Novo relatório coordenado pelo Cenpec revela como a Educação de Jovens e Adultos (EJA) tem sido sucateada e aponta saídas para reverter essa situação e garantir políticas públicas voltadas para essa modalidade
Por Stephanie Kim Abe
Josevaldo Rodrigues da Silva sempre gostou de estudar. Quando era pequeno, porém, ele não conseguiu frequentar regularmente a escola e terminar os seus estudos.
“Sou da Bahia e o mais velho de oito irmãos – e, por isso, meu pai falava que eu tinha que trabalhar para ajudá-lo. Ele achava que a escola não tinha importância, tendo ele mesmo ido pra aula na primeira série apenas por um dia e não voltado mais. Ele me tirou da escola várias vezes para ajudá-lo no trabalho ou pra ficar na fazenda fazendo o café da manhã ou o almoço pra quando ele chegar já estar tudo pronto. Conforme fui crescendo, fui virando o seu ajudante. Por isso não chegava na escola no horário certo“, explica.
Ele voltou a estudar em 1992, aos 16 anos, mas não conseguiu ficar por muito tempo. Casou-se, teve dois filhos. Aos 31, entrou na Educação de Jovens e Adultos (EJA) junto com a esposa. Ela conseguiu terminar o Ensino Médio – ele, só a então 7a série.
No começo deste ano, matriculou-se no Centro de Formação Profissional João Amazonas, em Santo André, região metropolitana de São Paulo (SP). Em julho, aos 46 anos, Josevaldo teve sua formatura. Terminou o Ensino Fundamental e já está cursando o 1o ano do Ensino Médio, agora na EJA da Escola Estadual José Henrique de Paula e Silva.
Ele chegou a se inscrever no Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos (Encceja), mas perdeu a prova porque coincidiu com outro compromisso que tinha no dia. Agora, Josevaldo cogita nem prestar mais o exame:
A maioria das pessoas simplesmente faz o Encceja para ter a certificação, sem estudar. Mas, no meu caso, eu quero ter o conhecimento. Porque uma coisa é você ter a informação; a outra é você saber mesmo. Uma vez que eu estou na sala de aula, com os professores e os colegas, eu tenho mais oportunidades para aprender de fato“.
Josevaldo Rodrigues
Encceja não é garantia de direito à educação
De fato, as inscrições e as aprovações no Encceja têm crescido nos últimos anos, assim como o investimento do governo nessa prova. Em 2018, por exemplo, o recurso destinado a ela foi mais de quatro vezes maior do que aquele investido na EJA Escolar: R$ 117,6 milhões, enquanto apenas R$ 24,6 milhões para EJA escolar.
Isso em meio a uma queda forte de investimentos na modalidade como um todo. Hoje, o governo federal destina apenas R$ 38,9 milhões à EJA, o que equivale a cerca de 3% do valor de dez anos atrás (R$ 1,5 bilhão em 2012).
Maria Clara di Pierro, pesquisadora da Universidade de São Paulo (USP) e especialista em EJA que participou da produção do documento, explica a problemática de focar os parcos investimentos na modalidade em um exame de certificação:
Os exames sempre existiram e devem servir como um instrumento complementar, como uma maneira de as pessoas terem os seus conhecimentos certificados. Mas estudos mostram que esses exames são muito seletivos. Quem tem mais chance de passar são aqueles que têm mais escolaridade, que têm mais acesso à informação, à cultura, e são autodidatas. Seria quase um mecanismo de correção de fluxo para pessoas multirrepetentes se reinserirem no sistema educativo ou no mercado de trabalho. Mas o exame não funciona para a maior parte da população com baixa escolaridade, que é o grande público da EJA. Portanto, ele não é a garantia do direito à educação“.
Maria Clara di Pierro
A EJA que temos
O relatório Em busca de saídas para a crise das políticas públicas de EJAé dividido em cinco partes. Nas primeiras duas partes, traz um panorama completo da modalidade desde os anos 40 – quando a preocupação com o analfabetismo e a educação da população adulta passa a constar nos documentos oficiais de administradores – até os dias de hoje.
Na terceira, traz uma análise da normativa nacional recente sobre a modalidade, como os pareceres sobre EJA elaborados pelo Conselho Nacional de Educação (CNE) em 2020 e 2021 que dão diretrizes para que estados e municípios alinhem a EJA à Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e à Política Nacional de Alfabetização (PNA).
João Paulo Cêpa, gerente de Articulação e Advocacy do Movimento pela Base, explica as problemáticas de se usar diretrizes da educação regular, voltada para crianças e adolescentes, para a EJA:
Não podemos traçar uma orientação curricular para essa modalidade diretamente do que está na BNCC. Se pegarmos a alfabetização na Base, por exemplo, ela está voltada para crianças de seis e sete anos. Se trabalharmos com essas mesmas orientações curriculares com os estudantes de EJA, corremos o risco de infantilizar o ensino, como costumamos dizer. É importante que o governo federal construa orientações voltadas para a modalidade que dialoguem com a Base, mas que levem em conta as especificidades dos diferentes grupos que compõem a EJA”.
João Paulo Cêpa
Além da inadequação dessas diretrizes federais, o estudo também aponta para outros problemas que cercam a oferta e a qualidade da educação de jovens e adultos atualmente, e a necessidade de fortalecer as políticas relacionadas à modalidade.
É o caso da interrupção do Programa Nacional do Livro Didático para a Alfabetização de Jovens e Adultos (PNLA), criado em 2007 para distribuir gratuitamente material didático às entidades parceiras do Programa Brasil Alfabetizado (PBA).
O último edital do PNLD voltado para EJA foi aberto em 2013. Em 2017, houve apenas a reposição dos materiais, mas não a chamada para a apresentação de novas obras pelas editoras.
O uso de material didático único na EJA sempre foi controverso, porque, dada a diversidade da EJA, seria preciso que essa fosse uma política descentralizada, que garantisse mais pertinência sociocultural e abertura para modelos inovadores e uso de novas linguagens. Ainda que seja um apoio parcial, ele é importante, porque o professor de EJA geralmente tem uma jornada muito grande, tem pouco tempo para preparar aula e material. Mas, em vez de estarmos discutindo avanços, estamos correndo atrás do arroz e feijão que antes era garantido aos estudantes e professores da EJA”, explica.
Maria Clara di Pierro
Já Josevaldo aponta outros problemas nas escolas que frequentou, como a falta de alimentação adequada, a estrutura precária da instituição, a falta de acesso a equipamentos e de empenho político de se fazer uma educação mais bem preparada para as necessidades das(os) jovens, adultos e idosas(os):
No Centro de Formação Profissional João Amazonas, havia vários computadores, mas os alunos não podiam utilizá-los. O lanche que nos era servido era composto apenas de um suco de caixinha, uma banana e uma sopa – sendo que muita gente vinha direto do trabalho, como eu. Agora na escola estadual, não há papel higiênico nos banheiros e eu sinto uma falta de empenho da diretoria em fazer as coisas melhorarem”.
EJA é garantia de direitos
Josevaldo fazia parte dos quase 70 milhões de brasileiros e brasileiras com 25 anos ou mais que possuem educação básica incompleta (PNAD Contínua 2019) – quase metade da população do país nessa faixa etária.
Ele já trabalhou como coletor de resíduos sólidos, e hoje é mestre de capoeira e motorista profissional. “Trabalho há muitos anos com projetos sociais e, mesmo na área da cultura ou esporte, se você não tiver estudo, acaba perdendo espaço e não tendo o respeito que merece“, explica.
Além disso, ele entende que o mercado de trabalho tem exigido cada vez mais escolaridade das pessoas, principalmente por causa do uso da tecnologia:
O mundo está em evolução constante. Os veículos hoje em dia saem da fábrica muito mais modernos, com tecnologia avançada. Se você não tiver o estudo para saber lidar com isso – por exemplo, saber mexer no computador de bordo –, o carro pode travar no meio da estrada ou num posto de gasolina e você não vai conseguir sair do lugar”.
Josevaldo Rodrigues
Como o próprio Josevaldo já aponta, garantir educação com qualidade para toda a população é vantajoso sob todos os pontos de vista: econômico, social, cultural, político. Maria Clara di Pierro reforça:
Há fortes evidências de que, em um país com baixa mobilidade social como o Brasil, com intensa desigualdade, a elevação da escolaridade, principalmente das mães, contribui para interromper o ciclo de transmissão intergeracional da pobreza. A educação garante mais empregabilidade. Também sabemos que pessoas mais escolarizadas são menos onerosas para o sistema previdenciário, porque elas podem cuidar melhor de si mesmas, ter mais autonomia, acesso à informação e mais qualidade de vida. Elas também podem fazer leituras mais críticas dos meios de comunicação, participar mais ativamente da vida política, dentre outras questões”.
Mas, para além de todos esses motivos, é a garantia do mais básico de todos – o direito à educação – que deve nortear as políticas públicas voltadas para EJA. É essa luta que guia também o trabalho do Cenpec ao realizar produções como o relatório Em busca de saídas para a crise das políticas públicas de EJA.
Amabile Mansutti, consultora do Cenpec e coordenadora do documento, explica que:
Embora não tenhamos um olhar de conhecimento profundo sobre a EJA, o simples fato de ela existir no Brasil já denota uma violação do direito à educação – e, por isso, ela tem a nossa atenção e é uma causa que apoiamos. Além disso, o público dessa modalidade costumam ser as pessoas mais vulneráveis, adultos que não foram alfabetizados ou jovens que deixaram a escola. Como instituição educativa que trabalha com a missão de reduzir as desigualdades e promover a equidade, não temos como não olhar para essa modalidade, que hoje, como bem mostra o documento, está cada vez mais sucateada“.
Amabile Mansutti
Como nem toda população sem escolaridade básica completa é trabalhador urbano como Josevaldo, mas todas devem ter o seu direito à educação garantido, é preciso olhar com atenção como abordar toda essa diversidade na hora de pensar políticas públicas para a modalidade.
É o que espera Regina Estima, pedagoga e colaboradora do Cenpec que também trabalhou no relatório:
Temos que ter uma diversidade de atendimentos na EJA, porque os públicos já são variados. Ela atende desde o adulto que nunca foi pra escola – que chamamos de analfabeto absoluto – até os imigrantes que chegam para aprender a língua portuguesa. Há também as populações originárias, as comunidades quilombolas e os ribeirinhos, as populações do campo, ou mesmo os trabalhadores urbanos que estão empregados nas atividades manuais, mas longe da escrita. Não é à toa que é preciso aporte e suporte, tanto financeiro quanto pedagógico específico, para que a EJA seja ofertada com qualidade para todos e todas“.
Regina Estima
A EJA que queremos
Durante a pandemia, Josevaldo fez questão de garantir que seus três netos – um menino de sete anos e duas meninas, uma de cinco e outra de dois anos – mantivessem algum tipo de estudo, já que a escola onde estavam matriculadas(os) não enviou atividades.
Eu trabalhei com eles um pouco da questão verbal, passando alguns exercícios para fazerem no caderno. Em outros momentos, utilizava o YouTube, colocando vídeos de alfabeto, vogais, sílabas. Fui tocando dessa forma até o retorno das aulas presenciais. Eles gostaram muito de estudar comigo. São muito espertos, sabidos e espontâneos, aprendem com facilidade”, conta com orgulho.
Josevaldo Rodrigues
Ele e a família se apoiam nos estudos, incentivando um ao outro.
Foi do professor Caio Gerbelli que ele ouviu a seguinte frase, que hoje representa uma dicotomia: “a EJA que temos e a EJA que queremos”.
Queremos uma EJA em que a gente tenha mais o apoio dos governantes, que eles tenham um olhar um pouco mais preciso e com mais empatia para essa modalidade de educação.Essa oportunidade de voltar a estudar e concluir a educação básica é uma realidade hoje, mas não sabemos como vai ser amanhã. É uma luta diária. E tampouco é um favor: é um direito, que deveria ser mais valorizado, inclusive pelas pessoas que têm formação. Sofremos muito preconceito. Espero que a EJA tenha mais igualdade perante os demais estudantes, professores e sociedade como um todo“.
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