Alfabetização: as diferentes abordagens e seus desdobramentos em sala de aula

-

Alfabetização: as diferentes abordagens e seus desdobramentos em sala de aula

Por Stephanie Kim Abe

Ano passado, tivemos a perda de duas importantíssimas pesquisadoras latinoamericanas da Educação: Magda Soares, que faleceu em janeiro, e Emilia Ferreiro, que faleceu em agosto. Ambas trouxeram importantes contribuições aos estudos da alfabetização, cujas ideias influenciaram e influenciam a formulação de políticas públicas e a formação docente.

Além disso, houve a retomada da Rede Latino-Americana de Alfabetização (Redalf), criada na década de 90 por pesquisadoras e pesquisadores que acreditam na perspectiva trazida pela argentina Emilia Ferreiro ao processo de alfabetização.

Ambas as educadoras e suas abordagens à questão são lembradas por Giovana Cristina Zen em entrevista ao Cenpec. Professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e presidente da Rede Latino-Americana de Alfabetização (Redalf), ela conversou sobre o panorama dos estudos em alfabetização no Brasil e na América Latina, e explicou como as diferentes abordagens à temática aparecem na sala de aula e nas políticas públicas.

Giovana defende a perspectiva construtivista psicogenética de alfabetização, aquela criada por Emilia Ferreiro – de quem foi orientanda durante o  pós-doutorado em Alfabetização (CINVESTAV – México) – e destaca como a psicolinguísta foi inovadora em suas pesquisas:

“Antes de Emilia, as pesquisas estavam mais focadas em entender como o professor ensina, e não em como a criança aprende. Do ponto de vista científico, ela foi revolucionária pois pediu às crianças que ainda não sabiam ler e escrever, em entrevistas, que escrevessem. Isso gerou um câmbio muito significativo em toda a produção intelectual sobre alfabetização. Essa perspectiva alterou a nossa compreensão sobre o que é escrita, sobre como as crianças aprendem e sobre como o professor ensina”.

Entenda mais sobre como Emilia Ferreiro revolucionou a alfabetização


Confira a entrevista completa a seguir.

Cenpec: Quais você apontaria como as principais tendências nos estudos sobre alfabetização no Brasil e na América Latina?

Giovana Cristina Zen: A alfabetização é um campo de muitas disputas entre diversas perspectivas que aportam seus próprios entendimentos sobre como crianças, jovens e adultos aprendem e como se deve ensiná-los. A principal controvérsia ainda reside sobre a apropriação das unidades menores da língua e cada abordagem se define principalmente pela forma como as relações entre oralidade e escrita são interpretadas.

Os estudos sobre consciência fonológica, desenvolvidos desde o final da década de 1970, sustentam o paradigma cognitivista e experimental, no qual as crianças são treinadas a pronunciar isoladamente os fonemas das palavras. Seus autores e defensores acreditam que, segmentando oralmente os fonemas das palavras e memorizando as letras, as crianças dominam a escrita alfabética.

No final dos anos 1970, Emilia Ferreiro e colaboradores inauguram uma perspectiva distinta e defendem um modelo de análise do processo de aquisição da escrita, no qual o dado, os observáveis e o sistema interpretativo se redefinem, mutuamente, durante o processo de aquisição. Para a perspectiva construtivista psicogenética, as unidades não estão dadas, mas necessitam um nível mínimo inicial de conceitualização, o qual reverte sobre os observáveis (enriquecendo-os), que, por sua vez, permite novos níveis de conceitualização, em um processo dialético.

Atualmente são vários os apelos à neurociência como forma de explicar como se processa no cérebro a aquisição da leitura e da escrita. Esses estudos procuram entender o caminho neural percorrido para que o cérebro se adapte e se modifique ao processamento da linguagem escrita.

Cenpec: Essas diferentes abordagens dialogam entre si?

Giovana Zen: Não necessariamente. Epistemologicamente há divergências entre a perspectiva construtivista psicogenética – a qual se filia a Rede Latino-americana de Alfabetização – e a neurociência.

A neurociência é uma área super importante, mas, a nosso ver, ela é insuficiente. Na nossa perspectiva, a escrita é um objeto cultural, um produto histórico da humanidade, um sistema de representação. Não é um código. Assim, não se trata simplesmente de uma habilidade de transformar sons em letras ou letras em sons, ou seja, não se restringe a esta codificação e decodificação. 

Com relação ao método fônico, ele é visto, por aquelas(es) que defendem a perspectiva construtivista psicogenética, como um retrocesso sem tamanho. Não há como dialogar essas perspectivas. E, infelizmente, passamos os últimos quatro anos de governo Bolsonaro tendo que explicar o que para nós era o óbvio, à medida que esse método voltou a ser defendido.

O maior problema destas abordagens não é nem a explicação que elas dão sobre como a criança aprende, mas os desdobramentos deles na sala de aula.

Cenpec: Como essas diferentes abordagens se traduzem em termos de propostas didáticas ou avaliações?

Giovana Zen: No caso do método fônico, vemos coisas que consideramos absurdas, como muito treinamento fonológico. Não há um respeito à infância, às culturas do escrito, à escrita como objeto cultural.

No caso da avaliação, essas abordagens costumam realizar testes de fluência leitora que cronometram, por exemplo, quantas palavras a criança oraliza durante um determinado tempo. Oralizar palavras, no nosso entendimento, não é ler. Oralizar palavras é simplesmente oralizar palavras. Esses exames não são situações avaliativas no sentido formativo do termo. Circulam pelo Brasil, inclusive, testes que propõem que as crianças leiam palavras inventadas, que não existem.

Para nós, isso é incompreensível. Temos um entendimento diferente sobre o que é ler. Para nós, ler é compreensão, é atribuição de sentido. Se eu pegar um texto sobre engenharia química, por exemplo, eu vou ter uma dificuldade muito grande para lê-lo, porque é uma área que eu desconheço completamente. Ou seja, minha fluência ficará comprometida, porque eu não tenho repertório para ler esse texto.

No âmbito da perspectiva construtivista psicogenética, defendemos que a efetiva participação nas culturas do escrito se constitui pela atividade construtiva do sujeito. É o sujeito que, a partir das interações com o objeto, reorganiza o mundo para compreendê-lo. O conhecimento produzido pela criança não é uma cópia fiel e linear da realidade, mas reorganizações lógicas e originais sobre as marcas impressas no papel.

Essa participação fundamental do sujeito não significa que as crianças são deixadas soltas. Muita gente diz que o construtivismo é espontaneísta ou que não requer intervenções – equívocos estes muito presentes no Brasil e que buscamos sempre lutar contra.

Temos uma série de pesquisas didáticas, principalmente na Argentina, que indicam caminhos sobre o que o professor precisa fazer para potencializar essa reflexão da criança sobre a escrita, para que ela possa avançar cada vez mais.

Por esse motivo, as intervenções didáticas realizadas pelas(os) professoras(es) precisam assumir o compromisso de problematizar o que as crianças pensam, o que implica reconhecer o que sabem sobre os usos e funcionamento da escrita e fazer algo com esses saberes.

Cenpec: Como as tendências nos estudos em alfabetização influenciam nas políticas públicas sobre o tema local e nacionalmente? Há alinhamento entre programas governamentais – por exemplo, o recente Programa Compromisso Nacional Criança Alfabetizada – e a abordagem construtivista psicogenética?

Giovana Zen: Há muita diversidade no Brasil, e não há uma perspectiva que prevalece.

As redes municipais sofrem influência (no sentido bom do termo) das políticas nacionais de formação de professores alfabetizadores – e por isso as políticas públicas são tão importantes.

Em algumas redes, vemos referência ao Profa (Programa de Formação de Professores Alfabetizadores), lançado em 2000, que disseminou a discussão sobre a perspectiva construtivista psicogenética no país.

Em outras, as pessoas fazem referência ao PNAIC (Pacto Nacional pela Alfabetização da Idade Certa), que foi um programa criado em 2012 que disseminou a perspectiva do Alfabetizar Letrando da Magda Soares. E há, ainda, lugares em que a referência é o Tempo de Aprender, programa do governo Bolsonaro que tinha como base o método fônico.

Nas universidades, a perspectiva hegemônica nos cursos de pedagogia costuma ser a do Alfabetizar Letrando também.

No âmbito do Programa Compromisso Nacional Criança Alfabetizada, nós temos algumas questões, como a avaliação da fluência leitora difundida como política de monitoramento das aprendizagens e a lógica meritocrática, como estratégia de reconhecimento profissional.

Mas a Redalf e a Associação Brasileira de Alfabetização (ABALF) estão em negociação com o Ministério da Educação para elaboração de um programa de formação de professores alfabetizadores que será disponibilizado aos municípios em 2025 no âmbito desse programa – o que representa um marco importante na formulação de políticas públicas.

Saiba mais sobre por que ficar de olho no Programa Nacional Criança Alfabetizada

Cenpec: Qual a importância de ter uma rede como a Redalf e como vocês devem trabalhar este ano para dialogar com as políticas públicas e trazer as descobertas acadêmicas para o chão da escola?

Giovana Zen: É compromisso da Rede difundir o conhecimento psicolinguístico e didático produzido por diversas(os) pesquisadoras(es) latino-americanas(os), a partir do marco construtivista psicogenético. É urgente que essa produção científica atualize as discussões para que se possa compreender de fato o que pensam as crianças quando estão diante do desafio de aprender a ler e a escrever e para que se possa entender, definitivamente, o quanto as(os) professoras(es) têm um papel importante na realização de intervenções didáticas que ajudem as crianças a avançar em suas conceitualizações sobre a escrita.

A Rede pretende reafirmar convicções e renovar o compromisso pedagógico, portanto, político, de professoras(es) que aprenderam a ensinar a ler e a escrever considerando o que pensam crianças, jovens e adultos, que levam em conta a sua inteligência, e que se negam, com veemência, a realizar práticas pedagógicas mecanicistas e espontaneístas.

Em 2024, a Rede Latino-americana de Alfabetização pretende:

  • reforçar a dimensão política da alfabetização na América Latina, especialmente em relação a políticas públicas e ações voltadas para a superação dos índices ainda expressivos de analfabetismo, exercendo posicionamentos críticos e políticos articulados, contundentes e representativos;
  • congregar as(os) profissionais dos países da América Latina que realizam atividades de pesquisa, formação, docência e outras relativas à perspectiva construtivista psicogenética, envolvendo, dentre outras(os), pesquisadoras(es), professoras(es) do Ensino Superior e da Educação Básica;
  • realizar e incentivar estudos sobre a perspectiva construtivista psicogenética, além de promover a sua divulgação em diferentes contextos e ambiências;
  • organizar e promover eventos acadêmico-científicos, atividades de produção e difusão de conteúdo.

Veja dicas sobre alfabetização e letramento

Veja também

Desafios da alfabetização no pós-pandemia
Alfabetização e letramento: em busca de uma política nacional articulada
Estratégias de leitura na alfabetização
O olhar amoroso na alfabetização de jovens e adultos
Oficina: Como ensinar usando jogos de alfabetização?