Terceiro encontro da série Socioeducação em Debate discute os 29 anos do ECA e as perspectivas de garantia de direitos a adolescentes em medida socioeducativa
Por João Marinho
Aconteceu, na última quinta-feira (25), o terceiro encontro da série Socioeducação em Debate, que trouxe como tema 29 anos do ECA: balanços e perspectivas – e contou com as participações de Maria de Lourdes Trassi Teixeira, professora do curso de psicologia da PUC-SP e especialista em medidas socioeducativas; e Flávio Américo Frasseto, defensor público do estado de São Paulo. A mediação foi de Marília Rovaron, coordenadora de projetos do CENPEC Educação. Assista ao vídeo na íntegra.
Da situação irregular à proteção integral
Dia 13 de julho de 1990. Após um intenso debate que contou com políticos, especialistas e sociedade civil organizada na esteira da Constituição de 1988, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) é aprovado pelo Congresso e vai a sanção do presidente, Fernando Collor de Mello.
Ainda hoje, o ECA é considerado uma das legislações mais avançadas do mundo no que diz respeito à infância e adolescência – mas, quase três décadas depois, há apenas o que comemorar? Quanto do Estatuto já foi implementado e quais os desafios para a efetiva garantia dos direitos de crianças e adolescentes no País, em especial os que estão em medida socioeducativa? Esses foram os temas da terceira edição do Socioeducação em Debate.
“Após 29 anos, o ECA não ainda não foi totalmente implementado”, respondeu Marília Rovaron, na abertura do evento. A coordenadora de projetos traçou, ainda, um comparativo histórico entre o Código de Menores – cuja última versão vigorava desde 1979 – e as conquistas do ECA.
A principal mudança, refere Rovaron, foi a substituição da doutrina da situação irregular pela doutrina da proteção integral. Em artigo publicado na Revista da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ), o desembargador Guaraci de Campos Vianna informa sobre o conceito de situação irregular presente no Código de Menores:
O Código de Menores de 1979 atualizou a PNBM [Política Nacional do Bem-Estar do Menor], formalizando a concepção ‘biopsicossocial’ do abandono e da infração e explicitou a estigmatização das crianças pobres como ‘menores’ e delinquentes através da noção de ‘situação irregular’ expressa no artigo 2º: Para os efeitos deste Código considera-se em situação irregular o menor: I-privado de condições essenciais à sua subsistência, saúde e instrução obrigatória, ainda que eventualmente em razão de: a) falta, ação ou omissão, dos pais ou responsável; b) manifesta impossibilidade dos pais ou responsável para provê-las; II- vítima de maus-tratos ou castigos imoderados impostos pelos pais ou responsável; III- em perigo moral, devido: a) encontrar-se, de modo habitual, em ambiente contrário aos bons costumes; b) exploração em atividade contrária aos bons costumes; IV- privado de representação ou assistência legal, pela falta eventual dos pais ou responsável; V- com desvio de conduta em virtude de uma grave inadaptação familiar ou comunitária; VI autor de infração penal.“
Já o ECA, ainda segundo Vianna, surge como resultado do artigo 227 da Constituição de 1988, que passa a estabelecer a criança, e não mais “o menor”, como sujeito de direitos plenos. “É uma mudança radical e o início de uma nova fase na compreensão do problema da criança marginalizada, abandonada ou infratora. Não se trata de impunidade do crime, mas de respeito à dignidade de cada ser humano, notadamente dos mais fragilizados”, diz o desembargador no citado artigo.
Avanços, contrastes, retrocessos
O contraste entre a política menorista, anterior à Constituição cidadã, e a visão de crianças e adolescentes como sujeitos de direitos foi uma das tônicas do encontro – mas não significa que esses direitos estejam integralmente garantidos.
A especialista iniciou sua participação relatando que, a cada aniversário do ECA, as avaliações se repetem, notadamente no que diz respeito às medidas socioeducativas: o Brasil ainda resiste a aplicar integralmente o ECA, e uma visão conservadora que remete ao menorismo continua presente entre juízes, desembargadores e demais operadores do direito.
Mais do que isso, o País segue a desconfortável tendência de um genocídio de jovens e adolescentes – principalmente negros –, conforme o Atlas da Violência 2019, publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e segundo o qual o País tem uma juventude perdida.
A sociedade e os defensores dos direitos humanos, os militantes e profissionais da área da infância e da juventude estamos perdendo essa batalha para o extermínio da nossa juventude (…). Em 2017, 35.783 adolescentes e jovens assassinados: taxa de 130 por 100 mil. A ONU diz que já é alarmante a partir da taxa de 10 por 100 mil. Os adolescentes em medida socioeducativa são os que sobreviveram e ainda não foram assassinados.”
Lurdinha Trassi
A especialista também chamou a atenção para o incremento da violência policial e para a perseguição sofrida por adolescentes em medidas socioeducativas de meio aberto (MSE-MAs), crescimento das facções criminosas, além da importância da participação dos municípios em políticas preventivas de violência.
Trassi alerta para os perigos do contexto político atual, em que cresce o apoio para o fortalecimento de medidas de restrição de liberdade e redução da maioridade penal, que imporiam ainda mais desafios à implementação do ECA, notadamente aos adolescentes em medidas socioeducativas.
Resistir à obscuridade
Flávio Frasseto iniciou a participação avaliando a recorrência do que denominou de períodos críticos e desanimadores, que se refletem no campo do regramento jurídico e legal.
O Estatuto traz um projeto civilizatório às relações do mundo adulto com o mundo infanto-juvenil extremamente ambicioso. É natural que, passados 30 anos, não tenhamos conseguido fazer com que tudo que está lá saia do papel.
Também é importante que tenhamos claro que o modelo que o Estatuto propõe é muito vinculado a uma determinada visão de Estado, incorporada na Constituição Federal de 1988, que é uma visão de Estado democrático social (…).
O que temos hoje no governo atual, [porém], é uma leitura de que o Estado tem um outro papel, mais na linha de um Estado mínimo, (…) o que traz um impacto muito significativo em termos de implementação.”
Flávio Frasseto
Entre os desafios do contexto atual, Frasseto citou a tendência de apoio ao endurecimento de penalidades aos adultos, que pode refletir-se também em relação a jovens e adolescentes, e a resistência de operadores do direito em efetivamente observar as garantias do ECA.
“Permanece uma cultura ‘neomenorista’, que interpreta o ECA à luz dos preceitos do Código de Menores, fazendo surgir uma jurisprudência que procura deslegitimar o Estatuto”, comentou o defensor.
No entanto, Frasseto aponta que também havido uma modificação lenta, no sentido de que o sistema de justiça tenha uma compreensão mais equilibrada do que são as medidas socioeducativas à luz do Estatuto da Criança e do Adolescente e quando e como devem ser implementadas.
Nesse sentido, aponta o especialista, se insere a aprovação da Lei nº 12.594/2012, que institui o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), regulamenta a execução das medidas socioeducativas destinadas ao adolescente que pratica ato infracional e reduz a discricionariedade judicial nessas medidas, além das discussões sobre a justiça restaurativa.
No cômputo geral, apesar das dificuldades, Frasseto faz uma avaliação positiva no sentido de que, nos quase 30 anos de vigência do ECA, foram construídas instituições, legislações e políticas que não podem ser integralmente destruídas em um período de tempo tão curto. “É preciso resistir ao cenário obscuro”, diz o defensor público.
Rimas para alfabetizar
Presente ao debate, José Paulo, mais conhecido como Pê ou Mestre Pê, é arte-educador, MC (mestre de cerimônias no hip-hop) e já integrou o projeto Educação com Arte: Oficinas Culturais, parceria entre o CENPEC Educação e a Fundação CASA. Pê é de Juiz de Fora (MG) e está envolvido com o hip-hop pelo menos desde 1984. Em 1989, veio para São Paulo e hoje é um dos integrantes da “velha guarda” do rap nacional.
O arte-educador, que atualmente desenvolve o projeto Pé de Palavra, voltado a crianças, opõe-se à tendência atual de ampliar as medidas de restrição de liberdade e de apoio à redução da maioridade penal (veja o vídeo ao final) – e concedeu entrevista ao Portal CENPEC Educação.
CENPEC Educação: Como surgiu o Pé de Palavra? Mestre Pê: O projeto nasceu da necessidade de dialogar com o público infantil e juvenil e veio de uma vivência pessoal.
Eu tenho uma história de arte-educação de 20 anos com adolescentes e adultos jovens, mas, quando fui fazer um trabalho numa comunidade na zona norte de São Paulo, me deparei com um garotinho de seis anos dançando funk carioca, com uma lírica que não era adequada à idade dele, e fazendo “arminha” com os dedos, às 7h10 da manhã
Toda aquela situação me fez perguntar o que eu estava fazendo para aquela garotada, como agente do hip-hop.
Comecei, então, a trabalhar rimas com eles, por meio de trava-línguas, o que deu o gancho para iniciar o Pé de Palavra, que mantém o ritmo, o beat do hip-hop, mas com a lírica propícia para atingir crianças em fase de alfabetização.
CENPEC Educação: E como você se envolveu com essa área de arte-educação e no trabalho com adolescentes e jovens em medidas socioeducativas? Mestre Pê: Tenho um histórico pessoal de passagem por abrigo, que hoje são chamados de casas ou centros de acolhimento e, ali, eu já fazia brincadeiras de trava-línguas com os pequenos.
Quando comecei dentro do hip-hop, vivenciei um momento do rap brasileiro em que havia uma questão criminal muito forte, que me incomodava: ao mesmo tempo que se denunciava a miséria, também havia uma glamorização dessa miséria e do crime.
Nesse contexto, havia um núcleo dentro do hip-hop, do qual eu participava, que avisava à sociedade que o universo criminal estava mudando e viraria o que hoje se concretizou – e isso já lá, na década de 1990, com o fortalecimento das facções e os adolescentes realizando delitos mais graves.
Fui trabalhar na área de medidas socioeducativas de privação da liberdade por causa dessa questão criminal – e me deparei com adolescentes nascidos e criados em uma das maiores metrópoles do mundo, São Paulo, que não sabiam ler nem escrever.
Por meio das rimas, passei, então, a trabalhar nesse universo da adolescência que tinha defasagem na alfabetização.
Meu primeiro trabalho foi na antiga FEBEM Tatuapé, onde entendi o que era trabalhar com arte-educação e as situações e o contexto vivenciados pelos e pelas adolescentes.
Depois que me graduei em pedagogia, uni esse elemento da rima com os adolescentes e os trava-línguas com as crianças para desenvolver o Pé de Palavra.
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