Centenário de Darcy Ribeiro: relembre suas propostas e o seu legado

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Centenário de Darcy Ribeiro: relembre suas propostas e o seu legado

Conheça mais sobre a vida e obra de uma das figuras mais importantes da educação brasileira

Por Stephanie Kim Abe

Sou um homem de causas. Vivi sempre pregando e lutando, como um cruzado, pelas causas que me comovem. Elas são muitas, demais: a salvação dos índios, a escolarização das crianças, a reforma agrária, o socialismo em liberdade, a universidade necessária. Na verdade, somei mais fracassos que vitórias em minhas lutas, mas isto não importa. Horrível seria ter ficado ao lado dos que nos venceram nessas batalhas.”

Ribeiro, 1994, p. 8.

Há vários motivos pelos quais você já deve ter ouvido falar de Darcy Ribeiro. 

Muito provavelmente você já ouviu falar nos Brizolões – como são comumentemente conhecidos os Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs) do Rio de Janeiro. Destoando das escolas tradicionais por sua estrutura que comporta cerca de mil estudantes, com projeto arquitetônico de Oscar Niemeyer, foram uma proposta inovadora de educação integral idealizadas por Darcy Ribeiro. 

Pode ser que você chame a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9.394/96) – uma das mais importantes legislações brasileiras na área – como Lei Darcy Ribeiro, já que ele foi o relator do projeto da atual LDB, quando atuou como senador, já nos últimos anos de sua vida. 

Há ainda quem o conheça como o primeiro reitor e criador da Universidade de Brasília, ao lado do educador Anísio Teixeira, do qual foi discípulo. 

Mas Darcy Ribeiro, antropólogo por formação, atuou como etnólogo no Serviço de Proteção ao Índio (SPI), conviveu com povos originários e concebeu o Museu do Índio. 

Mineiro nascido em Montes Claros no dia 26 de outubro de 1922 – há exatos 100 anos –, além de educador, também foi vice-governador e ministro da educação, escreveu livros e ajudou a reformular e fundar diversas universidades durante o período em que ficou exilado pela Ditadura Militar. Darcy Ribeiro faleceu em 17 de fevereiro de 1977, poucos meses depois da aprovação da LDB no Congresso. 

Foto: arquivo pessoal

Em comemoração ao seu centenário e dada a importância de seu legado para a educação brasileira, o Portal Cenpec conversou com Lúcia Velloso Maurício sobre as ideias e propostas de Darcy Ribeiro.

Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com pós-doutorado pela Universidade Complutense de Madri e Universidade Estadual do Ceará (Uece), Lúcia trabalhou com as políticas educacionais de Darcy Ribeiro nas duas gestões de Leonel Brizola e estudou a fundo essas experiências ao longo de sua vida. Hoje, é conselheira da Fundação Darcy Ribeiro.

📍 Confira a entrevista a seguir.


Lúcia Velloso Maurício: Darcy Ribeiro, um dos grandes mestres da nossa educação

Portal Cenpec: O que mais te marcou da época em que você trabalhou nas políticas de educação de Darcy Ribeiro, na década de 80 e 90? 

Lúcia Velloso Maurício: Eu lembro que a primeira gestão de Leonel Brizola (1983 – 1987) foi marcada de muito improviso, porque ainda não tínhamos uma nova Constituição, estávamos ainda atuando com as regras de sociedade que vingavam desde a Ditadura. Nesse momento, eu trabalhei na Escola de Demonstração, que era um projeto de uma escola voltada para a formação de professoras(es), localizada na periferia, em São Gonçalo (RJ). Foi com ela que eu comecei a ter contato com o projeto dos Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs).

Os CIEPs foram inovadores porque ofereciam uma diversidade de atividades e conhecimentos para as crianças das classes populares, que geralmente elas não têm acesso. Elas frequentavam aulas de danças, cursos de línguas e outras atividades dentro da escola pública, em uma oferta integral – atividades que as crianças da classe média geralmente acessam em instituições particulares. 

Para abarcar uma grande quantidade de estudantes por longos períodos de tempo, os CIEPs foram projetados por Oscar Niemeyer como prédios que abarcavam essa concepção de educação.

A ideia era implementar 500 CIEPs no estado do Rio de Janeiro, mas terminamos a primeira gestão com cerca de 200, tanto na capital como em outras cidades. Com a segunda gestão, entre 1991 e 1994, completamos a construção de 506 CIEPs.

CIEP, escola de período integral criada no governo de Leonel Brizola, no Rio de Janeiro. Foto: reprodução

Durante esse período, eu ocupei a Diretoria de Formação de Professores dos CIEPs e realizamos um trabalho intenso, marcante e inovador. Recebíamos professoras que ainda não eram concursadas para passar o dia inteiro nos Centros, sendo que metade do período era dedicado a dar aulas e a outra metade a fazer um curso de formação docente. Depois realizamos o concurso público e quem fez esse curso naturalmente tinha conhecimentos específicos e pontuação no currículo para passar com mais facilidade. Chegamos a formar 6,5 mil professoras(es) no estado do Rio de Janeiro dessa forma. Foi um trabalho que nunca mais ocorreu no estado nessas circunstâncias. 

Acabei realizando meu mestrado e meu doutorado sobre essas experiências que participei, e as propostas de Darcy Ribeiro para a educação acabaram virando o meu objeto de estudo pra vida inteira, tendo muito orgulho de poder promover e divulgar a obra e o legado dele.

Portal Cenpec: Na sua pesquisa de doutorado, sobre os CIEPs, você fala sobre o preconceito contra esse modelo, que foi bastante criticado. Conte um pouco mais sobre essas críticas que esse projeto recebeu tanto na época quanto ao longo dos anos. 

Lúcia Velloso: Na época da implantação dos CIEPs, uma crítica muito forte foi feita por toda a intelectualidade – inclusive pessoas do campo progressista – sobre o projeto, porque o viam como um caminho para Leonel Brizola se tornar presidente da república. 

O próprio Leonel tinha, de fato, um discurso com conotação muito assistencial sobre os Centros, em que ele enfatizava a oferta de alimentação, a assitência médica e outros serviços que seriam prestados nos CIEPs antes mesmo do projeto pedagógico. Ou seja, esses críticos se valiam dessas outras funções que a escola também prestaria, mas que não deveriam e não eram o objetivo primeiro do CIEP.

Eu costumo dizer que não me importa por que a criança chegou à escola, e sim o que fazemos com ela uma vez que ela está lá dentro. E o que o modelo das escolas do CIEP ofereciam eram atividades diversas às quais as crianças das classes populares não teriam acesso se não estivessem ali disponíveis coletivamente na escola. 

Daí o preconceito segmentado, que estudei durante o meu doutorado. Durante a minha pesquisa, percebi que o preconceito foi muito cultivado pela classe média, pela imprensa e, naturalmente, incorporado também por muitas(os) professoras(es). Não eram todas(os), claro, mas muitas(os) reclamavam que não tinham o trabalho valorizado, porque as crianças iam para a escola para comer, acessar outros serviços etc. 

Mas as opiniões divergiam. Alguns familiares, estudantes e funcionários tinham essa visão de que a escola oferecia muitas coisas boas, que não eram ofertadas nas outras escolas, e que ela possibilitava um tempo maior de cuidado, de atenção e de diversidade de materiais aos estudantes. 

📍 Quais os principais marcos da educação nos últimos 200 anos? Navegue pelo especial São dois pra lá, dois pra cá: passos da educação rumo à equidade.

Há quem criticasse os CIEPs por achá-lo uma escola muito cara, já que tinha uma estrutura para comportar mil crianças, em período integral, e com oferta de diversas atividades. Houve matéria na imprensa criticando o custo das piscinas, com fotos delas abandonadas. Mas por que não se coloca a pergunta: e se mantivéssemos as piscinas? Por que uma escola que está próxima de uma comunidade não pode ter uma piscina para que essas crianças e suas famílias possam ter acesso e usufruí-la, inclusive aos finais de semana?

A meu ver, essas críticas partem do mesmo lugar de quem discorda da política de cotas nas universidades. Ou seja, é um preconceito que vem muito da classe média, que acredita na meritocracia na hora de concorrer às vagas nas universidades. Por que o “povão” tem que ter acesso?

Precisamos olhar com muito cuidado toda crítica a projetos de educação popular. Claro, nem todos são uma maravilha; muitas vezes, são tentativas. Mas o que eles procuram é oferecer às classes populares aquilo a que elas geralmente não têm acesso. 

Lucia no painel em homenagem a Darcy por Linhas do Rio. Foto: arquivo pessoal

Portal Cenpec: Darcy Ribeiro defendia muito a cultura popular e os povos indígenas, tendo, ao longo da sua vida política, idealizado políticas públicas voltadas às populações e territórios mais vulneráveis. Como Darcy Ribeiro enxergava a inclusão e qual é o valor que ele dava a ela?

Lúcia Velloso: Para ele, inclusão não estava ligada somente à questão de pessoas com deficiência. Darcy acreditava em uma inclusão daquelas(es) que eram excluídas(os) socialmente, ou seja, tinha uma preocupação com a inclusão social. 

Ele dizia que as todas as crianças têm condições de aprender, contanto que se ofereçam a elas as condições para que esse aprendizado ocorra. Se elas não têm acesso a livros ou não têm um lugar para estudar, por exemplo, como irão aprender? Não aprenderão – e ficarão excluídas da sociedade, já que vivemos em uma sociedade letrada. 

É a mesma situação em que se encontram as pessoas que hoje em dia não tem acesso ao digital ou não sabem mexer com a linguagem digital. Elas são de certa forma excluídas da sociedade atual, que é conectada. Elas terão menos acesso a empregos e outra série de bens, serviços e direitos que são comuns a todos. 

A perspectiva de inclusão de Darcy Ribeiro era voltada para o lado social, ou seja, voltada para oferecer a todos e todas o acesso a educação pra garantir um futuro de cidadania. 

Portal Cenpec: Ao pensar nessa inclusão de diferentes grupos sociais, principalmente os mais marginalizados, a escola defendida por Darcy Ribeiro abria espaço para o conhecimento dessas pessoas? 

Lúcia Velloso: Darcy tinha um grande apreço pelo conhecimento e tinha a convicção que esse conhecimento universal tinha que ser acessível a todos a todas. 
Por outro lado, como antropólogo que era e como pessoa que viveu e conviveu com comunidades indígenas, ele defendia que era preciso fazer uma relação entre esse conhecimento universal e o conhecimento que as pessoas excluídas socialmente trazem. Porque elas têm sim um conhecimento. Elas participam, convivem, aprendem e ensinam outros saberes. 

Capa de Maíra. Foto: reprodução
Darcy, a literatura e os povos indígenas

O contato com os povos indígenas frutificou para o educador não apenas em estudos antropológicos, mas também em uma obra literária, o romance Maíra, publicado em 1976. A obra retrata um povo indígena fictício, os mairuns, segundo o próprio autor, inspirado em traços de vários grupos indígenas brasileiros. De acordo com seu próprio depoimento na introdução da edição comemorativa dos 20 anos da obra, essa foi uma cura para a incapacidade de produção intelectual mais sistemática. Uma forma de deixar a imaginação fluir.

“Pra mim esses mairuns já fizeram a revolução-em liberdade. Não há ricos, nem pobres; quando a natureza está sovina, todos emagrecem; quando está dadivosa, todos engordam. Ninguém explora ninguém. Ninguém manda em ninguém. Não tem preço essa liberdade de trabalhar e folgar ao gosto de cada um. Depois, a vida é variada, ninguém é burro, nem metido a besta. Para mim a Terra sem Males está aqui mesmo, agora”
(trecho de Maíra).

Portanto, a escola seria esse lugar de passagem: ao mesmo tempo que acolhe quem veio de uma cultura da oralidade, também desperta tanto nelas quanto nas(os) outras(os) estudantes o interesse para que queiram ter acesso a um outro tipo de conhecimento, tido como formal e que vem da cultura letrada.

Portal Cenpec: Como você acredita que Darcy Ribeiro olharia para as políticas públicas e as prioridades educacionais que estão postas atualmente pelo governo brasileiro?

Lúcia Velloso: Mais amplamente falando, ele defendia a democracia de forma muito incisiva. Ele defendia o respeito ao outro, a preservação da Amazônia, a garantia de sobrevivência dos povos indígenas – temas esses que definitivamente não estão na agenda do atual governo. Pelo contrário, vemos o oposto disso acontecendo. 

Darcy Ribeiro com indígenas da etnia Kadiweu, no Mato Grosso do Sul. em 1947. Foto: reprodução

Mas, em termos de educação, vou focar em uma política do Novo Ensino Médio especificamente, que acredito que seria muito criticada por Darcy Ribeiro. Para ele, as pessoas têm que aprender a ler, escrever e contar com facilidade porque isso é condição para participar e estar na sociedade. 

Ele sempre dizia que o melhor curso de profissionalização que se pode oferecer às classes populares é uma escola sólida da qual as(os) estudantes saem lendo, escrevendo e realizando operações matemáticas necessárias para a vida cotidiana. Porque, com essas bases, elas abrem seus próprios caminhos. 

Para Darcy, a profissionalização separada dessa formação mais ampla, de bases sólidas, só formará pessoas para serem adestradas profissionalmente. E a educação precisa desenvolver um pensamento crítico das(os) estudantes em relação às coisas, para que possam pensar por si só. Em sua visão, a escola deve acolher, mas também gerar autonomia nas crianças – o que não parece ser o foco de medidas como a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e o Novo Ensino Médio, que parecem engessar ou podar o caminho do povo a uma educação crítica. 

Portal Cenpec: Por fim, na sua opinião, o que mais marcou e formou o pensamento e as propostas de Darcy Ribeiro?

Lúcia Velloso: Eu costumo dizer que as propostas educacionais de Darcy Ribeiro foram marcadas por três grandes circunstâncias, que estão refletidas em seus ideais. 

A primeira foi a sua militância, desde jovem, no Partido Comunista Brasileiro (PCB). Foi esse envolvimento que trouxe a preocupação com o social – que aparece em todos os seus projetos. 

A segunda, a sua convivência com os povos indígenas, enquanto etnólogo do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), na década de 50. Nesse período, ele viu como a educação para esses povos era um trabalho da comunidade inteira e como aos 12 ou 13 anos de idade a criança indígena tem autonomia para sobreviver em sua sociedade. Ou seja, a educação forma cidadãos autônomos. 

A terceira, e não menos importante, foi a sua grande convivência com Anísio Teixeira, de quem foi discípulo confesso. Os pensamentos de Anísio orientaram todos os ideais de educação que Darcy defendeu ao longo de sua vida e das políticas públicas que implementou em cargos de gestão, como Ministro da Educação. 

Anísio Teixeira. Foto: reprodução

O Anísio era um homem que lutava pela intervenção do Estado na educação, pelo fortalecimento da escola pública estatal. Então não significa nada de privatismo, o privatismo é uma atitude desonesta. O Brasil tem algumas escolas particulares ótimas. Uma escola particular ótima custa tanto hoje, que a classe média não mais pode pagar; a classe média deve começar a brigar por uma escola pública boa, para ela poder ter uma escola pública boa, porque a boa escola particular é inatingível, mesmo para a classe média, pelos preços que ela passou a alcançar.

Darcy Ribeiro sobre Anísio Teixeira

Eu diria que Darcy Ribeiro, junto com Anísio Teixeira e Paulo Freire, foram os grandes orientadores da educação brasileira. 

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