Educação midiática: como trabalhar o olhar crítico e a cidadania na sala de aula
Em um mundo cheio de informações – e desinformações -, é importante preparar os estudantes não só para analisar e entender o conteúdo que recebem, mas também para se expressar usando todas as potencialidades midiáticas
Por Stephanie Kim Abe
Logo no início da pandemia, um comunicado falso circulou nas redes sociais e nos aplicativos de mensagem dizendo que pessoas acima de 60 anos que estivessem circulando pelas ruas a partir de 20 de março teriam sua aposentadoria suspensa por tempo indeterminado. A imagem continha as marcas do Governo Federal e da Previdência Social, e citava uma medida provisória do governo como fonte.
Esse comunicado é um exemplo de notícia fraudulenta utilizada no plano de aula “Muito além das fake news”, criado pelo EducaMídia e disponível on-line para download gratuito. Como o próprio nome diz, o objetivo desse roteiro é trabalhar com os estudantes as nuances da desinformação – que, de acordo com o próprio Glossário do EducaMídia, significa “conteúdo falso, impreciso, tendencioso, distorcido ou fora de contexto, criado de forma intencional ou não”.
O advento da pandemia de Covid-19 deixou mais evidente esse mar de desinformações que estamos vivendo. A própria Organização Mundial da Saúde (OMS) utilizou o termo “infodemia”, para classificar “excesso de informações, algumas precisas e outras não, que tornam difícil encontrar fontes idôneas e orientações confiáveis quando se precisa”, conforme explica o informativo da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS).
Com as tecnologias digitais e a rapidez com que as informações são propagadas pela Internet, esse cenário, que não é novo e tampouco parece desaparecer logo, justifica a importância de educar as crianças para o uso das mídias, e como esse debate tem ganhado cada vez mais espaço, na sociedade como um todo e nas escolas.
Se não tivermos habilidade para acessar, localizar, separar, interpretar e ler criticamente as informações, sejam elas on-line ou impressas, em formato de notícia, publicidade ou até mesmo embalagem de produto, de nada adianta viver nessa abundância de informação
Patrícia Blanco, presidente do Instituto Palavra Aberta, responsável pelo programa EducaMídia
É tudo fake news?
Desde que a pandemia começou, a professora Renata Capovilla tem dado aulas de Educação Midiática para alunos(as) do Ensino Fundamental II das escolas estaduais de São Paulo pelo Centro de Mídias SP. Suas aulas acontecem uma vez por mês, e fazem parte da disciplina eletiva Tecnologia.
Nas suas aulas síncronas, que chegam a ter 15 mil alunos(as) conectados(as), um dos temas que foram mais lembrados por eles(as) foi fake news.
Começamos com a desinformação, mas a maioria dos alunos só queria saber das fake news. Passamos então a abordar o assunto, explicando que elas não são simplesmente aquilo que eles entendem como algo que não me agradou, que está fora do que eu acredito. Explicamos que, entre o que é verdadeiro e o que não é, há uma série de nuances
Renata Capovilla, professora de Educação Midiática para alunos(as) do Ensino Fundamental II e facilitadora de Educação Midiática do Educamídia
Jogo on-line Pontos de Vista
Fato ou boato? Que tal trabalhar a argumentação para esse tipo de situação por meio de um jogo? O “Pontos de Vista” é um jogo on-line e também aplicativo para dispositivos móveis que trabalha o gênero Artigo de Opinião com os(as) estudantes.
Lançado pelo Programa Escrevendo o Futuro, uma iniciativa do Itaú Social com coordenação técnica do CENPEC Educação, ele convida os(as) participantes a opinar e argumentar sobre assuntos do cotidiano, como questões de gênero, padrões de beleza, fake news, bullying e o papel da política na comunidade. O jogo é gratuito e, ao final, os(as) estudantes são convidados(as) a elaborar um texto.
A Educação Midiática, chamada por alguns também como letramento midiático ou alfabetização midiática, busca desenvolver habilidades para que as pessoas sejam capazes de decodificar uma mensagem e entender as partes que a compõe, assim como a tecnologia que a suporta.
“As pessoas muitas vezes não sabem diferenciar um artigo de opinião de uma notícia jornalística – e aí veem esse texto opinativo como fake news – ou identificar viés de confirmação. As fake news são a ponta do iceberg da falta de letramento informacional da população, que não entende o conteúdo informativo ou a forma como a construção da narrativa é feita”, explica Patrícia Blanco.
Ainda que já nasçam em um mundo em que as telas e tecnologias são onipresentes – daí serem chamadas de nativos digitais -, as crianças e os adolescentes também precisam desenvolver essas habilidades para poder construir conhecimento a partir das informações que estão ao seu redor. Não é porque já desde bebês elas conseguem destravar um celular que elas sabem distinguir a veracidade de um conteúdo e as possíveis intenções que existem por trás dele.
Uma pesquisa de 2016 realizada nos Estados Unidos com mais de 7.800 estudantes pela Universidade Stanford investigou as habilidades desses alunos da Educação Básica e do Ensino Superior em buscar, avaliar e verificar informações históricas, políticas e sociais on-line.
“Os resultados mostraram que mais de 80% dessa população não foi capaz de fazer a distinção entre conteúdo patrocinado (publicidade) e reportagem jornalística. Em outra atividade proposta, uma parcela de menos de 20% dos alunos questionou adequadamente a fonte de uma informação”, conforme explica o Guia da Educação Midiática, produzido pelo EducaMídia.
Trabalho transversal e BNCC
Ainda que não se encontre o termo “Educação Midiática” na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), o documento faz referência em diversos momentos a esse conceito.
Entre as competências gerais da Educação Básica, por exemplo, há a de compreender, usar e criar tecnologias digitais de informação e comunicação de forma crítica e ética (competência 5) e a de argumentar, com base em informações confiáveis, para formular e defender ideias e pontos de vista (competência 7).
Nessa BNCC, ocorrem cerca de 80 citações sobre tomar como base a comunicação e fazer algo pedagogicamente com essas práticas comunicacionais e culturais que estão presentes no cotidiano das crianças, como a fotografia, a televisão, a publicidade. Esse tema está nas diretrizes educacionais há algum tempo, mas com essa atualização recente se evidencia o quanto de fato a escola precisa colocar isso em prática
Claudemir Viana, professor e coordenador da Licenciatura em Educomunicação da ECA/USP e do Núcleo de Comunicação e Educação (NCE/USP)
Na área de Língua Portuguesa, a BNCC prevê a análise crítica e a produção de textos em mídia (chamado de “campo jornalístico-midiático”); já nas áreas de Ciências Exatas, Humanas e da Natureza, também há a produção de textos para documentação científica.
Mas para Patrícia Blanco, do Instituto Palavra Aberta, a BNCC permite que a Educação Midiática seja trabalhada como uma camada, de forma transversal e multidisciplinar, que perpassa todas as disciplinas, sendo vista como um processo, e não um fim em si.
“À medida que você aprende a interrogar uma informação, você passa a fazer essa leitura crítica da informação para interpretar gráficos, na aula de Matemática; para discutir as teorias de terraplanismo, em Geografia, ou os movimentos anti-vacinas, em uma questão de Ciências”, diz.
Entre os materiais e recursos disponibilizados pelo EducaMídia, está o curso on-line “A educação midiática na BNCC”. Gratuito e autoformativo, ele tem carga horária de 30 horas e foco no campo de atuação jornalístico-midiático da BNCC, sendo destinado a professores(as) de Língua Portuguesa do Ensino Fundamental e Médio.
A atuação dos(as) educadores(as)
Há muitos desafios para que essa Educação Midiática esteja presente em sala de aula – e a formação de professores(as) é um deles.
“O professor é um mero consumidor dessa cultura midiática, como seus alunos, e muitas vezes não sabe como lidar com isso pedagogicamente. Mas isso não quer dizer que eles não consigam fazer. O ideal seria termos mais políticas públicas de formação continuada para os professores terem um apoio e, para quem não fazia ou temia fazer, começar a ter ideias e colocá-las em prática”, defende o prof. Claudemir Viana.
Com as aulas remotas durante a pandemia, ficaram mais evidentes tanto a falta de costume e preparo de professores e professoras em lidar e utilizar as tecnologias, como a falta de recursos e apoio de gestores(as) e redes para que esse uso ocorra de forma adequada.
A Educação Midiática possibilita ao(à) professor(a) que se coloque também em um outro lugar e explore diferentes formas de ensinar – como as metodologias ativas, o ensino híbrido e as aprendizagens baseadas em projetos.
“O objetivo do educador midiático é auxiliar o estudante a explorar novos conteúdos, a partir das ferramentas digitais. Ele deve promover a curiosidade e o aprendizado contínuo, e estimular que a criança seja questionadora e vá atrás da informação, guiando-a nesse processo de aprendizagem, sobre como fazer, como interpretar, como contextualizar. Por outro lado, também deve ajudá-la na criação de conteúdo que leve em conta todas essas práticas”, diz Patrícia Blanco.
Foi pensando na importância de se trabalhar essa questão em sala de aula que o Instituto Palavra Aberta criou o EducaMídia, um programa que busca capacitar professores(as) e organizações de ensino para trabalhar a Educação Midiática com crianças e jovens no país.
Além do plano de aula “Muito além das fake news”, mencionado no começo da reportagem, o programa disponibiliza outros 10 planos de aula em seu site, todos gratuitos e com indicações de habilidades da BNCC a serem trabalhadas no roteiro.
No Guia da Educação Midiática, produzido pelo EducaMídia e lançado em outubro/2020, também se encontram outras sugestões de planos de aula, de todas as áreas de conhecimento. Os roteiros trazem qual o público a ser trabalhado (Ensino Fundamental I ou II, ou Ensino Médio), e os objetivos curriculares e midiáticos.
Inspirado nos quatro eixos utilizados na formação de professores do EducaMídia, o Jornal Joca criou o seu próprio material voltado para educadores(as). O Jornal Joca é uma publicação voltada para o público infanto-juvenil, com site atualizado diariamente e edição impressa quinzenal – que chega para os assinantes (a expressiva maioria escolas públicas e privadas) em meses letivos.
A grande diferença do nosso jornalismo é a linguagem mais direcionada. Nós contextualizamos os fatos e buscamos conteúdos que interessam a essa faixa etária, além de fazer com que eles queiram ir além da matéria e queiram explorar aquele conteúdo
Sabrina Generali, gerente de marketing do Jornal Joca.
Lançado em setembro/2020, o Educação Midiática para crianças e jovens traz sequências de aula, estruturadas em diferentes níveis de complexidade, que falam sobre Jornalismo e Informação, Mídias Sociais, Publicidade e Produção de Mídia. Os três primeiro tópicos terminam com um jogo, em formato de tabuleiro e que pode ser impresso em uma folha A4, que busca retomar os conceitos aprendidos em aula. Já a Produção de Mídia se refere justamente a propor atividades práticas para que os(as) alunos(as) coloquem a mão na massa.
O material está disponível para download gratuito no site, mas é preciso preencher um formulário simples antes de baixar o arquivo.
“O estudante precisa conhecer e entender essas interfaces midiáticas, para perceber também os impactos que as mídias geram sobre as suas vidas. O que um mesmo texto quer dizer ao ser veiculado em um anúncio publicitário ou um texto jornalístico? Quem é a pessoa por trás de um post? Qual o embasamento desse influenciador para avaliar se aquela informação é verdadeira e falar sobre o assunto?”, diz Sabrina Generali.
Uma questão de cidadania
As eleições também costumam trazer muita desinformação, com o jogo político de candidatos(as) que querem desqualificar os(as) adversários(as) e publicizar seus feitos. Ainda que não votem, as crianças e os adolescentes são atingidos pelas campanhas e, como forma de construir a sua participação cidadã, também podem discutir a temática.
Pensando em ajudar os estudantes a entender a importância das eleições e dar subsídios a educadores(as) para tratar do tema na sala de aula, o Jornal Joca disponibiliza o Manual das Eleições 2020, com conteúdo que trata do funcionamento do sistema político brasileiro e traz sugestões de atividades.
Eles também lançaram a iniciativa E aí, Prefeitura? Os jovens e o Joca por uma São Paulo melhor nas Eleições 2020, que visa estimular o debate sobre a cidade que querem e os problemas do município com crianças e adolescentes das escolas públicas e privadas da capital paulista. A ideia é compilar as sugestões trazidas pelos estudantes das instituições inscritas e entregá-las ao(à) prefeito(a) eleito(a). O envio das sugestões vai até o dia 28 de novembro.
Entender a comunicação como um direito do cidadão, para o qual ele precisa ser incentivado e preparado dá a esses projetos uma visão mais educomunicativa do fenômeno midiático – como explica o prof. Claudemir Viana:
“Na alfabetização midiática informacional, ou Educação Midiática, o foco é capacitar e habilitar os sujeitos a ‘decifrar’ certos conteúdos e lidar com esse mundo de informações – mas não questioná-lo, transformá-lo e praticar formas diferentes de comunicação. A educomunicação entende a comunicação como um direito do cidadão, para o qual ele deve ser incentivado e preparado, e que tenha como base valores humanistas e democráticos, como o respeito aos direitos humanos e à diversidade, e o diálogo”.
Por isso a importância de que essas atividades contemplem também o fazer do aluno, trazendo suas perspectivas para projetos práticos que possibilitem que ele se expresse e reflita sobre a importância de garantir que outras vozes sejam representadas e saibam se aproveitar das possibilidades das mídias em toda a sua potência.
“Propomos projetos pedagógicos que tenham uma forma mais coletiva, participativa, horizontal, ideológica e reflexiva de se agir e fazer dentro da própria mídia, partindo do protagonismo das crianças e adolescentes. São ações políticas, que incentivam os estudantes a interferir, a serem cidadão ativos. Não apenas reconhecer e entender a mensagem, mas pensar: ‘e aí, o que eu vou fazer para melhorar isso?’”, diz Claudemir.
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