- Débora souza de britto
Por Antônio Gois* (Jeduca)
“Houve um tempo em que o ensino público era de qualidade, com professoras(es) valorizadas(os) e estudantes dedicadas(os) e disciplinadas(os).” Quantas vezes não ouvimos, com maior ou menor variação, esse tipo de frase em debates sobre educação? Em conversas na família ou entre amigas(os), a imprecisão do diagnóstico tende a ter efeitos menores. O problema é mais grave, porém, quando essa é a visão de formuladoras(es) de políticas públicas. E é o que vivenciamos nos últimos anos, especialmente no período de Jair Bolsonaro na Presidência.
Apenas para citar um exemplo, em seu discurso de posse como terceiro ministro da educação do governo Bolsonaro, Milton Ribeiro – que pouco tempo depois seria afastado por causa do escândalo de corrupção dos pastores no Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) – falou em “resgatar o respeito ao professor”, criticando “políticas e filosofias educacionais equivocadas que desconstruíram a autoridade dos professores em sala de aula”. Alguns meses depois, em entrevista à TV Bandeirantes, ele afirmou que a escola pública de sua época era referência porque “só passava do 1o para o 2o ano o aluno alfabetizado” e que as “coisas mudaram e nós queremos retomar essa qualidade do ensino público”.
Ainda que esteja presente com mais frequência em discursos conservadores, o falso mito da boa qualidade da escola do passado às vezes aparece também na fala de políticos de variados matizes ideológicos. Para o diagnóstico mais preciso dos desafios do presente, é necessário, portanto, entender melhor nosso passado educacional. Primeiro, vamos ao argumento sobre a suposta qualidade superior do ensino público do passado, para depois tratarmos da questão docente.
Como somente a partir de 1995 passamos a ter sistemas nacionais oficiais de avaliação da aprendizagem, a comparação da qualidade do passado e do presente não pode ser feita por meio desses instrumentos baseados em testes. Mas é possível comparar a trajetória de estudantes que ingressavam no 1o ano do ensino primário (hoje fundamental). Com base em estatísticas oficiais do Ministério da Educação (MEC), Otaíza Romanelli, no clássico História da educação no Brasil (1987), mostra que:
🔎 Entre 1942 e 1953, de cada 100 estudantes* que ingressavam no sistema escolar – ou seja, apenas as crianças que conseguiam se matricular num estabelecimento educacional –, somente 2 conseguiam terminar o colegial (hoje ensino médio).
Duas décadas depois, o quadro pouco se alterou:
🔎 Entre 1961 e 1972, apenas 6 entre 100 chegavam à última série do colegial. A maior exclusão acontecia já do 1o para o 2o ano do primário, com menos da metade de estudantes sobrevivendo de uma série para a outra. Mas a exclusão era também alta na passagem do primário para o ginásio, etapa em que aconteciam os famosos – e temidos – exames de admissão.
O quadro atual no Brasil segue insatisfatório. Mas avançamos muito. Hoje, de cada 100 alunos que ingressam na escola, 69 concluem o ensino médio aos 19 anos de idade, de acordo com o Anuário Brasileiro da Educação Básica.
* No estudo, Romanelli trabalha com uma base inicial de 1.000 estudantes. Para facilitar a comparação com o dado recente citado em seguida, este texto adaptou para 100 a base de comparação.
É difícil debater de forma racional quando o argumento em favor de um ponto de vista se baseia em experiências ou memórias pessoais, por vezes demasiadamente romantizadas.
Mas, observando as estatísticas nacionais, é difícil sustentar a conclusão de que tínhamos mais qualidade no passado, a não ser que o conceito de qualidade seja restrito a alguns poucos sobreviventes de um sistema altamente excludente, que abusou do expediente da repetência sem que isso promovesse, em geral, mais aprendizagem.
Descartado o argumento de que a educação do passado – enquanto sistema – era de mais qualidade, resta ainda a afirmação sobre esse suposto tempo em que as(os) professoras(es) eram valorizadas(os). Neste caso, as comparações são ainda mais desafiadoras.
O valor que a sociedade dava a suas(seus) docentes em outros tempos no Brasil é algo difícil de ser quantificado, não apenas porque este pode ser um conceito subjetivo, mas também porque, mesmo o que, em tese, poderia ser um indicador mais objetivo – o salário médio – é igualmente de complicada mensuração.
Primeiro porque havia – como ainda há – significativas desigualdades no rendimento de professoras(es) de diferentes etapas e em diferentes redes estaduais ou municipais. Em segundo lugar, o fato de o Brasil ter convivido ao longo do século XX com altíssimas taxas de inflação torna ainda mais desafiadora a tarefa de situar um momento histórico em que a remuneração docente fosse compatível, considerando o poder aquisitivo, com a relevância social da profissão.
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Em minhas pesquisas para o livro O ponto a que chegamos: duzentos anos de atraso educacional e seu impacto nas políticas do presente (2020), tentei, sem sucesso, encontrar algum documento oficial do passado que trouxesse médias nacionais de remuneração das(os) professoras(es) comparáveis com as que temos hoje. Na ausência dessa informação, optei por investigar como os jornais da época (restringi a pesquisa às décadas de 1940 a 60) noticiavam a questão salarial das(os) professoras(es).
Com muito mais rigor e propriedade, Paula Perin Vicentini e Rosário Genta Lugli fizeram exercício semelhante num capítulo do livro História da profissão docente no Brasil: representações em disputa (2014). Como já antecipa o título do livro de Vicentini e Lugli, os grandes jornais da época traziam, em artigos e textos noticiosos, narrativas distintas das(os) docentes, às vezes ressaltando o caráter de vocação do magistério (em textos repletos de adjetivos e glorificando a figura do mestre), às vezes cobrando melhores salários e condições de trabalho.
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Um artigo publicado na Folha da Manhã em 14 de outubro de 1951 (véspera do Dia do Professor), assinado por P. A. Lencastre, é um exemplo do segundo caso:
“Costuma-se lembrar a figura do mestre-escola que se sacrifica, que empenha todas as suas energias para o fiel desempenho de sua nobre missão. […] Mas a verdade é que se estão exigindo sacrifícios demais do professor […]. Seria ocioso dizer que, sem uma remuneração condigna, esquecido dos poderes públicos, na hora das reivindicações, o professor não terá estímulo […]. Muitos há que, chamados ao magistério por uma verdadeira vocação, dele se afastam porque se sentem atemorizados mui justamente ante as incertezas do futuro, que se apresenta cada vez mais indeciso aos que abraçam a carreira.”
Conforme já citado, não encontrei em minhas pesquisas estatísticas nacionais sobre remuneração docente no período em que, supostamente, vivíamos uma época de ouro na educação pública. Mas há alguns estudos locais. Um deles, de autoria de Aparecida J. Gouveia, servidora do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), foi publicado em 1957 na edição 67 da Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos de 1957. A autora havia feito uma pesquisa sobre satisfação com os salários com professoras(es) primárias(os) e secundárias(os) no estado do Rio de Janeiro.
Descobriu que, no caso das(os) primárias(os), entre setembro e dezembro de 1956, 45% recebiam menos do que Cr$ 3.500 mensais e apenas 7% superavam Cr$ 6.500. Para efeito de comparação, o salário-mínimo vigente naquele ano desde agosto era de Cr$ 3.800. Professoras(es) secundárias(os) recebiam salários um pouco melhores (21% menos do que Cr$ 3.500 e outros 22% entre Cr$ 3.500 e Cr$ 6.500). Mas o grau de insatisfação com os vencimentos era generalizado nos dois grupos: 69% das(os) professoras primárias(os) estavam insatisfeitas(os) com os vencimentos, percentual que aumentava para 86% entre as(os) secundárias(os), mesmo estas(es) registrando remuneração um pouco superior às(aos) primárias(os).
Uma pequena nota publicada na edição de 19 de outubro de 1962, também na Folha da Manhã, é exemplar da dificuldade de se analisar a remuneração docente em tempos de inflação elevada. O texto informava que o piso salarial das professoras primárias no antigo estado da Guanabara aumentaria de Cr$ 23 mil para Cr$ 58 mil. Naquele exato dia, o salário-mínimo nacional vigente era de Cr$ 13.440, mas aumentaria para Cr$ 21 mil em janeiro do ano seguinte. Na mesma página em que a notícia foi publicada em 19 de outubro de 1962, a Casa Eduardo anunciava sapatos a partir de Cr$ 7.600 na festa de inauguração de sua nova loja, na Rua Barão de Itapetininga. Ou seja, o salário de uma professora primária da Guanabara que estivesse em São Paulo naquele dia seria suficiente apenas para três pares de sapato. No mesmo fim de semana, classificados de outro jornal paulista (O Estado de S. Paulo) anunciavam vagas para vendedoras(es) com salários de “Cr$ 30 mil mensais mais comissões” ou para auxiliares de escritório com ordenados entre Cr$ 20 mil e Cr$ 22 mil.
Uma característica importante a ressaltar na análise sobre a remuneração docente na época é que a feminização do magistério já havia ocorrido na virada do século XIX para o XX, mas a presença de mulheres em outras ocupações de nível técnico ou superior era ainda restrita. Isso fazia com que o magistério fosse muitas vezes a única alternativa possível para mulheres cujo rendimento acabava sendo complementar nos lares. Voltando ao estudo de Aparecida Gouveia, restrito ao estado do Rio, 63% das(os) docentes entrevistadas(os) disseram que contribuíam de forma complementar para o orçamento familiar.
Outra evidência encontrada em jornais da época sobre o nível de insatisfação dessas(es) profissionais com seus salários eram as notícias de protestos e até greves de professoras(es) por melhores salários. Esse movimento coincide com o fim da ditadura do Estado Novo (1937-1945) e com o surgimento de várias associações docentes pelo Brasil (o Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo – Apeoesp, por exemplo, foi fundado em 1945 e o Centro do Professorado Paulista registra como 1963 o ano de sua primeira greve do magistério paulista).
Se não é possível confrontar médias salariais nacionais das décadas de 1940 a 60 com as atuais, a análise de jornais e pesquisas sobre professoras(es) nesse período permite ao menos concluir que elas e eles já demonstravam, de diversas maneiras, sua insatisfação com salários e condições de trabalho na imprensa da época.
Voltando ao excelente livro de Vicentini e Lugli sobre a história da profissão docente no Brasil, é curioso constatar que – apesar de registros históricos mostrarem que, desde o período colonial, eram frequentes as queixas sobre salários e condições de trabalho – o discurso sobre um passado glorioso do magistério era recorrente. Ao citarem um texto de 1969, do sociólogo Luiz Pereira (“O magistério primário numa sociedade de classe”), as pesquisadoras afirmam:
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“O autor [Pereira] faz alusão à ideia — bastante disseminada no campo educacional e também fora dele — de que o professor de outrora era respeitado, ganhava tanto quanto um juiz de direito e gozava de prestígio perante toda a sociedade. Esse tipo de afirmação, de modo geral, se caracterizava pela imprecisão, dada pela referência a um tempo indeterminado e distante que é retomada pelos professores em diferentes momentos de nossa história.”
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Peço licença para uma breve digressão cinematográfica. No filme Meia-noite em Paris, de Woody Allen (2011), o protagonista é um escritor estadunidense fascinado pela década de 1920 na capital francesa. Enquanto caminha pela cidade, ele é magicamente transportado para a época de seus sonhos. Uma vez no passado, no entanto, conhece outros artistas que romantizavam épocas anteriores, o que o levou a mais viagens no tempo, sempre em busca de um período glorioso, diferente do presente.
Voltando à educação, esse recorrente discurso saudosista sobre a educação traz, como argumentei no início deste artigo, prejuízos ao diagnóstico dos desafios do presente. O educador português Antônio Nóvoa, em texto de apresentação da coleção Histórias e Memórias da educação no Brasil, assim descreve, de forma magistral como de costume, o risco que esse tipo de pensamento traz ao debate público:
Há um retraimento da memória coletiva da educação porque todo o discurso sobre a escola […] se circunscreve aos limites das memórias individuais, à experiência e às vivências que cada um de nós transporta da sua infância e juventude. Vivemos, portanto, sem uma memória construída, o que nos leva a repetir, uma e outra vez, os mesmos diagnósticos e aplicar velhas soluções de sempre com a aparência de novidade. Como se cada geração só conseguisse mobilizar a sua própria memória, as suas próprias recordações e esquecimentos, abdicando assim de uma compreensão histórica dos fenômenos educativos.”
Antônio Nóvoa
Contestar o mito do passado glorioso da educação brasileira e da valorização docente nesse período não significa, obviamente, que hoje vivemos em tempos ideais. Longe disso. Mas, até mesmo para o correto diagnóstico das ações a serem tomadas nos próximos anos, é preciso também reconhecer avanços, algo que jornalistas (assumo aqui o mea-culpa) costumam ter mais dificuldades para enxergar no tempo presente.
No caso das políticas de valorização docente, é nítido que o período da redemocratização do país trouxe avanços significativos, ainda que insuficientes. Em artigo publicado em 2021 pelo Ipea, Sergei Soares, Letícia Bartholo, Elaine Licio, Alvana Bof, Felipe Martins e Claudio dos Santos mostram que, entre 1989 e 2020, aumentou de 33% para 87% a proporção de docentes da educação básica com ensino superior completo, ao mesmo tempo em que os docentes com apenas fundamental completo – professoras(es) leigas(os) – caíram de 17% para 0,2%. Segundo as(os) autoras(es), é difícil encontrar “outra categoria cuja qualificação tenha aumentado tão avassaladoramente em tão curto espaço de tempo”.
O mesmo estudo mostra também que houve melhorias salariais. Em 2004, o salário-hora de professoras(es) estaduais e municipais representava apenas 50% do verificado na média de outras(os) profissionais com ensino superior. Em 2017, esta proporção chegou a 80%.
Políticas públicas como o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb – substituto do Fundef) e a Lei do Piso do magistério, de 2008, são parte importante da explicação desse movimento. Vale lembrar, porém, que a meta do Plano Nacional de Educação de equiparar os vencimentos docentes com os das(os) demais profissionais com nível superior segue inconclusa.
Apesar dos avanços, não faltam desafios no presente e riscos no futuro próximo. O crescimento da formação em cursos a distância de baixa qualidade é uma das tendências preocupantes. Além dos já citados salários, falta muito também a avançar em melhores condições de trabalho, já que é comum que professoras(es) deem aulas em mais de uma escola, acumulando um número de turmas muito superior à média de países desenvolvidos, como mostrou trabalho recente de Gabriela Moriconi e coautores (2021).
Na história da educação brasileira e da profissão docente, o passado não nos serve como parâmetro de qualidade satisfatória. É preciso mirar o futuro, avançando de forma consistente em políticas de formação, valorização salarial, condições de trabalho e carreira.
Antônio Gois é colunista de educação do Globo e um dos fundadores da Jeduca (Associação de Jornalistas de Educação). Cobre o tema desde 1996. Autor dos livros O ponto a que chegamos: duzentos anos de atraso educacional e seu impacto nas políticas do presente; Quatro décadas de gestão educacional no Brasil, com depoimentos de ex-ministros da Educação desde o governo Figueiredo; e Líderes na escola: o que fazem bons diretores e diretoras, e como os melhores sistemas educacionais do mundo os selecionam, formam e apoiam. Foi bolsista dos programas Knight Wallace Fellows, na Universidade de Michigan, e da Spencer Education Journalism Fellowship, na Universidade de Columbia.
Referências bibliográficas
ANUÁRIO brasileiro da educação básica 2021. São Paulo: Moderna, 2021.
GOIS, Antônio. O ponto a que chegamos: duzentos anos de atraso educacional e seu impacto nas políticas do presente / Antônio Gois. – Rio de Janeiro: FGV, 2022.
GOUVEIA, Aparecida. Professores do estado do Rio. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Rio de Janeiro, ed. 67, p. 30-63, 1957.
MORICONI, Gabriela Miranda; GIMENES, Nelson Antonio Simão; LEME, Luciana França. Volume de trabalho dos professores dos anos finais do ensino fundamental: uma análise comparativa entre Brasil, Estados Unidos, França e Japão. Ribeirão Preto, SP: D3E, 2021. (Relatório de políticas educacionais; 8).
NÓVOA, Antônio. Por que a história da educação. In: STEPHANOU, Maria; BASTOS, Maria Helena Câmara (Org.). Histórias e memórias da educação no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2012, v. III, p. 9-13.
PEREIRA, Luiz. O magistério primário numa sociedade de classes. São Paulo: Livraria Pioneira, 1969.
ROMANELLI, Otaíza de Oliveira. História da educação no Brasil. Rio de Janeiro: Vozes, 1978.
SOARES, Sergei et al. Fim de uma era ou e agora, Maria? Desafios para a atuação federal na educação básica. Texto para Discussão, 2021.
VICENTINI, Paula Perin; LUGLI, Rosário Silvana Genta. História da profissão docente no Brasil: representações em disputa. São Paulo: Cortez, 2009.
Assista à palestra de Antônio Gois sobre seu livro O ponto a que chegamos: duzentos anos de atraso educacional e seu impacto nas políticas do presente:
Veja também
- Manifesto por políticas públicas efetivas de valorização docente
- Olhar histórico sobre a valorização docente no Brasil
- Agenda conservadora na educação X valorização docente
- Professoras(es): protagonistas na construção de uma educação democrática e com equidade étnico-racial
- Especial: 200 anos na caminhada da educação brasileira
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