Pertencimento e identidade nos anos finais do ensino fundamental
Formação docente continuada e resgate do patrimônio cultural e local para aflorar pertencimento e discutir identidades: conheça as experiências de escolas em Campinas e em Valinhos, na região metropolitana de São Paulo
Por Stephanie Kim Abe
Dona Fátima Elaine Aparecida Santos era só sorrisos ao acompanhar a Marcha Dandara e Zumbi dos Palmares da Escola Municipal de Ensino Fundamental e Educação Integral (Emefei) Raul Pila, em Campinas (SP), que ocorreu na manhã quente do dia 14 de novembro de 2023 (confira algumas cenas no 📹 vídeo abaixo).
Ao longo do trajeto circular de 1,3 quilômetros pelo bairro do Jardim Flamboyant, Fátima foi andando ora ao lado das(os) estudantes no começo da fila, que dançavam e tocavam tambores, ora mais para o fim do grupo, com as crianças que carregavam cartazes com escritos como “Racismo não é brincadeira” ou “Não precisa ser negro para lutar contra o racismo“.
Em um momento, ela recebeu um dos panfletos “Você conhece?”, que traziam nomes de diferentes personalidades negras, coloridas com lápis de cor e entregues por estudantes dos primeiros anos do ensino fundamental para qualquer transeunte ou moradora(r) que estivesse pelo caminho ao longo da passeata.
Em outro, andou ao lado de professoras e familiares que estavam participando da passeata e cruzou com a dupla de adolescentes que colava lambe lambe pelos postes com dados e informações que evidenciam as desigualdades raciais e o racismo estrutural na sociedade brasileira hoje.
O professor dos anos iniciais Renan Almeida Barjud, um dos responsáveis pela organização da Marcha, conta:
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Em busca da identidade e contra as opressões
Mesmo com todas essas ações realizadas por diferentes turmas ao longo da passeata, a Marcha é, na verdade, apenas uma parte de um trabalho muito maior e mais perene realizado pelo Grupo de Estudos de Práticas Decoloniais e Antirracistas da escola.
O Grupo de formação continuada foi formado em 2021 e envolve diferentes professoras(es) do ensino fundamental. Além da Marcha, que está em sua segunda edição, este ano eles conseguiram implementar a educação antirracista como tema gerador do projeto político pedagógico (PPP) da escola.
Como consequência, a escola decidiu realizar um censo racial de suas(seus) estudantes, como explica o professor de História Andrei Felipe Campanini:
O Censo Escolar Antirracista foi construído pelo Grupo de Estudo e passou pela consultoria de especialistas, além de aplicação teste. Ele foi aplicado com estudantes do 4o ao 9o ano e de EJA, totalizando 246 respostas.
O questionário trazia perguntas relacionadas à própria identidade da(o) estudante (como autodeclaração de raça/cor, idade, gênero, e região de nascimento), à sua percepção sobre a comunidade escolar (qual a cor/raça do corpo docente, de funcionárias, da direção escolar, dos familiares); e sobre a sua percepção das opressões que ocorrem na escola (racismo, homofobia, LGBTfobia etc).
Os resultados ainda não foram analisados pelo grupo, mas dados preliminares indicam já que a maioria da comunidade escolar é negra (parda/preta, segundo classificação do IBGE) e que as percepções quanto às opressões traduzir muito um fenômeno que acontece na sociedade brasileira como um todo:
No geral, a maioria dos estudantes ainda não consegue se ver como atores de uma opressão, seja como vítima, seja como agressor. Isso porque as respostas mostram muitas negativas para ‘você já agiu com racismo na escola?’ ou ‘você já sofreu racismo na escola?’, mas muitas respostas positivas para ‘você já presenciou racismo na escola?’. Ou seja, a conta não fecha – e tem muito a ver com a história do Brasil e a sociedade que diz que existe racismo, mas ninguém se vê praticando-o”, explica o professor Andrei.
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Adolescentes engajadas(os)
Estudante do 8o ano, Kayky Henry Nascimento Santos diz que já presenciou caso de racismo na escola. “Eu vi outra pessoa sofrendo racismo. Eu acabei só olhando, como outros colegas. Fiquei com raiva, só que não fiz nada”, confessa.
Ele foi um das(os) 12 estudantes que se voluntariaram para ajudar a aplicar os questionários do Censo Escolar Antirracista com as(os) demais alunas(os). Esse grupo de estudantes passou por uma formação específica para realizar essa tarefa, onde aprenderam melhor sobre as diferentes opressões e como explicar questionamentos pontuais que as(os) colegas pudessem ter ao responder o questionário.
O professor Andrei ressalta que a realização do Censo e de todo esse processo com as(os) estudantes dos anos finais possibilitaram uma formação política – no sentido de demonstrar como atuar politicamente também na escola e em diferentes espaços para além da votação – e reforçar os conhecimentos que elas(es) já têm sobre o assunto, ajudando-as(os) a saber lidar melhor com casos de opressão.
“Os jovens já têm um acúmulo sobre essas opressões, porque vivem e convivem com o racismo, a homofobia, o machismo. O nosso trabalho é tentar fazer com que eles racionalizem essa experiência e consigam dar um passo no sentido do antirracismo. Ou seja, precisamos ouvi-los e, a partir do que eles trazem, elaborar estratégias pedagógicas para que consigam articular racionalmente, ordenadamente, metodologicamente as experiências que trazem”, reflete o professor Andrei.
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Retomando os vínculos escolares
Há, ainda, um terceiro impacto significativo dessas atividades de educação antirracista e de olhar para a identidade no que diz respeito à relação das(os) estudantes com a escola.
Ele tem a ver com um cenário de pós-pandemia e da forma como as(os) adolescentes voltaram às aulas presenciais, com grandes defasagens de aprendizagem e problemas relacionados à saúde mental (como depressão e ansiedade).
Para o professor, a Marcha e as demais atividades realizadas pelas(os) estudantes no sentido de uma educação antirracista vieram ajudar a lidar com essa realidade:
“Ao colocarmos os estudantes como protagonistas, para descobrirem sua cultura, sua ancestralidade, seu patrimônio cultural e se sentirem pertencente, fomos reconstruindo esse vínculo deles com a escola. Criar essa nova identidade e cultura escolar, onde os estudantes desenvolveram novos relacionamentos interpessoais para tentar diminuir a violência e voltar à uma cultura do diálogo, foi um dos passos mais significativos de todo esse processo.”
Em uma cidade vizinha a Campinas, o patrimônio também é central para um projeto interdisciplinar com as(os) estudantes dos anos finais. A diferença aqui é que estamos falando do patrimônio histórico, cultural e ambiental de Valinhos, e é desenvolvido pela Secretaria Municipal de Educação.
Fabíola Pereira Cordón, bióloga, psicopedagoga, professora do ensino fundamental II e coordenadora da área de Ciências na Secretaria de Educação de Valinhos (SP), conta que o projeto partiu de uma ideia dela em parceria com os coordenadores de História e Geografia da rede antes da pandemia.
Ela conta as vantagens de realizar projetos interdisciplinares e de onde eles surgem:
No caso do projeto Patrimônio histórico, cultural e ambiental de Valinhos, houve primeiro uma formação da rede com cerca de 60 docentes, que foram levadas(os) a conhecer lugares importantes do município, como Museu e Acervo Municipal Fotógrafo Haroldo Ângelo Pazinatto e Observatório Abraão de Moraes, e personalidades marcantes, como a vida e obra do artista modernista Flávio de Carvalho (1899 – 1973) e o compositor Adoniran Barbosa (1910 – 1982).
Os passeios com as(os) estudantes só ocorreram este ano, já que o projeto teve que se adaptar ao período de escolas fechadas durante a pandemia. Foram quase 100 viagens para levar estudantes dos anos finais das 13 escola municipais de Valinhos ao Museu Haroldo Pazinatto e ao Observatório.
Fabíola conta que foi possível desenvolver desde aspectos históricos, resgatando fatos e memórias de personagens ilustres da região, como descobrir novas informações e características dos lugares pelas quais passaram. Por exemplo, as(os) estudantes puderam ver o marco geodésico do Observatório e a presença de cactos no bioma da Serra dos Cocais onde Valinhos está localizada.
Apesar de conseguirem trabalhar os conteúdos de diferentes formas, tanto durante os passeios como após, em projetos como a construção de sistema solar ou de um relógio de sol, a bióloga e professora acredita que houve um proveito ainda maior dos passeios:
Isso ficou muito claro nas visitas ao Museu do fotógrafo Haroldo Pazinatto, que ocupa a antiga estação ferroviária da cidade de 1872. “Nós perguntamos para os alunos: onde o seu avô nasceu? Aqui? Se não, então ele com certeza passou por essa estação, ele veio por este trilho”, conta Fabíola.
Ela continua:
“Na adolescência, o estudante começa a ter realmente a sua identidade e a ter mais criticidade. Então quando o levamos a descobrir esses lugares que fazem parte da vida e do cotidiano dele, ele resgata não só valores culturais, históricos, mas o seu pai, o seu avô – enfim, a sua própria história e da sua família. Nós realmente o alcançamos – e isso o estimula a querer saber mais, estudar e aprender”, diz.
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