Bicentenário da Independência: o que a história da educação nos ensina?

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Bicentenário da Independência: o que a história da educação nos ensina?

Carlos Roberto Jamil Cury (UFMG) reflete sobre a importância de entender os últimos 200 anos para pensar soluções aos atuais desafios da educação

Por Stephanie Kim Abe

Há muitas formas de celebrar datas importantes, como a Independência do Brasil, que comemoramos hoje. 

Pode-se marcar a data com a reabertura de um museu, como o Museu do Ipiranga, em São Paulo (há nove anos fechado para reformas). Ou expor os restos mortais de personagens centrais desse episódio, como o coração de D. Pedro I, que proclamou a nossa independência às margens do rio Ipiranga. Ou ainda realizar desfiles cívico-militares, que vão acontecer em capitais como Brasília, Belo Horizonte e São Paulo.

Ao mesmo tempo — e talvez mais importante —, uma data que celebra um evento histórico pode servir para, justamente, rememorar essa trajetória histórica e analisar como o passado se reflete no presente. Pensar sobre como chegamos até aqui

Essa é a maneira que encontramos de marcar essa data no Portal Cenpec, fazer uma análise dos últimos 200 anos da educação brasileira. Para isso, conversamos com o professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais Carlos Roberto Jamil Cury. 

Na entrevista, o filósofo e pesquisador da história da educação brasileira fala sobre a importância desse olhar e discorre sobre algumas contradições e lições que podemos tirar das políticas educacionais brasileiras.

Foto: arquivo pessoal

a gestão […], no Brasil, tem uma característica de descontinuidade. Há muitas dimensões de políticas de estado que são convertidas em políticas de governo e, quando eles se sucedem, há uma espécie de esquecimento do que a(o) governante anterior fez de bom.”

Carlos Roberto Jamil Cury

Confira a entrevista!

Portal Cenpec: Em linhas gerais, como estudar a história da educação desde a nossa Independência nos ajuda a entender a educação do Brasil hoje?

Carlos Roberto Jamil Cury: O estudo da história da educação, desde a Constituição de 1824 — que foi a nossa primeira constituição imperial — contém dois aspectos importantes. De um lado, ele ajuda a entender as dimensões pelas quais a educação foi passando ao longo desses 200 anos. Por outro, faz uma ligação com os vários contextos de época, que marcam justamente essas dimensões dos tempos históricos distintos.

Dom Pedro I

Tomemos, por exemplo, a expressão “todos”, que está no título dos Direitos Civis e Políticos dos Cidadãos brasileiros na Constituição de 1824. Entre esses direitos civis e políticos, temos a chamada “instrução primária e gratuita”. Se observarmos os distintos momentos em que o direito à educação foi inscrito na Constituição e, em certa medida, efetivado ou não, veremos uma variação muito grande dessa expressão “todos”, de 1824 a 1988, data da atual Constituição.

Então esse “todos” vai adquirindo tonalidades muito distintas que ajuda a entender a educação — especificamente os processos de exclusão e inclusão — e, ao mesmo tempo, esse termo faz uma ligação com o contexto de época que nos ajuda a entender tanto o período quanto o significado que a palavra tomou naquele tempo.

Portal Cenpec: Quais foram esses períodos em que tivemos expansão do acesso à educação e uma ampliação desse “todos”?

Carlos Roberto Jamil Cury: Durante todo o Império (1822-1889), a dimensão desse “todos”, articulada à noção de cidadania, é muito restrita. Obviamente, foi um grande processo de exclusão das pessoas que eram cativas, dos caboclos e até mesmo de mulheres livres.

Rui Barbosa

Posteriormente, durante a Velha República (1889 – 1930), só poderemos ter uma ideia do que é esse “todos” se fizermos uma avaliação das Constituições estaduais. Isso porque a Constituição federal de 1891 só teve um aspecto de caráter nacional: a laicidade (a separação da Igreja e do Estado). Ela resultou na secularização dos cemitérios e dos cartórios civis e, sobretudo, no fim do ensino religioso nas escolas públicas. Então, nesse momento, deixou-se à autonomia dos estados dizer se a educação era gratuita ou não, se era para todos ou não. 

Foi apenas em 1934 que o conceito de “todos” se amplia, pois a nova Constituição institui a gratuidade e a obrigatoriedade da instrução primária para todos. Curiosamente, essa ampliação só se dá, de fato, em 1967, com a Constituição do período da Ditadura. Ela aumenta o direito à educação de quatro para oito anos, ao mesmo tempo que retira o financiamento da educação com a devida vinculação do texto constitucional.

Além disso, é com a Constituição de 1967 que se estabelece uma especificidade que é muito pouco lembrada ou vista como um dado natural, mas que não o é e que é muito importante: a faixa etária de “todos”. A educação passa a ser obrigatória e gratuita para o ensino de primeiro grau, que considera, à época, crianças e adolescentes de 7 a 14 anos. 

Foto: Promulgação da Constituição Federal de 1988 / Wikipedia

Por fim, na Constituição de 1988, a gratuidade se passa a incluir tanto o ensino médio quanto a educação infantil. Com as emendas constitucionais que se sucederam, principalmente a Emenda 59/2009, a obrigatoriedade e a gratuidade continuarão dentro da faixa etária de 4 a 17, mas com uma alteração significativa: a educação do ensino fundamental e médio continua sendo um direito público subjetivo, mesmo daqueles que não puderam entrar na escola na idade apropriada, ou que tiveram que sair antes de concluir essas etapas. 

Esses são dados importantes na Constituição com relação ao direito à educação. Agora, em cada um desses períodos é preciso analisar, sobretudo depois de 1934, quais políticas educacionais buscaram efetivar a dimensão inclusiva desse “todos”. 

Portal Cenpec: Vários(as) autores(as) apontam um movimento pendular nas políticas e legislação educacionais brasileiras. Como o senhor vê esses movimentos e analisa o contexto em que estamos hoje?

Carlos Roberto Jamil Cury: Primeiro, eu abstrairia da sua pergunta o atual governo, porque ele é verdadeiramente um desmonte tanto em questão de acesso, de tratamento, de diminuição de recursos, de crítica explícita à laicidade. O atual governo é uma antítese de tudo o que se postulou desde a Assembleia Constituinte de 1987-1988 até 2007. 

Paulo Freire

A partir da metade dos anos 1980, houve um empenho muito grande em contestar a desigualdade de acesso por uma ampliação dela ao então chamado “ensino de primeiro grau”, que depois se torna ensino fundamental. A noção de “acesso” passa a ser de acesso aos bens sociais, entre os quais a educação, bem como a saúde. Esses dois direitos, aliás, caminham simétrica e paralelamente ao longo da história em direção ao mesmo objetivo: ampliar a entrada.

Os anos 1990 caracterizam-se por uma oscilação entre políticas de caráter universal, portanto para todos e todas, e políticas educacionais de focalização, tanto no ensino fundamental quanto na diversidade. 

Abdias do Nascimento

No ensino fundamental, o Brasil assinou diversos tratados internacionais relativos à ampliação dessa etapa, que era gratuita e obrigatória, o que ocasionou certo esquecimento da educação infantil e do ensino médio. 

A diversidade apareceu muito fortemente nas emendas que se seguiram à Constituição de 1988, focalizando, por exemplo, as comunidades afrodescendentes, indígenas, nas pessoas deficientes, ou nas populações do campo. Mais recentemente, tivemos políticas que envolvem questões de gênero e de sexualidade. 

Não posso deixar de mencionar que houve, a partir sobretudo da atual Constituição, uma busca por diminuir uma desigualdade do tratamento, relativa aos insumos pedagógicos dos sistemas educacionais (material escolar, uniforme, merenda, transporte).

Ao mesmo tempo, foram estabelecidas diretrizes curriculares nacionais comuns a todas(os), estipulando determinados conteúdos que deveriam ser apropriados pelas(os) estudantes para reduzir a diferença de aquisição de conhecimento entre alunas(os) de estratos superiores e inferiores da renda.

Portal Cenpec: Ao olhar para o passado da educação, que padrões ou lições podemos perceber?

Carlos Roberto Jamil Cury: Primeiro, como somos um país federativo, vale analisar não só as políticas nacionais, como as políticas estaduais e municipais. Por exemplo, são muito badaladas as virtudes da educação na cidade de Sobral, no Ceará, ou do próprio estado do Ceará. Olhar para essas dimensões explicitam possibilidades que emergem da autonomia dos estados e municípios.

Cecília Meireles

Outro aspecto que nos diz muito é a gestão, que, no Brasil, tem uma característica de descontinuidade. Há muitas dimensões de políticas de estado que são convertidas em políticas de governo e, quando eles se sucedem, há uma espécie de esquecimento do que a(o) governante anterior fez de bom. Nosso olhar para o passado é sempre de desconfiança, por causa da descontinuidade, e eu fico com muito medo das falas que vejo em candidatas(os) atuais que dizem que vão fazer uma “revolução na educação”.

Felizmente, o que temos de grande continuidade foram os princípios e as normas da Constituição e, depois, uma especificação delas com o Fundef e o Fundeb. Isso tem segurado um pouco determinados desarranjos e descontinuidades, sobretudo com relação ao acesso.

Do ponto de vista do acesso, o ensino médio nos mostra uma oscilação muito grande ao longo do tempo em relação a como os governos buscaram levar adiante para essa etapa uma política que fosse universal e ao mesmo tempo garantisse o que está no art. 205 da Constituição. 

Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.”

Constituição da República Federativa do Brasil de 1988

O ensino médio ainda é um nó. É nessa etapa que ficam mais evidentes os reflexos das desigualdades socioeconômicas na educação. Isso é que é inerente à sociedade capitalista, apesar da nossa Constituição cidadã. O que fazer com essa etapa, portanto? Torná-la mais humanista ou mais calcada no científico, voltada para o ensino profissional? 

São oscilações perfeitamente inteligíveis, porque ao mesmo tempo que a cidadania postula igualdade, o sistema contém em si uma desigualdade, que precisa ser reduzida, conforme o art. 3o da Constituição. Qual é o limite da aceitação das desigualdades?

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II – garantir o desenvolvimento nacional;
III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.”

Constituição da República Federativa do Brasil de 1988

Portal Cenpec: Na sua opinião, as pessoas em cargos de poder e tomadoras de decisão têm olhado para a nossa história dos últimos 200 anos e aprendido com esse processo?

Deputado Mário Juruna, da etnia xavante, no plenário da Câmara Federal em discurso histórico em homenagem ao Dia do Índio, 1983. Foto: arquivo Fundação Leonel Brizola

Carlos Roberto Jamil Cury: Infelizmente, há um grande desconhecimento do passado por parte das(os) gestoras(es) educacionais. Boa parte delas(es) ignora todo esse peso que o colonialismo e a escravidão nos trouxe em termos de exclusão, e que permeou os últimos 200 anos. 

O caráter inclusivo de ‘todos’ ainda é muito recente. O risco de se derrapar em políticas equivocadas será muito menor se futuros gestores e gestoras tiverem um conhecimento um pouco mais aprofundado da história da educação. Ninguém quer reproduzir esse passado, quer melhorar o presente em vista do futuro. Por isso, precisamos nos atentar mais para esse passado. 


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