Entenda como a educação e a alfabetização indígena nasceram dos pensamentos de Paulo Freire
Por Stephanie Kim Abe
“A gente quer escola para aumentar o conhecimento do modo de tratar o branco. Será que a gente está condenado toda a vida a viver pequeno? Vida de Iranxe, branco não precisa vir ensinar para nós. (…) A gente precisa ser Iranxe, mas precisa saber tratar com os brancos do jeito dos brancos também. Precisa ir para a frente nas coisas do conhecimento. (…) Queremos aprender para tratar branco de igual para igual. (…) Professor que não respeita, a gente manda embora mesmo, porque escola é coisa de educação e o respeito é coisa que deve andar sempre com o professor.” (p. 137)
O trecho acima faz parte do documentoUm diálogo com Paulo Freire sobreeducação indígena, que documenta a participação do educador Paulo Freire na 8ª Assembleia Regional do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) de 1982.
Ela se refere a uma carta escrita pelo povo indígena Iranxe à época aos missionários.
O professor Paulo Freire interpreta a carta da seguinte forma:
“Vejam, na carta, o que é que dizem os Iranxe? Nós não precisamos que vocês nos venham ensinar o que significa ser Iranxe, porque nós já somos Iranxe. No fundo, querem dizer: nós temos uma história e uma cultura que nos constituíram como Iranxe. Não precisamos que vocês venham interpretar isso. Segundo, o que nós estamos querendo é conhecer o conhecimento que o branco tem, e porque tem, nos explora e nos domina”. (p. 144)
Este evento foi importantíssimo para a estruturação da educação escolar indígena no Brasil. Como relembra Loretta Emiri, indigenista e escritora que atuou na área da educação escolar indígena em nível local, regional, nacional por 18 anos, na década de 80:
A educação escolar indígena no Brasil brotou diretamente do pensamento e do método Paulo Freire. De 16 a 20 de junho de 1982, em Cuiabá foi realizada a VIII Assembleia do CIMI –Conselho Indigenista Missionário/Regional Mato Grosso, cujo tema era “Educação libertadora entre os índios”. Paulo Freire assessorou os trabalhos e, imensamente, ele contribuiu na reflexão que os voluntários ligados à Igreja católica estavam levando em quanto aplicavam seu método à educação escolar indígena”, diz.
Loretta Emiri, indigenista e escritora
Preocupação com uma educação libertadora
Ao longo do documento que registra a Cimi, são levantados pontos importantes sobre quais os propósitos da escola estruturada para os povos indígenas, que tipo de conteúdos seriam ministrados, quem são essas(es) professoras(es) e como apoiar com mais materiais e recursos esse processo.
A relação oprimido e opressor que impera no pensamento freiriano é constantemente lembrada pelo educador, que reforça como a escola e as(os) educadoras(es) precisam ter posicionamentos firmes quanto ao seu objetivo para que possam atuar politicamente para que ocorra a educação crítica libertadora:
“Mas acontece que a escola vive intensamente através de nós as contradições que se dão na sociedade. A escola então, de um lado, reproduz a ideologia dominante, mas do outro lado se dá também, independentemente do querer do poder, ela se dá no jogo das contradições. E ao fazer isso, ela termina por contradizer também a ideologia que ela deveria por tarefa reproduzir. Na medida em que a gente compreende o papel da escola, a relação entre a escola e a sociedade e a estrutura dominante em termos dinâmicos, dialéticos, contraditórios e não mecanicistas, a gente então compreende melhor isso” (p.125)
Em outro trecho, o educador explica como seria importante também lembrar e entender a língua e as adaptações que os povos indígenas acabaram por realizar ao tomar contato e interagir com os brancos, com a colonização:
“Se eu trabalhasse nesses grupos, sobretudo para conversar, faria fora dos encontros chamados formais, fora das horas chamadas de trabalho, procurava um encontro de papo na noite de lua, na casa fumando cachimbo. Eu tentaria compreender a manhã de pijama, (é claro que índio não tem pijama); eu queria surpreender essas manhãs ali na linguagem, no jogo de palavras, no uso de um advérbio. Eu tenho uma paixão pela linguística. Eu acho que o linguista tem muito a fazer no que ajudar o índio, também descobrir as manhas que apanha a alma do discurso”. (p. 121)
Alfabetização em língua nativa
Naquela época, o principal desafio dos professores alfabetizadores era estudar a língua da etnia com a qual trabalhavam, pois eles não a conheciam e não a dominavam.
Paulo Freire e outros especialistas defendiam a ideia de que era preciso que essa alfabetização fosse feita na língua materna.
É isso que os especialistas aconselham, pois afirmam que a língua é o instrumento que salvaguarda o inteiro patrimônio cultural das etnias; portanto, e também por razões técnicas, a alfabetização deve acontecer na língua materna. Depois disso qualquer matéria, disciplina, assunto podem ser tratados tanto na língua oficial quanto na língua materna”, diz Loretta.
Loretta Emiri, indigenista e escritora
A indigenista realizou experiências de alfabetização de adultos entre os indígenas Yanomami, sempre enraizadas no pensamento e metodologia freirianos. Elas estão detalhadamente registradas no capítulo “Yanomami” do livro A conquista da Escrita – Encontros de educação indígena.
“A alfabetização fazia parte de um projeto mais amplo intitulado plano de “Educação Global”, ou “Plano de Conscientização”, que visava informar os Yanomami sobre o que estava acontecendo em volta deles, preparando-os a enfrentar, organizados, o impacto com as invasoras frentes de expansão da sociedade envolvente“, explica Loretta.
Para apoiar a educação dos povos indígenas, o professor Paulo Freire sugeriu que fosse feito uso de histórias da língua oral que pudessem ser registradas pelos professores. Dessa forma, se tratava tanto do problema de falta de materiais como de trazer o contexto e os conhecimentos desses povos para a sala de aula.
No documento da Assembleia Cimi que registra esse diálogo de Paulo Freire com os missionários, ele diz:
“Vocês poderiam aproveitar o próprio material de leitura para transformar em material pedagógico a interpretação da realidade através da própria história que eles contassem. Eu acho que esse poderia ser um caminho da escola. E o outro seria aprender a decifrar as manhas do dominador. Uma das tarefas nossas como educador é esta: é decifrar o mundo opressor para o oprimido; por isso que esse trabalho é político“. (p.132)
Assim, uma educação que partisse desses saberes locais dos povos indígenas preveniria que as relações de dominação e colonização continuassem a se perpetuar:
“Agora, na medida em que você trabalhasse intensamente com um grupo indígena na compreensão da sua própria cultura, se depois alguns exploradores se apoderam desse material para voltar lá e explorar, não vai dar não. Não vai dar porque o cara assumiu a sua cultura e como que ele vai ser explorado?” (p. 126)
Loretta Emiri lembra de como essa questão estava presente nas experiências por ela realizadas:
As palavras-chaves escolhidas para encaminhar a alfabetização descendiam diretamente do universo cultural da etnia com a qual a experiência era desenvolvida: eram muito representativas, possibilitavam uma reflexão crítica sobre a realidade“.
Loretta Emiri, indigenista e escritora
Especial #100AnosPauloFreire do Portal Cenpec
Em comemoração ao centenário de Paulo Freire em 2021, o Portal Cenpec publicou reportagens mensais sobre o patrono da educação brasileira em reconhecimento ao seu importante papel no pensamento e nas práticas educacionais brasileiras.
As matérias versão sobre diversas facetas da vida e obra de Paulo Freire: como o pensamento do educador influenciou a fundação do próprio Cenpec; seu trabalho como gestor à frente da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo na gestão de Luiza Erundina; a relação entre leitura do mundo e da palavra de diferentes educadores(as) e formadores(as) de leitores(as); iniciativas de diferentes áreas que trabalham com a ideia de círculos de cultura e conceitos que envolvem a prática educativa de Paulo Freire.
Para Loretta Emiri, ainda há muitos desafios a serem enfrentados na questão da educação escolar indígena, mas é possível ver muitos avanços, que remetem às experiências que se iniciaram na década de 80:
Os alfabetizandos de então se tornaram os alfabetizadores de hoje: a maioria dos professores indígenas falam suas línguas maternas; então, teoricamente, hoje eles enfrentam menos desafios, mas acredito que sua formação política, metodológica e pedagógica pode e deve ser melhorada”.
Loretta Emiri, indigenista e escritora
Ela mesma percebe e ainda reconhece os pensamentos freirianos presentes em toda a sua vida, que a influenciaram desde que ela desembarcou no Brasil vinda da Itália em novembro de 1977, em plena ditadura militar.
A indigenista começou a trabalhar entre os indígenas Yanomami através da Diocese de Roraima. Logo na chegada na Missão Catrimâni, um colega seu lhe doou alguns livros de Paulo Freire.
A filosofia encarnada pelo grande educador me fascinou ao ponto que passou a influenciar as atividades educacionais que daí para frente eu desenvolvi. Mas também influenciou profundamente minha vida no sentido que a descoberta da palavra conscientização significou, daí para frente, tomar toda e qualquer decisão só após uma atenta e profunda leitura da realidade. Quer dizer que passei a analisar criticamente qualquer acontecimento para, só depois, tomar decisões edesenvolver ações que fossem conscientes, lúcidas, motivadas, organizadas, planejadas. A palavra conscientização instalou-se profundamente e definitivamente dentro de mim, para enriquecer minha bagagem cultural e nortear toda e qualquer atividade ou escolha de vida”.
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