Olhar as taxas de reprovação, distorção idade-série e abandono escolar é reconhecer desigualdades e pensar propostas articuladas de enfrentamento a essa cultura. Saiba mais
Por Stephanie Kim Abe
Para Romualdo Portela de Oliveira, diretor de Pesquisa e Avaliação do CENPEC Educação, a imagem abaixo, presente no estudo Enfrentamento da cultura do fracasso escolar, é didática e direta.
A reprovação gera duas consequências nefastas: a primeira, mais radical, é o abandono. A probabilidade de um aluno já repetente abandonar a escola ou reprovar de novo é muito mais alta do que a de um aluno que nunca reprovou. O outro problema, que é a antesala do abandono, é a defasagem idade-série. Ou seja, a reprovação induz o abandono; o abandono induz a distorção idade-série; a distorção idade-série induz o abandono… eles se retroalimentam, são processos que ocorrem e que se potencializam. No fundo, são diferentes facetas do fracasso escolar.”
Romualdo Portela de Oliveira
O estudo, produzido pela Unicef Brasil em parceria com o Cenpec e o Instituto Claro, lançado na última quinta-feira (dia 28), faz uma análise desses dados, com recortes de cor/raça, sexo/gênero, classe e região geográfica, para mostrar como a cultura do fracasso escolar perpetua as desigualdades e ameaça o direito à educação principalmente de crianças e adolescentes em situação vulnerável.
Mais do que isso, alerta para o agravamento dessa situação, com a pandemia. De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), em outubro de 2020, o percentual de estudantes de 6 a 17 anos que não frequentavam a escola (ensino presencial e/ou remoto) foi de 3,8% (quase 1,4 milhão). Essa taxa é quase o dobro da média nacional de 2019, que foi de 2%.
Se somado esse número com os 4,1 milhões de estudantes que afirmaram frequentar a escola mas não tiveram acesso a atividades escolares, chega-se a mais de 5 milhões de crianças e adolescentes privadas do seu direito à educação em 2020.
“A pandemia aumenta o abandono escolar e a exclusão atinge sempre os mesmos, não importa de que forma”, diz Portela.
Panorama da cultura do fracasso escolar
O estudo faz uma análise dos dados da Pnad e do Censo Escolar, arranjados de forma não disponível publicamente. Em 2019, mais de 2 milhões de estudantes foram reprovados(as) (7,6% do total de matriculados) nas escolas públicas municipais e estaduais, cerca de 620 mil abandonaram a escola (2,2%), e mais de 6 milhões estavam em atraso escolar de dois ou mais anos (distorção idade-série) (21%).
O número de estudantes reprovados(as) é maior nos anos finais do ensino fundamental (cerca de 900 mil alunos, ou 42,6% do total), mas o ensino médio concentra o maior percentual (10%). A taxa de abandono escolar na última etapa da educação básica (5,5%) também é o dobro da média nacional (2,2%).
Ainda que a distorção idade-série seja maior nos anos finais dos ensinos fundamental e médio, Romualdo Portela chama atenção para os quase 1,5 milhão de estudantes em defasagem nos anos iniciais do fundamental. “Essa distorção idade-série já primeiros cinco anos de ensino é assustadora, e mostra um processo precoce”, diz.
Ao realizar recorte de gênero, raça, classe e região geográfica, o estudo evidencia que os mais impactados pela cultura do fracasso escolar são estudantes negros(as) e indígenas, os meninos, as pessoas com deficiência e aqueles(as) residentes nas regiões do Semiárido e da Amazônia (regiões Norte e Nordeste, principalmente). São, por exemplo, as populações negra (pretos e pardos) (5,5%) e a indígena (5,3%) as que mais abandonam a escola (5,5%). Além da reprovação, há outros fatores internos da escola que levam ao abandono dos estudos (como o desinteresse pelo currículo), e também externos – caso do trabalho remunerado ou da gravidez na adolescência.
Já os dados de distorção idade-série mostram as desigualdades regionais da escolarização: Norte e Nordeste apresentam as maiores taxas em todas as etapas de ensino.
“Sem o reconhecimento de que a melhoria dos resultados escolares, entendidos como a permanência e o sucesso dos estudantes em suas trajetórias, passa pela transformação das relações, pela inclusão, pelo combate ao racismo, ao sexismo, ao capacitismo, ao classismo, à LGBTfobia, não haverá mudança nos patamares atuais”, diz o estudo.
Olhar para cada escola, município, estado
O estudo traz os dados de todo o território brasileiro, mas é a partir das realidades locais que o enfrentamento à cultura do fracasso escolar começa de fato.
Cada estado, município e escola precisa realizar um diagnóstico inicial, que analise os dados de sua localidade para reconhecer como os indicadores de abandono, distorção idade-série e reprovação afetam seus(suas) estudantes.
Para Ítalo Dutra, chefe de Educação do UNICEF Brasil:
O que fica totalmente claro nesse contexto é que se não olharmos para esses dados com profundidade e atacarmos isso onde está acontecendo, que é na escola, não mudaremos nada. Por isso, o Unicef tem trabalhado fortemente em parceria com diversas organizações da sociedade civil e 10 estados para produzir um conjunto de apoios para estados e municípios enfrentarem a cultura de fracasso escolar.”
Ítalo Dutra
Esses apoios fazem parte da estratégia Trajetórias de Sucesso Escolar, do UNICEF Brasil. O site disponibiliza um painel interativo, no qual é possível acessar os dados de distorção idade-série, abandono e reprovação por estado e município. Dentro do painel de cada município, é possível ainda ver a situação de cada escola.
A análise desses dados é essencial para identificar em quais anos de cada etapa as reprovações se concentram, quais componentes curriculares têm maiores taxas de reprovação por ano, onde o abandono escolar é mais incidente, quais condições aumentam ou diminuem a distorção idade-série, se há diferença nas taxas por recortes de gênero e raça etc.
Enfrentando a cultura de fracasso escolar
A partir desse mapeamento inicial, é fundamental debater o cenário local com a comunidade escolar, garantindo uma visão mais humanizada desses dados e das possíveis soluções a serem tomadas para garantir uma trajetória escolar de sucesso a todos e todas.
A ideia é compreender e refletir, em conjunto, os elementos que apoiam a cultura do fracasso escolar. De acordo com o estudo, é importante identificar, por exemplo:
… o que justifica a reprovação nos anos/séries em que isso mais ocorre? O que cada uma das crianças reprovadas precisaria fazer ou saber para seguir em frente em sua escolarização e o que não saber determinados conteúdos acarretaria em sua vida, não apenas na vida escolar? É possível ser uma(um) cidadã(ão) em qualquer idade e não dominar alguns conteúdos escolares? É admissível dizer que uma parcela de adultos considerados ‘bem-sucedidos’ não domina ou sequer se lembra de determinados conteúdos propostos pela escola?”
Pesquisa Enfrentamento da cultura do fracasso escolar, 2021, p. 54.
Essas trocas alimentam estratégias concretas para o enfrentamento dessa cultura, que devem recair sobre diferentes aspectos que influenciam o fracasso escolar: da infraestrutura da escola às propostas pedagógicas, da gestão democrática ao combate às discriminações.
“O que precisamos essencialmente, é mudar o curriculo da escola, que significa tudo: a maneira como a escola é aberta, como a merenda é servida, como as aulas são desenvolvidas; a capacidade de integração dos professores de diferentes áreas para desenvolver competências, e não simplesmente falar de conteúdos”, defende Ítalo Dutra.
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