Educação sem conexão?

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Educação sem conexão?

Veto do presidente Jair Bolsonaro a PL que garantia acesso à internet para alunos e professores de escolas públicas prejudica ainda mais a população mais vulnerável e acirra desigualdades

Por Stephanie Kim Abe

Não faltam evidências sobre  a falta de conectividade que cerca os(as) estudantes das escolas brasileiras – principalmente aqueles em condições mais vulneráveis. De acordo com a pesquisa TIC Domicílios 2019, 20 milhões de domicílios brasileiros não possuem internet (28% do total). Nas classes D e E, a internet só chega a metade dos domicílios. 

O acesso à internet e a infraestrutura escolar foram as maiores dificuldades enfrentadas pelas redes municipais de ensino no planejamento das aulas de 2020, de acordo com pesquisa mais recente realizada pela União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime). A pesquisa foi respondida por 3672 redes municipais de todo o país. Ela também apontou que a maioria das secretarias concentrou suas atividades remotas ao longo do ano passado em materiais impressos (95,3%) –  justamente por considerar a realidade dos(as) estudantes que não possuem acesso ou têm acesso precário à internet. 

Romualdo Portela de Oliveira
Foto: arquivo pessoal

Apesar dos esforços de gestores regionais e locais para, dentro de suas realidades, manter o vínculo com os(as) estudantes e suas famílias, e dar sequência às atividades escolares, a conectividade, neste momento, é um fator indispensável para a garantia do direito à educação e o combate às desigualdades socioeducacionais. Romualdo Portela de Oliveira, diretor de Pesquisa e Avaliação do CENPEC, analisa:

Se considerarmos a população em idade escolar, temos algo em torno de 4% fora da escola, ampliando-se o número registrado em 2019, de cerca de 2% entre a população de 6 a 17 anos. Assim, temos que a pandemia agrava a exclusão da escola, com maior incidência na população mais pobre, negra e indígena.”

Romualdo Portela de Oliveira

Mesmo diante desse cenário, e com a perspectiva de mais um ano letivo com as escolas fechadas e as atividades pedagógicas não presenciais, o presidente Jair Bolsonaro vetou integralmente o Projeto de Lei Conectividade Já (PL 3477/2020), que visa assegurar acesso à internet gratuita a alunos(as) e professores(as) da educação básica pública. 

O veto foi publicado no Diário Oficial na última sexta-feira (dia 19.3), e pegou de surpresa muitas entidades e especialistas da área educacional. Em nota, a Undime disse ter recebido “com perplexidade e incompreensão” a decisão do presidente. A Frente Parlamentar Mista da Educação e a Frente Parlamentar Mista da Economia e Cidadania Digital também se comprometeram a lutar pela derrubada do veto:

As Frentes Parlamentar Mista da Educação e Frente Parlamentar Mista da Economia e Cidadania Digital são contrárias ao veto por considerar grave que o Estado não viabilize meios de garantir a universalização do acesso à internet e o princípio constitucional básico da educação, previsto a todos os brasileiros na Constituição Federal, sobretudo ao constatar as desigualdades cada vez maiores e evidentes.”

Frente Parlamentar Mista da Educação e Frente Parlamentar Mista da Economia e Cidadania Digital, nota de 19/03.

O veto deve ser analisado pelo Congresso Nacional, que pode ainda derrubá-lo.


Educação na pandemia
Nós do CENPEC Educação temos acompanhado de perto os diversos aspectos que envolvem o debate sobre a educação no contexto de pandemia: dos desafios de gestores(as) e educadores(as) aos impactos nos(as) estudantes; da importância do acolhimento aos limites do ensino remoto; das orientações e protocolos sanitários à necessidade de busca ativa.

O intuito é divulgar materiais formativos e informativos que colaborem para a garantia do direito à educação de todos(as) os(as) estudantes e para a redução das desigualdades educacionais em nosso país.

Confira todos os conteúdos em #EducacaoNaPandemia


Conectividade para os mais vulneráveis

O PL prevê o repasse de 3,5 bilhões de reais a estados e municípios para ações que garantam o acesso à internet, com fins educacionais, a estudantes de escolas públicas pertencentes a famílias inscritas no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (CadÚnico), além daqueles(as) matriculados(as) em escolas indígenas e quilombolas. Professores(as) da educação básica da rede pública também podem ser beneficiados(as) pelas ações. 

Ao justificar o veto, o governo afirmou que a proposta “não apresentou uma previsão estimativa do seu impacto orçamentário e financeiro, motivo pelo qual não poderia ser aprovada em razão de vedação expressa na Constituição Federal e Lei de Responsabilidade Fiscal”. 

De acordo com o texto da proposta legislativa, os recursos viriam do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (Fust), e poderiam beneficiar 18 milhões de estudantes das famílias inscritas no CadÚnico, por meio da compra de planos de internet móvel e tablets para alunos(as) e professores(as). Os recursos também podem provir do orçamento da União e de doações de empresas privadas.

Essa não é a primeira vez que Bolsonaro se opõe a medidas legislativas que buscam garantir conectividade na educação pública. Em dezembro de 2020, o presidente vetou um trecho da lei do Fust (Lei 9998/2000) que prevê a implantação de internet banda larga nas escolas de todo o país até 2024. Na quarta-feira passada (dia 17.3), o Congresso derrubou esse veto

Segundo o estudo “Acesso Domiciliar à Internet e Ensino Remoto Durante a Pandemia”, elaborado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) com dados da Pnad Contínua 2018, há 6 milhões de estudantes da educação básica sem acesso domiciliar à internet. Nas escolas públicas, as crianças e os jovens negros e indígenas são mais de 70% dos estudantes sem acesso domiciliar à internet em banda larga ou 3G/4G.

Uma vez que a maior parte dos estudantes sem acesso ao ensino remoto, de acordo com os dados do ano de 2018, são os de menor renda, moradores das áreas rurais e municípios do interior do país, pode-se considerar que provavelmente este é o público mais afetado com o fechamento das escolas durante a pandemia.”

Ipea, ago. 2020

No mesmo sentido, o diretor de Pesquisa e Avaliação do CENPEC ressalta:

Nesse momento, a única possibilidade de contato com algum processo mais formalizado de educação é o ensino remoto. Ou seja, sem ele temos praticamente uma situação de abandono da escola. O principal obstáculo para o acesso a essa alternativa é a ausência de equipamentos e de rede. Como esse isolamento é fortemente correlacionado com renda mais baixa e determinadas características das populações mais vulneráveis, a exclusão é fortemente enviesada, prejudicando as populações mais pobres.”

Romualdo Portela de Oliveira

Para Adriana Silvia Vieira, coordenadora de Tecnologias Digitais do CENPEC Educação, é urgente um programa nacional que promova a conectividade de professores e estudantes das escolas públicas:

Foto: arquivo pessoal

Juntamente com a conectividade – que entendo como o acesso a dispositivos (computadores, tablet ou smartphone) conectados à internet -, é preciso um plano de formação de gestores e professores para o uso pedagógico das tecnologias digitais.
Essa formação deveria contemplar o desenvolvimento de competências digitais e oferecer conteúdos que possibilitem às redes de ensino e escolas a análise crítica e seleção de plataformas, ferramentas e recursos digitais integrados ao currículo e às práticas educativas.
Ou seja, um programa nacional de educação e tecnologia que possa de fato contribuir com o ensino e aprendizagem durante e pós-pandemia. Mas o que vemos é exatamente o contrário, com a diminuição de investimentos em educação pelo governo federal e uma total desarticulação das políticas públicas nessa área.”

Adriana Vieira

A conectividade nas escolas é uma questão que ultrapassa o contexto da pandemia e medidas de caráter emergencial, ainda que estas, neste momento, sejam fundamentais. Como afirma Romualdo:

Passada a pandemia, o ensino remoto tende a ser incorporado às práticas educativas cotidianas das escolas presenciais. Caminhamos para o uso desses instrumentos como parte do processo educativo. É um caminho sem volta. Quanto antes nos prepararmos para equipar toda a população para o acesso ao ensino remoto, melhor.”

Romualdo Portela de Oliveira

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