- José Alves
Por João Marinho
Cortes no orçamento que vão da educação básica à pós-graduação, notas públicas com ameaças autoritárias e polêmicas envolvendo temas como educação domiciliar, militarização, “ideologia de gênero” e Escola sem Partido, sem aprofundamento de pautas urgentes, como as metas do Plano Nacional de Educação (PNE) e o fim do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb).
A atuação do governo de Jair Bolsonaro e do atual ministro, Abraham Weintraub, na educação tem sido objeto de críticas de diferentes setores da sociedade, a ponto de unir seis ex-ministros de diferentes tendências e partidos em uma nota pública conjunta divulgada nesta terça-feira (4) no Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA USP).
José Goldemberg, Murílio Hingel, Cristovam Buarque, Fernando Haddad, Aloizio Mercadante e Renato Janine Ribeiro assinam o documento, que traz preocupações sobre os contingenciamentos, liberdade de cátedra, autonomia de universidades, PNE e desmonte de políticas públicas.
O que está acontecendo é pior do que muitos de nós imaginávamos (…). Há um risco de perda daquilo que nós construímos, que é a escola laica: é o risco de esse governo tentar colocar suas crenças religiosas na educação. O outro é a asfixia por falta de recursos. Estamos aqui para tentar dar nossa contribuição (…), com o Brasil tomando as medidas necessárias para que o País descubra a importância da educação.”
Cristovam Buarque, ministro na gestão Lula (2003-2004)
Corte de verbas
Os ex-ministros reuniram-se às 9h no IEA USP e realizaram, às 10h30, uma coletiva de imprensa em que lançaram a nota conjunta e anunciaram a criação de um Observatório da Educação Brasileira, além de, segundo a nota, se colocarem “à disposição para dialogar com a comunidade acadêmica e científica, sociedade e entidades representativas da educação, com parlamentares e gestores, sempre na perspectiva de aprimorar a qualidade da política educacional”.
A coletiva foi aberta pelo atual diretor do IEA, Paulo Saldiva, e cada ex-ministro destacou um tema abordado no documento. Para José Goldemberg, ministro na gestão Collor entre 1991 e 1992, por exemplo, a preocupação com as atitudes do Ministério da Educação (MEC) parte da constatação de que a pasta “tem um enorme poder, que é o poder de articulação e de disciplinação do sistema educacional”.
Goldemberg destacou que é verdadeira a informação de que o MEC, em si, aplica grande parte de seus recursos no ensino superior, mas afirmou que os demais investimentos, voltados à educação básica, cabem majoritariamente a estados e municípios.
Para Murílio Hingel, ministro na gestão Itamar Franco entre 1992 e 1995, a Constituição de 1988 trouxe o avanço de ampliar o investimento em educação básica por meio da vinculação de 18% das receitas da União e 25% das receitas de estados e municípios, mas a proposta da atual equipe econômica de desvinculação total do orçamento traz riscos para o que foi alcançado até agora: “Esses recursos são absolutamente indispensáveis, porque não há educação de boa qualidade se não houver recurso disponível. Não há professores eficientes, qualificados, se não houver professores bem-remunerados”.
Duas questões emergenciais, de certa maneira, respondem por esta reunião: o Fundeb (…), que efetivamente dialoga com o anseio histórico dos educadores; e a questão da autonomia universitária, que está em jogo nesse momento, com verdadeiros atentados retóricos por parte do Ministério (…), lembrando que mais de 90% da produção científica neste País acontece justamente nas universidades públicas.”
Fernando Haddad, ministro nas gestões Lula e Dilma (2005-2012)
Já Aloizio Mercadante, ministro no governo Dilma Rousseff entre 2012 e 2014 e entre 2015 e 2016, chamou a atenção para os cortes de recursos para o ensino superior, que, graças a políticas como o Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) e Programa Universidade para Todos (ProUni), registra atualmente a permanência de 18,1% dos jovens entre 18 e 24 anos. No entanto, apesar do crescimento em relação a décadas passadas, o percentual é ainda insuficiente: “Nenhum país desenvolvido tem menos de 30%”.
De acordo com a nota conjunta, “contingenciamentos ocorrem, mas em áreas como educação e saúde, na magnitude que estão sendo apresentados, podem ter efeitos irreversíveis e até fatais (…). Por isso, educação e saúde devem ser preservadas e priorizadas, em qualquer governo”.
Liberdade, igualdade e educação
A educação como motor do desenvolvimento socioeconômico e fator de redução das desigualdades também foi um tema abordado pelos ex-ministros na coletiva.
“A educação é, ainda, crucial para o desenvolvimento social e estratégico da economia do Brasil (…). É impressionante que, diante de um assunto como a educação que conta com especialistas e estudiosos bem formados, o governo atue de forma sectária, sem se preocupar com a melhoria da qualidade e da equidade do sistema”, diz a nota.
“Todos os estudos internacionais sobre economia, por mais liberais que sejam – Banco Mundial, The Economist, The Financial Times –, celebram a educação como principal fator de desenvolvimento econômico (…). No Brasil, temos uma situação estranha, de pessoas que se dizem liberais, mas não dão essa importância à educação e, ao contrário, pensam que o corte nos órgãos vitais da educação pode ser uma medida positiva para desenvolver a economia”, disse Renato Janine Ribeiro, ministro na gestão Dilma em 2015.
Nesse sentido, para Janine Ribeiro, a gestão atual tem deixado de pôr a aprendizagem como foco para discutir temas acessórios menos relevantes, como a educação domiciliar (homeschooling), Escola sem Partido e “doutrinação” – assunto, aliás, também discutido na coletiva.
Segundo a nota conjunta, “a liberdade de cátedra e o livre exercício do magistério são valores fundamentais e inegociáveis do processo de aprendizagem e da relação entre alunos e professores. Convidar os alunos a filmarem os professores, para puni-los, é uma medida que apenas piora a educação, submetendo-a a uma censura inaceitável”.
Há um consenso construído entre direita e esquerda, através dos governos federal, estaduais e municipais e que abrange fundações, sindicatos, movimentos e universidades. Esse consenso elegeu a educação como a grande promessa do século XXI. Dentro disso, preocupa-nos termos hoje um política de governo que vê a educação não como promessa, mas como ameaça.”
Renato Janine Ribeiro, ministro na gestão Dilma (2015)
“A pluralidade é essencial na educação. Por isso, a autonomia acadêmica, pedagógica, docente, universitária é tão importante na história da educação. Na pluralidade do debate de diversas correntes teóricas (…), o conhecimento avança e a educação prospera”, disse Aloizio Mercadante.
Na esteira da discussão ideológica, os ataques a Paulo Freire foram questionados pelos jornalistas presentes. “Paulo Freire é reconhecido internacionalmente, muito mais que no Brasil”, comentou Murílio Hingel.
“Como já colocam alguns filósofos e estudiosos, o sistema educacional geralmente trabalha para reproduzir, no contexto da sociedade, aquilo que faz parte da opinião das classes dominantes. Paulo Freire se coloca contra essa tendência, demonstrando a necessidade que o sistema educacional tem de ser democrático e para todos. Por isso, ele é inconveniente”, respondeu o ex-ministro.
Observatório da Educação
Além da nota conjunta, o anúncio do Observatório da Educação, que deverá ser sediado no próprio IEA USP, foi outro destaque da coletiva.
A maneira como o Observatório atuará ainda não está definida – os ex-ministros que assinam a nota tomaram a decisão de criá-lo na própria manhã de terça-feira (4) –, mas já se sabe que serão chamados os ex-mandatários de outros governos anteriores aos de Bolsonaro, que, já convidados à coletiva, não puderam estar presentes.
“No contexto atual, é fundamental que seis ex-ministros de diferentes partidos e tendências tenham se articulado para produzir um documento sobre diagnóstico e preocupações na educação e apontar caminhos”, avalia Anna Helena Altenfelder, presidente do Conselho de Administração do CENPEC Educação.
“É interessante observar que todos têm concordâncias quanto às ameaças: financiamento, liberdade de cátedra, a prioridade que a educação ocupa e atentados à educação pública, laica, de qualidade para todos, que é fundamental para o desenvolvimento do País. Nisso se insere a ideia do Observatório, que é suprapartidário”, diz Altenfelder.
Há dois movimentos. Primeiro, em um momento de tanta polarização no Brasil, é importante quando existe um consenso e articulação de pessoas de diferentes partidos e tendências. Segundo, frente a todas as ameaças à educação, é importante que essa força surja para que enfrentemos os desafios que se apresentam e busquemos soluções contra atrasos e prejuízos.”
Anna Helena Altenfelder, do Conselho de Administração do CENPEC Educação
O CENPEC Educação foi convidado a contribuir com a iniciativa. “Com nossa experiência, será possível colaborar com o Observatório da Educação tanto na metodologia de coleta de dados de monitoramento quanto com análises qualitativas sobre os resultados e seus impactos nas políticas públicas”, diz a diretora-executiva da instituição, Mônica Gardelli Franco.
“É do interesse do CENPEC Educação olhar para a questão da igualdade, da equidade na educação, de superar desigualdades, para não deixar ninguém para trás”, conclui a especialista.
Confira, na íntegra, a nota conjunta assinada pelos seis ex-ministros.
Nota conjunta do ex-ministros da Educação
Nós, ex-ministros da Educação que servimos o Brasil em diferentes governos, externamos nossa grande preocupação com as políticas para a educação adotadas na atual administração. Nas últimas décadas, construiu-se um consenso razoável sobre a educação, que se resume numa ideia: ela é a grande prioridade nacional.
Contingenciamentos ocorrem, mas em áreas como educação e saúde, na magnitude que estão sendo apresentados, podem ter efeitos irreversíveis e até fatais. Uma criança que não tenha a escolaridade necessária pode nunca mais se recuperar do que perdeu. A morte de uma pessoa por falta de atendimento médico é irreparável. Por isso, educação e saúde devem ser
preservadas e priorizadas, em qualquer governo.
Uma educação pública básica de qualidade forma bem a pessoa, o profissional e o cidadão para desenvolverem, com independência e sem imposições, suas potencialidades singulares.
A educação é, ainda, crucial para o desenvolvimento social e estratégico da economia do Brasil. A economia não avança sem a educação, que é a chave para nosso país atender às exigências da sociedade do conhecimento.
O consenso pela educação como política de Estado foi constituído por diferentes partidos, por governos nas três instâncias de poder, fundações e institutos de pesquisa, universidades e movimentos sociais ou sindicais. Em que pesem as saudáveis divergências que restaram, foi uma conquista única, que permitiu avançar no fortalecimento da educação infantil, na universalização do ensino fundamental, na retomada da educação técnica e profissional, no esforço pela alfabetização e educação de adultos, na avaliação da educação em todos os seus níveis, na ampliação dos anos de escolaridade obrigatória com aumento expressivo das matrículas em todos os níveis de ensino, na expansão da pós-graduação, mestrado e doutorado e, consequentemente, na qualidade da pesquisa e produção científica realizada no Brasil.
É impressionante que, diante de um assunto como a educação que conta com especialistas e estudiosos bem formados, o governo atue de forma sectária, sem se preocupar com a melhoria da qualidade e da equidade do sistema, para assegurar a igualdade de oportunidade.
Em nenhuma área se conseguiu um acordo nacional tão forte quanto na da educação. A sociedade brasileira tomou consciência da importância dela no mundo contemporâneo.
Numa palavra, a educação se tornou a grande esperança, a grande promessa da nacionalidade e da democracia. Com espanto, porém, vemos que, no atual governo, ela é apresentada como ameaça.
Concordamos todos que a educação básica pública deve ser a grande prioridade nacional, contribuindo para superar os flagelos da desigualdade social gritante, da falta de oportunidades para os mais pobres e do atraso econômico e social. Ela implica o aprimoramento da formação dos professores, do material didático, a constante atenção à Base Nacional Curricular Comum, a valorização das profissões da educação, inclusive no plano salarial, a reforma do ensino médio, o aperfeiçoamento da gestão educacional, a construção de diretrizes nacionais de carreira de professores e diretores do ensino público. Requer a constante inovação nos métodos, deslocando-se a ênfase no ensino para a aprendizagem, que deve ser o centro de todos os nossos esforços.
Exige também o empenho na educação infantil e na alfabetização na idade certa, a melhora das escolas e dos laboratórios e bibliotecas e, mais que tudo, o respeito à profissão docente, que não pode ser submetida a nenhuma perseguição ideológica. A liberdade de cátedra e o livre exercício do magistério são valores fundamentais e inegociáveis do processo de aprendizagem e da relação entre alunos e professores. Convidar os alunos a filmarem os professores, para puni-los, é uma medida que apenas piora a educação, submetendo-a a uma censura inaceitável. Tratar a educação como ocasião para punições é exatamente o contrário do que deve ser feito. Cortar recursos da educação básica e do ensino superior, no volume anunciado, deixará feridas que demorarão a ser curadas.
Não menos importante é o fortalecimento da cooperação e da colaboração entre União, Estados, Municípios e o Distrito Federal e o respeito à autonomia das redes, como determinam a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e a própria Constituição Cidadã de 1988. Não podemos ignorar o Plano Nacional de Educação, aprovado por unanimidade pelo Congresso Nacional, os Planos Estaduais e os Planos Municipais de Educação, já pactuados entre a sociedade, os governos e a própria comunidade escolar. Ele decorre de iniciativas que já vinham de longe, como o Plano Decenal de Educação para Todos (1993/2003), elaborado pelo MEC com apoio dos estados, dos municípios, do Distrito Federal, de entidades representativas da área educacional e que atendia a compromisso internacional assumido pelo Brasil na Conferência realizada em 1990 em Jomtien (Tailândia), de que o Brasil participou, promovida pela UNESCO, pelo UNICEF, pelo PNUD e pelo Banco Mundial.
Enfim, e para somar esforços em vez de dividi-los, é indispensável que se constitua e se organize um efetivo Sistema Nacional de Educação.
Ademais, a prioridade à educação básica demanda que cresçam os repasses do governo federal para os estados e municípios, responsáveis pelo ensino infantil, fundamental e médio, sendo prioridade a renovação e, se possível, ampliação do FUNDEB – Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação, que expira em 2020. Sem ele, a situação do ensino nos municípios e estados mais pobres, que já é inadequada, se tornará desesperadora.
No tocante à expansão do ensino superior, é fundamental se assegurar o ingresso e permanência dos estudantes, especialmente dos egressos das escolas públicas e das famílias de baixa renda. O ensino superior necessita ter qualidade, o que requer tanto constantes avaliações quanto recursos, garantindo seu papel insubstituível na formação de profissionais qualificados para um mercado de trabalho cada vez mais exigente, impactado pelos desafios das inovações e das novas tecnologias. A autonomia universitária é uma conquista que deve ser mantida para garantir a liberdade e qualidade na pesquisa, formação e extensão.
O Brasil dispõe, hoje, de uma lista de políticas devidamente estudadas e estruturadas, de medidas e instrumentos que permitem progredir significativamente na educação. Nada disso é ou será fácil, mas o consenso obtido e o aprimoramento das medidas clamam pela junção de esforços em prol de uma educação que se equipare, em qualidade, à dos países mais desenvolvidos.
Muito tem de ser feito, tudo pode ser aprimorado, mas a educação depende da continuidade ao que já foi conseguido ou planejado. Educação é política de Estado: nada se fará se a ênfase for na destruição das conquistas, no desmonte das políticas públicas implementadas e no abandono dos planos construídos pela cooperação entre os entes eleitos e a sociedade.
Vimos a público defender esta causa estratégica para as futuras gerações e propomos a formação de uma ampla frente em defesa da educação. Nós, neste momento, estamos constituindo o Observatório da Educação Brasileira dos ex-ministros da Educação, que se coloca à disposição para dialogar com a comunidade acadêmica e científica, sociedade e entidades representativas da educação, com parlamentares e gestores, sempre na perspectiva de aprimorar a qualidade da política educacional.
Assinam este documento os ex-ministros da Educação:
José Goldemberg
Murílio Hingel
Cristovam Buarque
Fernando Haddad
Aloizio Mercadante
Renato Janine Ribeiro
Foto de destaque: João Marinho.
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