Como uma escola de Santa Catarina tem acolhido estudantes venezuelanas(os) e como funciona a metodologia do Comitê Internacional da Cruz Vermelha para garantir acesso à educação em territórios com confrontos armados
Por Stephanie Kim Abe
Desde 24 de fevereiro, mais de 1,5 milhão de crianças fugiram da Ucrânia. Isso significa que a cada minuto, 55 crianças ucranianas se tornam refugiadas desde o início da guerra neste país do leste europeu. “Este último número é particularmente chocante”, disse o porta-voz do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) James Elder, em pronunciamento à imprensa no dia 15 de março, em Genebra (Suíça).
De acordo com ele, essa é uma crise de refugiados “sem precedentes desde a 2ª Guerra Mundial, em termos de velocidade e escala”.
Essas crianças se somam a quase 12 milhões de outras, no mundo todo, que foram forçadas a deixar o seu país de origem, de acordo com dados do UNICEF. As crianças e adolescentes nessas condições enfrentam diversos perigos, entre eles a violência sexual, o sequestro ou rapto e a violação de seus direitos básicos, como o à Educação e Saúde. Sem contar os impactos psicológicos e emocionais que passar por essas situações e violências causam.
Como vivemos em um mundo globalizado, por mais que uma guerra esteja acontecendo a quilômetros de distância ou na nossa fronteira, é possível sentir seus efeitos e suas consequências por aqui – seja pelos impactos econômicos, geopolíticos ou sociais.
O Brasil recebe muitos imigrantes e pessoas refugiadas, principalmente da Venezuela. De acordo com o sistema de Tráfego Internacional, desde 2017 até hoje, são 325 mil pessoas refugiadas e migrantes da Venezuela no Brasil. Reconhecidos como refugiados(as) pelo Comitê Nacional para Refugiados (CONARE), esse número cai para 51 mil. E, por mais que não estejamos em situação de conflito ou guerra, temos crianças vivendo em territórios urbanos vulneráveis em meio a confrontos armados em diferentes cidades do país.
A seguir, conheça duas experiências que lidam com essas diferentes situações. Em uma delas, aprendemos como a equipe escolar tem buscado acolher estudantes imigrantes e refugiadas(os). Em outra, conhecemos como um órgão internacional de assistência humanitária adaptou seus próprios protocolos para criar uma metodologia que pudesse ajudar equipes técnicas a garantirem o acesso a serviços básicos, como à educação, em situações de conflito ou violência armada.
Escola Municipal Santo André, em Capivari de Baixo (SC)
Perdidos. É assim que chegam as(os) venezuelanas(os) à Escola Municipal Santo André, de acordo com a sua diretora Cláudia da Rosa Nascimento Lopes. Elas(es) são transferidas(os) de Roraima, onde atravessam a fronteira, e se instalam em uma casa da Cáritas que os acolhe no bairro da escola, na cidade de Capivari de Baixo (SC). O sul é a segunda região brasileira com mais venezuelanos (30%), atrás apenas do Norte (44,7%). Em Santa Catarina, há cerca de 11 mil venezuelanas(os) cadastradas(os) no cadÚnico.
Por isso, a escola atende hoje 32 crianças venezuelanas, matriculadas do pré ao 9º ano. “Se alguma coisa acontece com eles, se precisam de médico, qualquer ajuda, somos nós que vamos atrás, porque eles chegam perdidos. Hoje, a escola é um porto seguro para eles”, resume a diretora.
Mas nem sempre foi assim. Claudia começou a trabalhar na escola ano passado e percebeu, junto com a equipe docente, que as(os) estudantes venezuelanos(as) não estavam bem integradas(os) à escola.
“No planejamento dos professores, começamos a discutir alguns pontos que chamavam a atenção, como a falta de socialização deles. Eles geralmente se isolavam dos outros estudantes, ficavam apenas com os compatriotas, conversando na mesma língua. Também percebemos que eles sentiam muita vergonha, se sentiam discriminados. E os professores tampouco conseguiam se comunicar com esses estudantes, por uma barreira da língua”, explica Claudia.
Assim, a equipe escolar planejou diversas ações para melhor acolhê-los(as) na escola, agrupadas sob o Projeto ¡Se yó te entiendo, tu me entiendes! (“Se eu te entendo, tu me entendes!”, em português).
“Começamos a resgatar a cultura deles, perguntar como faziam as coisas em suas famílias. Chamamos avós para a escola, e trouxemos roupas, danças, culinária venezuelana. As mães acharam o máximo”, conta a diretora.
Também passaram a produzir cartazes, faixas e comunicados da escola em português e espanhol, assim como as(os) docentes começaram a aplicar as provas e fazer os materiais usados em sala nas duas línguas.
Com as crianças em alfabetização, as professoras têm buscado colocar um(a) brasileiro(a) com um(a) venezuelano(a), para que possam trocar experiências e um(a) ajudar o(a) outro(a).
Para garantir a integração, cada turma selecionou um(a) estudante para fazer parte do grupo Acolhedores, que eram as(os) alunas(os) responsáveis por enturmar as novas crianças venezuelanas que chegassem. “Em algumas turmas, eram os próprios venezuelanos que já estudavam na escola que faziam parte desse grupo. E eles ajudavam os outros a mostrar a escola, fazer amizades”, diz.
Para Claudia, esse trabalho de acolher as crianças imigrantes e refugiadas é o mesmo independentemente do país de origem delas. O que muda é a barreira linguística, segundo ela. Por isso, a sua dica para outras(os) profissionais que se encontrem com o mesmo desafio que ela é estar aberto ao outro e saber reconhecer o valor que cada um tem:
Somos muito acostumados a mostrar o que temos, mas precisamos dar a chance para que o outro traga alguma coisa diferente, mostre que ele também tem o seu valor, a sua cultura. É preciso reconhecer essa riqueza de culturas, essa troca. Nós aprendemos muitas coisas com eles e eles aprendem muito conosco. Isso é muito rico em uma escola.”
Cláudia da Rosa Nascimento Lopes
Confira a seguir depoimentos de diferentes atores da comunidade escolar neste documentário sobre o projeto:
Programa Acesso Mais Seguro, no Rio de Janeiro
Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV)
De acordo com a plataforma Fogo Cruzado, em 2019, 1.154 escolas públicas do município do Rio de Janeiro foram afetadas por pelo menos um tiroteio com a presença de agentes de segurança. Mais da metade delas (57%) tiveram até 10 situações dessa em seu território, sendo que quatro escolas concentraram 95 tiroteios em seu entorno.
É para tentar mitigar os impactos de episódios de confronto armado em escolas e outros equipamentos públicos que o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) criou o programa Acesso Mais Seguro para Serviços Públicos Essenciais (AMS).
“A metodologia partiu dos protocolos utilizados por nós, profissionais do Comitê Internacional, para oferecer, em locais de conflito, apoio humanitário para as pessoas. É uma adaptação do nosso plano de contingência, porque o contexto é outro, é de confronto armado em meio urbano. Então a metodologia vem para mitigar os impactos da violência urbana sobre os serviços públicos essenciais, como escolas, unidades de saúde, CRAS, CREAS etc. Não trabalhamos com a causa da violência, que é de responsabilidade do poder público atuar sobre. Trabalhamos apesar dela”, explica Janaína Figueiredo, assessora do programa Acesso Mais Seguro para Serviços Públicos Essenciais (AMS) do CICV.
No Rio de Janeiro, o projeto acontece desde 2017 com a Secretaria Municipal de Educação. Uma vez feita a adesão, a equipe treina um grupo de suporte, que é composto pela equipe técnica da Secretaria. Essas pessoas se tornam multiplicadoras e capacitam as(os) profissionais que atuam nas escolas a partir de uma escolha feita pela própria Secretaria de quais unidades de ensino se encontram em territórios de violência urbana e poderiam se beneficiar da metodologia. Apesar de indicados pela Secretaria, as escolas não são obrigadas a aderir ao Programa.
Na escola, é formado então o Grupo de Tomada de Decisão, que são as pessoas responsáveis pela aplicação das ações e formadas pela metodologia em cada instituição de ensino. Elas são responsáveis por criar um plano de contingência, que traz um panorama da localização geográfica, do número de estudantes e profissionais, da estrutura física e da rotina da escola.
É nele que as pessoas vão elencar, por exemplo, os lugares mais seguros da escola para direcionar as pessoas caso elas se vejam em um momento de confronto. Por isso, cada plano é único para cada escola. Uma vez aprovado e validado pela gestão da Secretaria, essa unidade tem autonomia para fechar, caso seja necessário.”
Janaína Figueiredo
A metodologia permite, assim, que as(os) profissionais das instituições de ensino estejam mais preparadas(os) para prever e lidar com essas situações.
“Eles aprendem a conhecer minimamente o entorno da escola para identificar as situações que podem gerar algum impacto. Por exemplo, se as ruas estão muito desertas em uma comunidade isso pode significar que algo está para acontecer. Dessa forma, eles não são pegos de surpresa”, acrescenta a assessora.
Apesar de ser aplicada em diferentes áreas, como saúde e assistência social, há particularidades do trabalho com a educação nessas situações que torna mais importante uma ação coordenada no momento de um episódio de confronto armado:
Numa unidade de saúde, todo mundo é adulto. As pessoas arrumam um jeito de se proteger, conseguem se organizar rapidamente para remarcar pacientes e depois ir todos embora. Nas escolas, não, por causa das crianças. É preciso esperar os pais virem buscá-las – sendo que eles são orientados a esperar a situação do território ficar mais tranquila para então se dirigir à escola. Então, muitas vezes, a instituição não tem mais aula, mas todos precisam ficar ali porque não podem deixar as crianças irem embora. Esse é um grande desafio para essas equipes.”
Janaína Figueiredo
Menos escolas fechadas
As escolas que aderem ao Programa são normalmente as que estão mais vulneráveis à violência armada, conforme explica Janaína:
“Não faz sentido uma escola que está na orla de Copacabana, na zona sul, aderir ao programa, já que não sofre tanto os impactos da violência armada no dia a dia como uma escola que está dentro de uma favela. São nessas áreas, aliás, que costumamos ter escolas com o Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica) é menor, porque a gente sabe como esses confrontos acabam impactando muito no aprendizado”.
De acordo com a pesquisa Tiros no Futuro, realizada pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), da Universidade Candido Mendes, e lançada em fevereiro deste ano, em escolas municipais do Rio de Janeiro com o entorno violento (seis operações policiais ou mais), os estudantes tiveram uma redução média de 7,2 pontos para língua portuguesa na escala do Saeb, o que representa:
“(…) uma perda de aproximadamente 64% do aprendizado esperado no 5º ano em língua portuguesa, mais da metade daquilo que se aprende durante todo o ano letivo. Em matemática, a perda é ainda maior: todo o aprendizado esperado nessa etapa de ensino fica prejudicado em função da exposição a operações policiais no entorno da escola”, diz o relatório final da pesquisa.
O Programa AMS, porém, ainda não tem muitos instrumentos para medir, por exemplo, se as crianças de escolas com profissionais formados no Acesso Mais Seguro conseguiram melhorar o seu nível de aprendizado uma vez adotadas as medidas do Programa. Mas já constataram que houve uma redução em torno de 40% do número de fechamento das escolas, mesmo que a violência tenha aumentado em alguns anos.
“Também queremos coletar indicadores com relação ao abandono e à evasão escolar, e em relação aos profissionais de educação. Sabemos que muitas dessas escolas têm dificuldade de encontrar professor que queira trabalhar nelas, que há uma alta rotatividade de profissionais devido ao entorno violento”, acrescenta Janaína.
O Programa AMS acontece por meio de parcerias com o poder público também em outras cidades brasileiras, como Porto Alegre (RS), Fortaleza (CE) e Duque de Caxias (RJ). No vídeo abaixo, é possível ver testemunhos de diretoras escolares, enfermeiras, agentes de saúde e equipe técnica de secretarias de Duque de Caxias (RJ) sobre o território e a formação do programa Acesso Mais Seguro:
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