploração sexual.

Assim como a insegurança alimentar, o trabalho infantil tem cor e gênero: a maioria dessa população era de meninos (66,4%) negros (66,1%). O desenvolvimento e o aprendizado das crianças e adolescentes que se encontram nessa situação também são afetados negativamente: entre a população de trabalhadores(as) infantis entre 16 e 17 anos, apenas 76,8% frequentavam a escola, contra 85,4% de estudantes da população total dessa faixa etária.

Para o Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI), ainda que os números estejam baixando todos os anos, o índice de queda é muito baixo para garantir a erradicação de todas as formas de trabalho infantil até 2025 – um compromisso do Brasil com os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) das Nações Unidas.


Crianças e adolescentes fora da escola

O acesso à Educação é outra das principais problemáticas ocasionadas pela pandemia. O estudo Cenário da Exclusão Escolar no Brasil – um alerta sobre os impactos da pandemia da Covid-19 na Educação, lançado em abril pelo Unicef em parceria com o Cenpec, revelou que o número de crianças e adolescentes entre 6 a 17 anos fora da escola praticamente dobrou entre 2019 e 2020. 

Até 2019, apenas 2% desse grupo etário estava fora da escola (cerca de 712 mil pessoas). Com a pandemia, esse número chegou a 3,8%. Em novembro de 2020, 1,5 milhão de crianças e adolescentes entre 6 e 17 anos não frequentavam a escola (remota ou presencial). 

Somam-se a eles(as) outros(as) 3,7 milhões de estudantes nessa faixa etária que estavam matriculados na escola, mas não receberam atividades escolares. Assim, temos 5,1 milhão de crianças e adolescentes que tiveram o seu direito à educação negado.

A professora reflete:

As medidas sanitárias da pandemia, preocupadas com a sobrevivência e com a vida, no sentido mais amplo e geral, não tiveram as crianças e adolescentes como grupo de risco. Todavia, acho que a maior sequela da pandemia será essa situação de risco que elas estão vivendo, que se manifesta em fome, desnutrição e perda de desenvolvimento integral. Precisamos pensar qual será o investimento dado para restaurar uma condição de garantia de segurança alimentar e de reposição de conteúdos escolares.”

Aldaíza Sposati

O ECA em prática

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA – Lei 8.069, de 13 de julho de 1990), que completa hoje 31 anos, é uma das legislações mais avançadas e importantes na garantia dos direitos de crianças e adolescentes de todo o país.

Em seu art. 60, o ECA proíbe o trabalho a menores de 14 anos de idade. Ele tem também institui a criação do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) e o Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente (SGDCA), que articula intersetorialmente diferentes instâncias públicas governamentais e da sociedade civil para criar uma rede de proteção. 

A escola, por exemplo, é uma instituição central nesse sistema, muitas vezes considerada a porta de entrada para que as crianças e os adolescentes em situação de violação de direitos possam acessar outros serviços dessa rede.

Apesar de robusta, é preciso que o ECA seja de fato colocado em prática e conhecido pela sociedade como um todo para que todo o seu aparato de proteção funcione:

O ECA garante no papel os direitos e a proteção de crianças e adolescentes. Mas é preciso que os órgãos públicos estatais adotem e apliquem efetivamente essa legislação para que tenhamos essa condição de atenção.”

Aldaíza Sposati

Especial CENPEC Explica: 30 anos do ECA

Cenpec Explica

Em comemoração aos 30 anos do ECA no ano passado, o Portal Cenpec Educação publicou uma série de reportagens que exploram diversos aspectos dessa importante legislação brasileira. 

Por que o Estatuto é tão importante e por que ele é tão inovador; como ele articula as diferentes instâncias e órgãos em uma rede de proteção; quais os direitos garantidos e os serviços disponibilizados às crianças e adolescentes em situações de vulnerabilidade e risco; o que é preciso avançar para que a lei seja de fato cumprida são algumas das perguntas abordadas nas seis reportagens do Especial Cenpec Explica: 30 anos do ECA:

  1. Conheça a história e a importância do Estatuto da Criança e do Adolescente
  2. Entenda o papel da escola na rede de proteção e crianças e adolescentes
  3. Por que devemos garantir os direitos dos jovens em conflito com a lei
  4. Como assegurar o direito à participação e o desenvolvimento integral de crianças e adolescentes
  5. As ameaças aos direitos de crianças e adolescentes hoje – e como enfrentá-las
  6. Com a palavra, adolescentes mobilizados em defesa de seus próprios direitos

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