Historiador Antonio Simplicio de Almeida Neto fala sobre como a educação pode beneficiar a luta dos povos indígenas, analisa a lei 11.645 e seu impacto no currículo
Por Stephanie Kim Abe
No começo do ano, a situação dos Yanomami ganhou os noticiários brasileiros e internacionais, mostrando a crise humanitária em que vive esse povo, cujo território ocupa parte de Roraima e do Amazonas.
Para algumas pessoas, porém, essa foi a primeira vez que souberam da existência desse povo indígena – apesar de serem um dos maiores povos originários da Amazônia. Infelizmente,essa não é a primeira vez que povos indígenas aparecem nos noticiários pela violência que sofrem.
Em artigo Por que ensinar história e cultura indígenas?, publicado no livro Povos indígenas entre olhares (Edições Sesc São Paulo e Editora Unifesp, 2023), o professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) Antonio Simplicio de Almeida Neto traz diversos questionamentos em relação a esses acontecimentos, reflete sobre a forma como a sociedade brasileira enxerga – ou não – os povos indígenas e como a educação pode influenciar nessa visão.
“Os indígenas não são percebidos, via de regra, como sujeitos da sociedade, como sujeitos humanos. Evidentemente, eles não são o único grupo que sofre com essa visão – as pessoas em situação de rua também, por exemplo”, diz o professor.
Em conversa com o Portal Cenpec, o professor doutor em educação pela Universidade de São Paulo (USP) fala sobre como a história e a cultura dos povos originários têm aparecido nos currículos e nos materiais didáticos e como a abordagem realizada em sala de aula pode ser determinante para que possamos enxergar melhor a trajetória e importância desses povos e, assim, nos enxergarmos melhor como sociedade brasileira.
É claro que a educação não é a grande culpada por todo esse desrespeito e violações aos direitos dos povos indígenas, embora muitas vezes ela apareça como a grande culpada. Ela tampouco vai resolver todos os problemas. (…) Mas a educação pode sim ter uma parcela de contribuição, transformando esses indígenas em sujeitos da história e trazendo um olhar mais humanizante para esses corpos“, diz Antonio.
Confira a entrevista completa abaixo.
Portal Cenpec: Por que é importante e necessário trabalhar a história e a cultura dos povos originários na educação básica?
Antonio Simplicio de Almeida Neto: Eu começo o meu artigo Por que ensinar história e cultura indígenas? citando diversos casos de violência contra os indígenas que aparecem na mídia para evidenciar que os indígenas não são percebidos, via de regra, como sujeitos da sociedade, como sujeitos humanos. Evidentemente, eles não são o único grupo que sofre com essa visão – as pessoas em situação de rua também, por exemplo.
Nesse sentido, eu uso como referência a filósofa Judith Butler, que no livro Quadros de guerra (Civilização Brasileira, 2015) diz que haveria na nossa sociedade seres humanos que seriam menos humanos, vidas que não são consideradas vidas, e que, portanto, acabamos por desprezá-las. Ou seja, o que acontece com elas acaba não nos atingindo tanto. Então pode morrer um indígena ou dez, mil, que vamos mudar de canal e passar para o próximo assunto.
É claro que a educação não é a grande culpada, a meu ver, por todo esse desrespeito e violações aos direitos dos povos indígenas, embora muitas vezes ela apareça como a grande culpada. Ela tampouco vai resolver todos os problemas.
Afinal, nós somos formados pelo que se passa na televisão, o que está escrito nos livros, nos jornais e, hoje em dia, o que vemos na internet, além das outras instituições, como igrejas, que confluem para a nossa formação.
Mas, se nós considerarmos que passamos uma boa parte da nossa vida nas escolas, aquilo que nós aprendemos na escola nos constitui como sujeitos, portanto, a educação pode sim ter uma parcela de contribuição, transformando as(os) indígenas em sujeitos da história e trazendo um olhar mais humanizante para essas pessoas.
Além disso, essa abordagem na escola é importante para nos percebermos como um povo que é negro e é indígena. Tanto do ponto de vista de fenótipo quanto do ponto de vista cultural. O nosso jeito de ser, a nossa identidade e, talvez, a nossa grande contribuição para a humanidade, é constituída essencialmente por esses grupos. Mas o que vemos é a sociedade brasileira insistindo em se afirmar branca, europeia, católica. Essa percepção se deve, em grande parte, porque nós fomos formados de costas para as pessoas negras e os indígenas.
Portal Cenpec: Como é essa abordagem curricular das questões indígenas que não contribui para um olhar humanizante e para a construção de uma identidade brasileira que reconheça esses povos?
Antonio Neto: O ensino de história no Brasil começou a existir na primeira metade do século 19. Naquela época, havia pouquíssimas escolas e elas eram frequentadas por uma pequeníssima parcela da população, claro. Mas se pegarmos já os livros didáticos daquela época, veremos que o olhar que nós tínhamos sobre nós mesmos era o olhar do Brasil que seria branco, europeu, católico, sendo que o indígena e o negro não apareciam. Desde então, o Brasil sempre negou a presença desses dois povos em nossa sociedade.
No século 20, uma solução encontrada na educação era colocar os povos indígenas apenas no período colonial. Depois, eles desaparecem do ensino da história. É como se disséssemos: “os indígenas existiram, mas sumiram, e vamos agora rumo à civilização europeia, retomar o progresso”. Ou seja, o indígena e o negro eram vistos como sinais de atraso. Para o Brasil progredir, ele precisaria “melhorar” a sua raça.
Essa abordagem dos povos indígenas apenas no passado colonial faz com que nós os vejamos apenas como povos extintos, que não tem história, ou que ficaram congelados no tempo.
🎧 A importância, desafios e experiências de apresentar a história e cultura dos povos indígenas nas escolas: esse é o tema do primeiro episódio do podcast Educação na ponta da língua. Confira ao lado:
Além desses casos em que esses povos aparecem – ou reaparecem – em outros períodos da formação da nossa sociedade como sujeitos a-históricos, que não têm historicidade – ou seja, que não mudaram ao longo do tempo –, eles também aparecem como meros objetos da ação do homem branco colonizador, e não como sujeitos de ação.
Não é à toa que hoje ainda algumas pessoas ficam espantadas ao verem um indígena de calça jeans ou usando um celular, ou tenham a imagem dos povos indígenas como um povo preguiçoso. São imagens fruto dessa formação que congela a imagem dessas pessoas.
Claro que ainda existem sim povos indígenas isolados, que vivem na floresta, e que não têm contato com a sociedade. Mas, como todos os povos, eles também se transformam e têm historicidade.
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Portal Cenpec: Que exemplos práticos você daria sobre a forma como essa abordagem poderia ser diferente na escola?
Antonio Neto: O organizador desse livro do qual o meu artigo faz parte, o professor André Roberto de A. Machado, tem pesquisas sobre indígenas que mostram, por exemplo, como eles assimilaram elementos da cultura branca portuguesa no período colonial e no período monárquico e os utilizaram a seu favor. Por exemplo, história de indígenas que requereram ao rei de Portugal a sua condição de cidadãos brasileiros e que, portanto, não poderiam ser escravizados.
Esses fatos dão outra condição aos povos indígenas. Tornam-nos efetivamente sujeitos da história – quer dizer, eles não estavam passivos diante do poder da metrópole. A sua maneira, eles assimilavam elementos da cultura do dominante e as utilizavam a seu favor. É como pensar, contemporaneamente, nos indígenas atuais que estudam, fazem mestrado, doutorado e usam os meios de comunicação. E isso tudo não os torna menos indígenas.
Quando se trabalha com a história e a cultura indígena de maneira evidentemente adequada e crítica, dá-se aos indígenas uma historicidade. Mostra-se que os indígenas existem hoje e não são iguais aos indígenas do período colonial. E contribui-se para outro olhar, mais humanizante, de vidas visíveis.
Portal Cenpec: Como você analisa as contribuições que a Lei 11.645/2008 trouxe para a inclusão e a abordagem dessa temática no currículo escolar?
Antonio Neto: A Lei de fato é um marco importante na história da educação recente, mas nem tudo começou com ela.
Nos anos 1980, quando eu era um jovem professor da educação básica, lembro que eu e alguns colegas mais engajados trabalhávamos – de maneira um pouco inocente até, reconheço hoje – alguma coisa que nós chamávamos de “a questão indígena”. Tinha esse nome meio genérico que aparecia em algum livro paradidático que algumas editoras já lançavam naquela época. Ou seja, já havia naquele momento alguns de nós que tentávamos, de alguma maneira, ainda que com equívocos, garantir essa perspectiva diferente na abordagem da história indígena na educação básica.
Mas, com a lei, nós tivemos exigências novas no Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD) para os livros didáticos, garantindo que a história e a cultura indígena fossem abordadas. Então ela vai forçando a barra aqui e ali, fazendo com que mudanças lentamente venham a ocorrer.
A transformação é lenta e demora para chegar nas escolas efetivamente porque as(os) professoras(es) da educação básica raramente têm esse tipo de conteúdo ensinado na sua graduação. Eu mesmo, quando fiz graduação nos anos 80, não aprendi sobre essa abordagem das questões indígenas. Então muitos professores só vão saber tratar do assunto se se interessarem pela temática e correrem por fora, buscando por conta própria as leituras necessárias. Por outro lado, sabemos que o cotidiano escolar da educação básica não ajuda as(os) profissionais a fazerem esse esforço. Por isso as mudanças práticas demoram.
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Portal Cenpec: Que mudanças pedagógicas ainda precisam ser feitas para garantirmos o cumprimento da Lei 11.645/2008?
Antonio Neto: Acho importante reforçar que o texto da Lei coloca, por excelência, a inclusão da cultura e história dos povos indígenas nas disciplinas de história, literatura e arte.
Mas isso não quer dizer que outras disciplinas não possam trabalhar a temática. Muito pelo contrário: uma(um) professora(or) de matemática, de educação física ou de qualquer outra disciplina escolar também pode trabalhar nas suas aulas esses conteúdos. A(O) professora(Or) de literatura pode trabalhar com textos e autoras(es) indígenas – há, inclusive, várias(os) sendo editados hoje.
Uma(Um) professora(or) das séries iniciais do Fundamental II, que tem uma formação genérica e plural, pode trabalhar a temática indígena para além do dia 19 de abril. Ela tem que ser trabalhada ao longo do semestre do ano letivo – e não deve ser trabalhada como exceção.
Por exemplo, ainda vemos escolas que fazem atividades em que os alunos se pintam como indígenas. Mas quando vamos trabalhar a história da Itália, por exemplo, eu não faço meus alunos se fantasiarem de italianos, certo? Ou seja, não dá para trabalhar como se fosse algo exótico.
Trabalhar com a história e a cultura indígena precisa ser incorporado no cotidiano das práticas escolares, surgir naturalmente dentro de um planejamento anual, como todos os demais conteúdos e contemplando todas as diversas disciplinas.
Saiba mais:
📃 Art. 1o O art. 26-A da Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar com a seguinte redação:
“Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena.
§ 1o O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil.
§ 2o Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos povos indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de educação artística e de literatura e história brasileiras.” (NR)
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