Educação especial: os retrocessos do decreto 10.502 e os esforços para revogá-lo
Entenda os perigos da nova Política Nacional de Educação Especial e conheça a Coalizão Brasileira pela Educação Inclusiva, que visa garantir o direito à educação inclusiva de qualidade
Por Stephanie Kim Abe
Desde o dia 30 de setembro de 2020, quando foi instituída a nova Política Nacional de Educação Especial (PNEE) pelo decreto presidencial 10.502/2020, a Educação Inclusiva no Brasil está ameaçada. Isso porque o decreto prevê a matrícula de crianças e adolescentes com deficiência em classes e instituições especializadas, segregando esses(as) estudantes.
Fruto de uma luta dos movimentos de pessoas com deficiência, a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva Inclusiva estava em vigor desde 2008, e é apontada como responsável pelo aumento no número de matrículas da Educação Especial no ensino regular. Segundo o Censo Escolar, o percentual de alunos incluídos em salas regulares passou de 54%, em 2008, a 92% em 2018 – um total de 1,2 milhão de matrículas.
No dia 1º de dezembro de 2020, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Dias Toffoli suspendeu o decreto que institui a PNEE do presidente Jair Bolsonaro, em julgamento da Ação de Inconstitucionalidade (ADI) 6590 apresentada pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB). A suspensão deve ser votada pelo plenário do STF, no dia 11 de dezembro.
Na liminar, Toffoli observou que o decreto “inova no ordenamento jurídico” em relação à Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), de 1996, porque “não se limita a pormenorizar os termos da lei regulamentada, mas promove a introdução de uma nova política educacional nacional, com o estabelecimento de institutos, serviços e obrigações, que, até então, não estavam inseridos na disciplina educacional do país”.
Ameaças à Educação Inclusiva
Para Raquel Franzim, coordenadora da área de educação do Instituto Alana, o decreto traz muitos perigos à Educação Inclusiva.
“O decreto é inconstitucional, porque o Brasil é signatário da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, que prevê o sistema educacional inclusivo, e a adotou como emenda constitucional. O decreto discrimina ao prever que estudantes com deficiência sejam avaliados, e que essa avaliação determine se eles devem ou não estar na escola comum. Além disso, ele cria uma ideia de serviços especializados que nós, que trabalhamos com educação há muito tempo, sabemos que são segregados e que são serviços clínicos, não educacionais”, diz.
Ela também chama atenção para a necessidade de garantir os direitos de aprendizagem de todos(as) estudantes – que não estão presentes em instituições especializadas – e para o fato de que o decreto vai na contramão de pesquisas nacionais e internacionais, que apontam os benefícios que a Educação Inclusiva traz às pessoas com e sem deficiência.
Temos cerca de 15 anos de Educação Inclusiva na história do Brasil, mas esse período já nos mostrou benefícios sociais. Por exemplo, os estudantes com deficiência que frequentam a escola comum apresentam maior autonomia e uma vida mais independente, enquanto aqueles que estavam em instituições especializadas passam o resto da vida nesses meios. Isso não é independência, ou participação social. Outro dado estatístico é que tivemos um maior ingresso – ainda que pouco – de pessoas com deficiência em etapas superiores da educação (Ensino Médio e Ensino Superior)
Raquel Franzim, coordenadora da área de educação do Instituto Alana
Dadas essas ameaças à Educação Inclusiva trazidas pelo decreto 10.502/2020, um grupo de organizações da sociedade civil das áreas dos direitos humanos, de pessoas com deficiência, de crianças e adolescentes e da educação se mobilizou na Coalizão Brasileira pela Educação Inclusiva.
A Coalizão surgiu, primeiro, com o objetivo explícito de juntar esforços para revogar o decreto 10.502/2020. Mas também para criar e fomentar esse campo de alianças em torno da Educação Inclusiva, entre instituições que às vezes não estão lado a lado por um pensamento de que a Educação Especial ou Inclusiva seria pauta de uma ou outra organização. Entendemos que todos temos o nosso papel nessa agenda, por isso uma coalizão, sem tirar o protagonismo das instituições que trabalham com educação de pessoas com deficiência
Raquel Franzim, coordenadora da área de educação do Instituto Alana
A Coalizão tem atuado no acompanhamento das ações movidas por partidos políticos no Legislativo e em uma frente jurídica, tendo ingressado com pedido de “amicus curiae” no julgamento da Ação de Inconstitucionalidade (ADI) 6590 sobre o decreto, movido pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB), no Supremo Tribunal Federal.
O grupo também lançou o movimento #InclusãoPraTodoMundo e, em seu site, traz dados sobre os impactos do decreto para a educação e indica ações que diferentes setores da sociedade podem tomar para apoiar o movimento.
A iniciativa pede, entre outras coisas, que educadores(as) cobrem dos seus Conselhos Municipais de Educação uma posição favorável à Educação Inclusiva; que gestores(as) não façam adesão à PNEE e que zelem pelo cumprimento da Meta 4 do Plano Nacional de Educação; e que famílias, organizações da sociedade civil e demais atores pressionem seus(suas) parlamentares a se posicionarem contra o decreto.
Há também artes com os escritos “Revoga Já!” disponíveis para download gratuito para serem compartilhadas nas redes sociais.
O CENPEC Educação faz parte da Coalizão, assim como o Instituto Alana, a Ashoka, a Associação Cidade Escola Aprendiz, a Avante, a Campanha Nacional pelo Direito à Educação, a Escola de Gente, a Federação Brasileira das Associações de Síndrome de Down, o Grupo Juntos, o Instituto Rodrigo Mendes, a Rede Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, entre outros.
Desafios para o avanço na política de Educação Especial
Independentemente da decisão do Supremo Tribunal Federal no dia 11 de dezembro, a Coalizão Brasileira pela Educação Inclusiva deve continuar atuando.
“Ainda existe uma tensão social, uma parcela da sociedade que acredita que as pessoas com deficiência estariam melhor em espaços segregados e separados. Além disso, ainda temos muito o que avançar em termos de qualidade da Educação Inclusiva, por isso nosso movimento deve ter vida longa”, diz Raquel.
Uma pesquisa realizada pelo Datafolha em 2019, sob encomenda do Instituto Alana, mostrou que a população brasileira tende a ter opiniões favoráveis à inclusão de crianças com deficiência na escola regular. De acordo com a pesquisa, 86% dos entrevistados acreditam que as escolas se tornam melhores com a Educação Inclusiva, e 76% acreditam que as crianças com deficiência aprendem mais estudando junto com crianças sem deficiência.
Entre os avanços necessários nessa política, a coordenadora do Instituto Alana destaca a necessidade de ampliação do Atendimento Educacional Especializado (AEE), de fortalecimento da rede de proteção social e de financiamento, para investimento adequado em infraestrutura e tecnologia assistiva que possam ajudar a eliminar as barreiras de aprendizagem.
O direito ao Atendimento Educacional Especializado estava previsto na política nacional anterior como um direito do(a) estudante com deficiência no contraturno. O decreto 10.502/20 permite que ele aconteça no turno, o que poderia separar a criança da sala de aula comum.
“Há muitos outros pontos, mas eu cito esses três porque eles me parecem estruturantes e não são foco de atenção do decreto. A palavra ‘intersetorial’, por exemplo, não aparece uma única vez no documento. Como podemos fortalecer a rede de proteção social do estudante, em que a escola tem um papel importante, sem políticas intersetoriais? O decreto também cria mais serviços, mas será que esses são os melhores serviços? Do ponto de vista dos estudos nacionais e internacionais, não. Isso mostra que precisamos falar de recursos financeiros melhor alocados”, defende Raquel.
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