O que o aumento de pessoas que se autodeclaram pretas tem a ver com educação
Em 2022, 10,6% da população brasileira se autodeclarou preta, um aumento em relação aos 7,4% em 2012. Entenda por que esses dados são importantes para pensar política educacionais
Por Stephanie Kim Abe
“Eu não vivia como preta. Eu estou me vendo agora. Estou me vendo como preta com 25 anos.” “Estou entendendo o que eu não entendia, visualizando o que eu passo.” “Depois dessa conversa, estou me vendo como pessoa preta.”
Essas são algumas das frases que Mário Rogério Silva já ouviu em formações ou grupos estatísticos com os quais trabalha como diretor do Programa de Indicadores e Diagnóstico do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT).
São falas que vão de encontro ao que os mais recentes dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revelam quanto à questão da identidade e da autodeclaração da população brasileira.
Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua, em 10 anos, houve um aumento de pessoas que se autodeclaram pretas: de 7,4% em 2012 para 10,6% em 2022.
Neste mesmo período, a população que se autodeclara branca caiu de 46,3% para 42,8%.
Como construção social, a autodeclaração tem perspectivas temporais e locais, e tem uma fluidez. Ou seja, ela pode mudar ao longo do tempo. Esse aumento na autodeclaração de pessoas pretas se deve muito à atuação do movimento negro e, principalmente, do movimento das mulheres negras, que tem trabalhado fortemente na questão da autoestima, de se reconhecer negra(o), de se sentir confortável e ter orgulho de ser negra(o)“, explica.
Mário Rogério Silva, diretor do Programa de Indicadores e Diagnóstico do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT)
Para Claudiana Cabral, mestranda em antropologia e integrante da Comunidade Cenpec, esse trabalho realizado pelos movimentos negros tem gerado diferentes frutos:
Houve uma ascensão de jovens negros e negras que conseguiram adentrar nas universidades públicas e, com isso, levantar o debate sobre um novo olhar sobre si mesmas, reconhecendo e valorizando as suas origens. O Brasil é hoje um país em que se discute muito raça, seja nas redes sociais, seja na academia, e isso é importantíssimo”.
Claudiana Cabral, socióloga pesquisadora de raça e gênero e integrante da Comunidade Cenpec
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Enxergar a diversidade e a desigualdade
Movimentos que impulsionam o reconhecimento e a valorização da identidade e cultura negra têm possibilitado mudanças não somente na percepção da população negra, mas de toda a sociedade.
Considerando que a população parda compõe 45,3% da população, a população brasileira é, portanto, majoritariamente negra (parda ou preta), representando 55,9%.
Não somente os negros, mas todas as pessoas estão passando a ver beleza onde antes entendia como problema ou como um defeito da cor. Nesse sentido, toda a sociedade ganha com o crescimento da autodeclaração das pessoas pretas, porque passamos a ver a virtude e a beleza dessa diversidade que faz parte do Brasil, impulsionando um novo pensar”, diz.
Mário Rogério Silva (CEERT)
Claudiana ressalta o quanto esse novo olhar também permite reconhecer as desigualdades:
Temos nos preocupado mais em entender a formação do Brasil e a origem das desigualdades atuais. Quem foram as pessoas mais beneficiadas? Quem sempre teve acúmulo de riqueza ou acesso à educação? Ao nos reconhecermos e lutarmos por isso, acabamos por incluir também as pessoas mais vulneráveis por diferentes marcadores sociais, como os mais pobres – e entender porque também essas desigualdades se sobrepõem”.
Claudiana Cabral (Cenpec)
De acordo com dados da pesquisa Percepções sobre Racismo no Brasil, 44% da população considera que a raça/cor/etnia é o principal fator gerador de desigualdades no Brasil.
O estudo, de abrangência nacional com amostra de 2 mil participantes de 127 municípios brasileiros, é uma iniciativa do Peregum – Instituto de Referência Negra e do Projeto SETA – Sistema de Educação por uma Transformação Antirracista.
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Enfrentar o racismo
Ainda segundo a pesquisa, 92% das pessoas sentem-se minimamente confortáveis ao declarar sua raça/cor/etnia e 52% acreditam que a autodeclaração é muito importante.
81% das(os) respondentes acreditam que o Brasil é um país racista. A pesquisa também apontou que as pessoas pretas são as que mais sofrem racismo no Brasil e que:
“Embora a população identifique o racismo como um problema no país, muitas pessoas têm dificuldade em assumir sua presença nos espaços privados e mais íntimos de suas vidas. Grande parte concorda que o Brasil é um país racista, mas poucas assumem ter atitudes ou práticas racistas. Assim, existe um Brasil racista sem que as pessoas o identifiquem em suas próprias condutas ou experiências de vida”, como escrevem os organizadores no site da pesquisa.
Mário Rogério também vê um longo caminho entre a mudança na percepção da identidade e no combate de fato do racismo na sociedade brasileira:
O racismo e o racismo institucional é uma máquina que está atuante a todo momento. Não podemos achar que o problema está sendo resolvido apenas com a autoafirmação das pessoas pretas e pardas. O que elas estão percebendo é que, além do orgulho próprio, elas podem ocupar espaços de cidadania e ter acesso aos bens de direitos. Mas ainda temos um movimento largo e longo para superar o racismo. Não é tão simples, nem tão rápido.”
Claudiana Cabral
Promover uma educação antirracista
Ainda segundo a pesquisa Percepções sobre Racismo no Brasil, dentre os espaços onde as pessoas mais sofreram racismo, a escola/universidade foi a mais mencionada (38%), seguida do trabalho (29%) e dos espaços públicos (28%).
O dado aponta para a importância de se pensar nos espaços escolares como pontos centrais para o combate ao racismo.
Claudiana Cabral destaca as ações afirmativas, como as cotas nas universidades e institutos federais, e as leis 10.639/03 e a 11.645/08, que tornam obrigatório o ensino de cultura afro-brasileira, africana e indígena no ensino básico, como algumas das políticas que têm buscado reparar historicamente as desigualdades. Mas ela acredita que é preciso fazer mais:
É fundamental que essa discussão da autodeclaração aconteça nas escolas desde a educação infantil, porque a questão da identidade e da autoestima já está presente nos grupos de crianças de quatro, cinco anos. Para isso, é preciso que as professoras estejam conscientizadas da importância da autodeclaração e pratiquem uma educação antirracista. Elas precisam ensinar às crianças a riqueza das diferenças, das nossas raízes”.
Claudiana Cabral
Nesse sentido, surpreende que 27% das(os) professoras(es) não tenham declarado raça/cor no Censo Escolar da Educação Básica em 2022. Para Maria Amabile Mansutti, consultora e integrante da Comunidade Cenpec, esse dado evidencia ainda mais a importância do debate na escola.
Se quase 30% das(os) professoras(es) brasileiras(os) não se declaram, não temos um retrato bem delineado dessas(es) profissionais, o que impacta na formulação das políticas públicas. É fundamental que as escolas trabalhem intensamente pela conscientização sobre a importância da autodeclaração para uma educação antirracista. E isso precisa envolver não só docentes, mas toda a comunidade escolar, estudantes e suas famílias.”
Maria Amabile Mansutti
Em 2022, a Comunidade Cenpec criou a campanha Declarar pra respeitar, colorir pra educar, justamente com o objetivo de refletir sobre o que fundamenta o pensamento sobre autodeclaração no Brasil. A campanha trouxe artigos e vídeos curtos que tratam do tema, para serem trabalhados com a comunidade escolar.
Para o diretor Mário Rogério, é preciso fortalecer ainda mais a coleta e a análise de dados referentes a raça e cor, para que as políticas públicas possam ser pensadas baseadas em evidências:
“Os dados dão visibilidade às desigualdades – que sabemos que são enormes na educação. Para se construir uma educação antirracista, precisamos tirar a invisiblidade do racismo, que ocorre quando há ausência de informações. Os dados atestam a necessidade de políticas mais adequadas a uma população negra, que sabemos que hoje é majoritária, mas minoritária em relação aos privilégios”, diz.
Mário Rogério Silva, diretor do Programa de Indicadores e Diagnóstico do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT)
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