A professora e filósofa indígena Cristine Takuá fala sobre o papel da escola, a arte como mobilizadora de comportamentos e o primeiro museu gerido por povos indígenas, inaugurado em São Paulo (SP); saiba mais
Por Stephanie Kim Abe
OMuseu das Culturas Indígenasfoi inaugurado na última quarta-feira (dia 29/06), no bairro Água Branca, zona oeste de São Paulo. O espaço é uma conquista dos povos indígenas paulistas, que queriam um lugar para quebrar estereótipos e exaltar a causa, a memória e a luta indígena por meio da arte contemporânea produzida pelos povos originários.
Atualmente, o museu tem em cartaz a exposição Ygapó: Terra Firme, do artista e curador Denilson Baniwa, e a Invasão Colonial Yvy Opata – A Terra Vai Acabar, do artista de Porto Alegre (RS) Xadalu Tupã Jekupé, além dos grafismos e murais guaranis que ocupam a área externa do prédio de sete andares.
Um dos seus maiores triunfos é a gestão compartilhada do museu público, com destaque para o protagonismo das comunidades indígenas, ao ser realizada em uma parceria entre a ACAM Portinari (Associação Cultural de Apoio ao Museu Casa de Portinari), o Instituto Maracá (associação sem fins lucrativos que tem como finalidade a proteção, difusão e valorização do patrimônio cultural indígena), e o Conselho Aty Mirim, que reúne representantes de diversos povos originários do estado de São Paulo.
Para Cristine Takuá, professora formada em Filosofia pela Unesp e integrante do Instituto Maracá, o museu é uma maneira não só de fortalecer a cultura e a história indígena, mas também a educação dos povos originários e da sociedade em geral:
Existe essa mentalidade ainda dos povos indígenas como algo do passado – até a escola às vezes passa essa imagem. Esse museu é como se fosse uma escola, porque ele é um espaço de educar e de reeducar a sociedade, contribuindo para que a nossa sociedade decolonize um pouco essa visão que ainda tem de nós e reconheça a nossa luta.”
Cristine Takuá
Formada em Filosofia pela Unesp, Cristine é do povo Maxaki e trabalhou por muitos anos na escola estadual indígena Txeru Ba’e Kua-I, localizada na terra indígena do Ribeirão Silveira, em Bertioga, litoral norte de São Paulo. Ela também participa do Fórum de Articulação dos Professores Indígenas do Estado de São Paulo (Fapisp).
Em entrevista ao Portal Cenpec, ela fala sobre a ressignificação de instituições ocidentais, como a escola e o museu, na cultura indígena, e a importância da arte para criar consciência sobre as lutas por direitos dos povos indígenas.
Confira abaixo a entrevista completa com a educadora!
Portal Cenpec: Qual é o objetivo deste museu e qual o seu significado para a cultura indígena?
Cristine Takuá: Em uma das reuniões de concepção deste museu, uma das lideranças que fazem parte do Conselho Aty Mirim perguntou a um dos museólogos presentes qual era o significado da palavra “museu”. Ele respondeu que tinha origem na Grécia Antiga, que se referia a algo relacionado a “musas”, que eram quem inspiravam as formas de arte. Pra gente, essa palavra não tem muito sentido, assim como essa concepção de museu como um espaço parado, de acervos estáticos.
Por isso, a nossa ideia é fazer um museu vivo, algo mais dinâmico – como a obra de Denilson Baniwa que nos convida a tirar os sapatos, sentir a folhagem, o silêncio e refletir sobre o desmatamento.
Nós não temos um acervo propriamente dito, como os museus mais conhecidos, mas o que queremos é ter constantemente a presença dos povos indígenas aqui. Tanto que contamos com seis educadores indígenas – chamados de Mestres dos Saberes – que estão aqui todos os dias para fazer esse diálogo com o público. Chegar em um lugar e ver um monte de peças expostas é diferente de chegar e conversar com educadoras(es) indígenas.
Para mim, o corpo educativo de um museu é o umbigo do espaço e é justamente essa proposta de encontros e de diálogos que queremos proporcionar por aqui, de forma a plantar sementinhas na mente das pessoas que visitarem o museu.
Portal Cenpec: Como você avalia a produção da arte contemporânea indígena?
Cristine Takuá: Desde 2017, vejo que temos muito avanço e muitas exposições e ativações indígenas pipocando, não só no Brasil – com a Bienal, por exemplo -, como no mundo.
Eu vejo essa arte como sopros das nossas mensagens de emergência. A arte é uma forma delicada e mais sutil de aproximar as pessoas da nossa luta, da violência pela qual temos passado nos últimos 500 anos. E ela tem tido muito potencial, porque atinge diferentes camadas, furar bolhas para além de grupos universitários e educadores.
Portal Cenpec: Como esse museu dialoga com a escola e a sociedade no geral, no sentido de aproximá-la da cultura indígena?
Cristine Takuá: Ano passado, tivemos muitas mobilizações em torno do Marco Temporal e da questão da revisão dos nossos territórios. Mas eu sinto, às vezes, que há uma desconexão entre a nossa luta e a sociedade brasileira. Ela não está dando conta de que o que resta hoje da Mata Atlântica ou da Amazônia está em territórios indígenas e das comunidades tradicionais. Ou seja, essa deve ser uma luta de todos, ou não venceremos a questão do desequilíbrio ambiental. Defender a floresta significa defender o ar que respiramos.
A arte, a história, a filosofia têm esse poder de trazer as pessoas para parar e pensar e, então, tomar coragem para mudar os seus hábitos. Então esse museu é uma conquista no sentido de aproximar a sociedade para entender o que significam, o que são essas mensagens importantes que elas precisam entender.
Então, pra mim, a relação desse espaço com a educação está totalmente enredada, uma apoia a outra. Falar de museu é falar de memória e falar de educação. Existe essa mentalidade ainda dos povos indígenas como algo do passado – até a escola às vezes passa essa imagem. Esse espaço é como se fosse uma escola, porque ele é um espaço de educar e de reeducar a sociedade, contribuindo para que a nossa sociedade decolonize um pouco essa visão que ainda tem de nós e reconheça a nossa luta.
Portal Cenpec: O território é algo muito importante e central para os povos originários – e é algo que dialoga com a ideia de uma educação integral. Qual é a concepção de educação integral para a cultura indígena?
Cristine Takuá: A minha visão é um pouco diferente da que se tem colocado nas escolas de tempo integral, por exemplo. Para mim, a educação integral tem a ver com o tempo no sentido das particularidades e da liberdade. Tem a ver com entender as suas particularidades como indivíduo e também as relações que se estabelecem com a comunidade, para além da escola – na casa de reza, nas caminhadas na mata, no roçado etc. Tudo isso precisa estar em equilíbrio.
O que tem sido implementado nas escolas, pela Secretaria Estadual de Educação de São Paulo, é um programa de ensino integral em que as crianças ficam oito horas na escola, cumprindo um currículo que é delimitado pela Secretaria. Será que as crianças precisam ficar tanto tempo dentro da escola?
Inclusive acredito que esses altos índices de depressão e suicídio entre os estudantes se relacionam com esse desequilíbrio, de um currículo na escola que contribui para o adoecimento e que não respeita os tempos e as individualidades dos estudantes e dos territórios.
Portal Cenpec: Qual é o papel da escola na educação indígena?
Cristine Takuá: Assim como o museu, a escola é uma instituição que vem de fora. Temos vários modelos dela, desde as missões jesuíticas e salesianas, que estiveram presentes em diferentes regiões do país, até os modelos mais ditatoriais – como as escolas de militares. Então, a escola vai se transformando – mas até hoje eu vejo esse modelo muito enraizado na ideia da escola ocidental, de cadeiras enfileiradas, lousa na frente.
Para as comunidades indígenas, de um modo geral, a escola sempre é um corpo meio estranho, mas que a gente sempre quer acessar. Claro, ela é importante, e ter médicos, agrônomos e cada vez mais indígenas nas universidades também é muito importante.
Mas será que esse é só o objetivo da escola? Essa é uma reflexão que eu faço. Ao longo dos anos, eu fui entendendo que a escola não é só para acessarmos esse conhecimento de fora, mas para fortalecer também a comunidade e os seus próprios conhecimentos tradicionais. É preciso extrapolar os espaços da instituição: em vez de trazer uma parteira para dentro da escola, levar os alunos até ela, conversar sobre saúde, plantas, etc. É assim que devemos estruturar nossas escolas.
Quando conseguimos ter projetos políticos pedagógicos que dão autonomia para construirmos a escola que queremos, ela pode ser muito fortalecedora para o território.
Portal Cenpec: O que ainda é preciso fazer para avançar na educação escolar indígena?
Cristine Takuá: Apesar da conquista da lei 11.645, ela não é efetivada porque sabemos que as universidades não dão conta de formar os(as) professores(as) para ensinar verdadeiramente o que e como são os povos indígenas no Brasil.
Estamos em luta constante para conseguir efetivar pontos fundamentais, como o currículo, a formação e a carreira do(a) professor(a) indígena. Nas escolas indígenas, ainda temos professores apenas com o ensino médio. No Fórum de Articulação dos Professores Indígenas do Estado de São Paulo (Fapisp), por exemplo, estamos lutando para criar a licenciatura intercultural e implementar diretrizes curriculares para a educação escolar indígena no estado.
No plano federal, o Ministério da Educação tem sido sucateado e a educação escolar indígena foi por água abaixo desde a extinção da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi) do MEC, inclusive por falta de verbas. Vivemos um momento político muito difícil para a educação indígena.
Por isso, penso que o museu deve realizar parcerias com instituições para a formação de professores da rede municipal e estadual futuramente. As(Os) professoras(es) têm um papel muito importante na sociedade e eu não consigo entender porque, infelizmente, somos tão desvalorizados(as) no Brasil. Isso me entristece muito.
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