O que aprendemos ao estudar a implementação de políticas educacionais

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O que aprendemos ao estudar a implementação de políticas educacionais

Em novo e-book com resultados de pesquisas, conheça a rede que estuda a implementação de políticas públicas educacionais no Brasil e saiba como os seus resultados podem ajudar gestoras(es) e tomadoras(es) de decisões

Por Stephanie Kim Abe

O que faz com que uma política pública educacional, muitas vezes pensada entre quatro paredes de um gabinete, chegue ao seu público-alvo, lá na ponta? O que é preciso considerar, quando desenha-se uma política pública? Quais os processos que interferem na sua implementação? Mais do que isso, quem são as pessoas que fazem com que ela chegue de fato no chão da escola – e sob quais condições e crenças elas atuam? 

Como podemos ver, são várias as perguntas que podem ser feitas para trabalhar todas as camadas que envolvem a formulação e a implementação de uma política pública. E, muito graças à Rede de Estudos sobre Implementação de Políticas Públicas Educacionais (REIPPE), são várias também as metodologias que podem ser utilizadas para estudar essas questões. 

A REIPPE nasceu em 2014, de uma inquietação de duas pesquisadoras – Cynthia Paes de Carvalho e Vanda Mendes Ribeiro – quanto às pesquisas acadêmicas da época em relação às políticas educacionais, que focalizavam muito mais o texto das leis e programas do que a sua implementação de fato e os diferentes processos (sociais, políticos, culturais e administrativos) que a envolvem. 

Como explica Vanda Mendes Ribeiro, co-fundadora e membro do Conselho Deliberativo da REIPPE:

Foto: acervo pessoal

Nós nos apropriamos de conceitos e de metodologias de outras áreas, como Ciência Política, Sociologia, Antropologia, para estudar a implementação. Nesse processo, conseguimos sistematizar e criar as metodologias que hoje são utilizadas por diversos pesquisadores de diferentes regiões do país e que compõem a REIPPE”.

Vanda, que é socióloga, doutora em Educação e pesquisadora no Instituto JUS – Desenvolvimento de Inovações Tecnológicas, Sociais, Gestão de Políticas Públicas e Justiça, trabalhava no Cenpec à época em que a Rede estava se estruturando. 

“O Cenpec nos forneceu um apoio muito importante nesse começo, porque não tínhamos recursos. A organização nos apoiou fornecendo desde espaço para reuniões até rede de contatos e pessoal para a pesquisa inicial”, relembra Vanda. 

O livro traz artigos originais representativos da expansão atual da rede e das principais pesquisas realizadas por suas(seus) pesquisadoras(es), mestrandas(os) e doutorandas(os), ao longo dos últimos nove anos. Ele está disponível de forma gratuita no site da REIPPE.

Para Fabiana Silva Fernandes, pedagoga, doutora em Educação Escolar, pesquisadora do Departamento de Pesquisas Educacionais da Fundação Carlos Chagas e membro da REIPPE:

Foto: acervo pessoal

Essas pesquisas que estão no e-book são o resultado de um trabalho de anos, feito por pessoas que trouxeram referências, se apropriaram delas, e foram construindo programas de pós-graduação e grupos de pesquisa em diferentes instituições e universidades brasileiras. Estamos falando de conceitos de implementação de políticas, como ‘implementadores de médio escalão’ e ‘burocratas de nível de rua’, de Michael Lipsky, entre outros, que têm sido aplicados para estudar diferentes políticas educacionais a partir desse viés da implementação“.

Para falar mais sobre a obra e os principais achados desses estudos de implementação de políticas públicas educacionais, confira abaixo a entrevista com Fabiana Fernandes e Vanda Ribeiro. 


Portal Cenpec: O que é o estudo da implementação de políticas públicas educacionais? 

Capa do e-book

Fabiana Fernandes: Temos uma tradição de pesquisa na educação, bem consolidada, que estuda a estrutura das leis, faz a análise das políticas e da sua formulação. Poucos estudos, porém, se dedicam ao processo de desenvolvimento de implementação dessas políticas.  

Então o que acontece, por exemplo, lá na escola com os atores que estão envolvidos com uma política que é feita no âmbito do governo federal? Como essas leis se materializam, no plano das relações, das pessoas que são diretamente afetadas por essas políticas?

Existe toda uma dinâmica que faz com que aquilo que é formulado não necessariamente vá se materializar de tal forma como se pretendia. E ela envolve a relação e as interações entre as pessoas principalmente, porque elas interpretam as normas e as diretrizes, interagem entre si e com o público-alvo, e têm a sua própria forma de ver e de fazer as coisas de acordo com algo que é muito próprio delas, que são seus valores, suas crenças.

Então sentimos a necessidade de trabalhar essas questões, principalmente a partir das questões que surgiram da conversa entre Cynthia Paes de Carvalho, Vanda Mendes Ribeiro e Alicia Maria Catalano de Bonamino. Achamos importante porque muitas vezes nos questionamos: por que formulamos tantas leis e as coisas não acontecem do jeito que gostaríamos? Por que o desenho não é implementado como foi programado?

Vanda Ribeiro: As interações são diversas: entre as pessoas, entre os diferentes órgãos, entre os agentes implementadores. 

Pensemos, por exemplo, uma política formulada em âmbito federal, como o Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC). Ela terá uma interação com estados e municípios que, por sua vez, também normalmente têm outros órgão descentralizados – como uma diretoria de ensino, no caso de São Paulo, por exemplo –, que, por sua vez, vão interagir com as escolas. E, daí, atingimos o público-alvo diretamente. 

Ou seja, para essa diretriz que começou em âmbito nacional chegar até os estudantes, ela passou por todo esse processo e pelas mãos de diferentes pessoas que estão em poder de decisão. O que interfere nessa passagem? O que dificulta a entrega dessa política no chão da escola? É isso que estudamos. 

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Portal Cenpec: Nesses nove anos de estudos da REIPPE, quais são esses fatores que vocês identificaram que impactam na implementação de políticas públicas educacionais?

Vanda: Toda política pública está envolta de um contexto enorme que afeta a sua implementação. Há os juízos de valores dos agentes implementadores (que podem ser os formadores, ou as equipes técnicas das secretarias), questões econômicas (quanto de recurso está sendo destinado para o programa), capacidade técnica, a forma como a política se estrutura para chegar em algum lugar, o entendimento que os agentes implementadores têm da política etc. 

Se pensarmos ainda na enorme disparidade regional que existe no Brasil, perceberemos que uma política nacional vai chegar de forma diferente em cada um desses lugares, a depender desses fatores listados acima e outros. 

Fabiana: Um outro aspecto que eu tenho observado são as condições institucionais. Uma política só vai pra frente quando você tem mesmo uma equipe direcionada para isso. 

Além disso, nenhuma política é bem-sucedida da forma como uma secretaria gostaria – e aqui estou até falando de um juízo de valor – se o agente implementador não acreditar naquilo que ele está fazendo. Ele muda completamente o escopo, o desenho, o que for da política, se não houver um um processo de convencimento, de incentivo ou de crença naquilo que ele deve fazer. 

Isso significa que, por mais conhecimento que ele tenha, se aquilo que a política propõe interfere nos seus interesses ou não respeita uma dinâmica existente no local, um conjunto de relações estabelecidas entre público-alvo e agente implementador, ela não será implementada. 

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Portal Cenpec: Como esses valores dos agentes implementadores afetam a implementação da política pública na prática?

Vanda: Isso pode impactar negativamente quanto positivamente. 

A Leila Kusano estudou a implementação do Programa Saúde na Escola no Distrito Federal – artigo este que está presente no livro. Esta política é complexa já na sua formulação, porque ela requer a interação entre duas áreas: Saúde e Educação. Então ela deve considerar a percepção dos professores, dos coordenadores pedagógicos, dos diretores, dos estudantes, dos agentes de saúde. 

Mas quem são esses alunos que precisam dessa política? Eles precisam realmente de todo esse conteúdo que o programa prevê? Quais são aqueles que eu vou focalizar? O que que eu vou abordar mais?

A Leila constatou que os professores tinham uma avaliação própria de quais temas eram importantes serem tratados em determinada escola. Como havia muitas adolescentes grávidas, eles acabaram privilegiando as temáticas relacionadas à gravidez na adolescência e de sexualidade. 

No estudo da Marina Meira de Oliveira sobre fracasso escolar, cujo programa buscava incidir nos dados de retenção, ela constatou a influência de princípios de justiça na montagem dos grupos de crianças que iriam receber o apoio da política no contraturno. 

Havia alguns critérios definidos pelo desenho da política para essa escolha, mas os agentes implementadores, que são quem estão aplicando essas normas, acabavam eventualmente levando em conta, por exemplo, se a criança, na sua percepção, era mais esforçada, prestava mais atenção, “merecia” mais receber esse incentivo e esses materiais novos. 

Nesse estudo, ficou muito claro, por exemplo, que havia no grupo menos crianças negras e até crianças que não tinham nenhum problema, por exemplo, de nota.

Então veja: em âmbito nacional, foi pensado uma política enorme que abrange os conteúdos a serem abordados, mas, quando chega lá na portinha da entrega, quem vai tomar uma série de decisões são esses agentes implementadores, que as tomam em cima de suas percepções e valores. 

São princípios de justiça que são de certa forma naturais a todos nós – porque, como pessoas, nós avaliamos, fazemos juízo de valor –, que acabavam se tornando princípios de distribuição de um bem público. 

Muitas vezes, isso pode acontecer até inconscientemente. Temos um Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), por exemplo, que distribui livros novos de literatura para as escolas, mas pode acontecer de, quando o material chegar para o diretor, ele olhar e falar: “poxa, esses meninos vão estragar esses livros tão bonitos. Melhor deixar fechado na biblioteca”. 

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Portal Cenpec: De que maneira estudar e olhar para esses fatores contribui para a formulação e implementação de outras políticas?

Fabiana: Elas nos mostram que há maneiras que acabam não funcionando, e outros fatores que precisam ser levados em consideração. A nossa preocupação é entender como é que as coisas se configuram, se materializam, como elas chegam em determinado resultado. O que moveu certos agentes para, por exemplo, mudar uma determinada política e não seguir exatamente aquilo que estava prescrito, ou para transformar aquilo em algo totalmente diferente do que deveria ser feito. 

Entre os aprendizados, percebemos a importância da formação dos agentes implementadores e a necessidade de você envolver o público-alvo e os agentes implementadores no processo de definição de políticas, para saber realmente o que é importante e necessário para eles. Esse diálogo de baixo pra cima é importante.

Vanda: Fazemos esses estudos primeiro para saber e acumular conhecimento sobre esse processo. Então é importante entender que quando o agente implementador entrega um serviço pra população, ele tem esses princípios de justiça. 

Em um estudo sobre a implementação do Programa São Paulo Integral (PSPI), do qual o Cenpec participou, observamos que havia algumas necessidades, que até estavam previstas no desenho da política, mas para as quais não foram dotados recursos efetivamente no momento da implementação. Por exemplo, haviam previsto o número de professores que dariam conta da demanda que gera a ampliação da jornada de trabalho, porém isso não foi coberto, o que gerou problemas na implementação. Em um segundo momento, sabemos que o número de horas dos professores foi contemplado pela prefeitura. Mas se tivéssemos olhado somente para o desenho da política, acharíamos que estava tudo certo. Porém, no momento da implementação, algo ocorreu. 

Isso tudo apoia muito um gestor público que vai desenhar uma política, porque ele pode pensar modos de lidar com esses fatores que necessariamente vão incidir numa política que é desenhada numa esfera a nível X, antes de chegar lá no Z.

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Portal Cenpec: Como tem sido o diálogo com gestoras(es) educacionais e como os estudos da REIPPE podem ser úteis a elas(es)?

Vanda: Como mencionamos anteriormente, o estudo da implementação dá dicas para o gestor educacional. Se quero implementar uma política pública para enfrentar a desigualdade, eu preciso pensar onde está esse aluno, que tipo de formação eu preciso fazer para este professor que vai aplicar a política, quais os critérios de escolha que serão utilizados. 

Os estudos ajudam a pensar quais ações e articulações eu consigo antecipar, para ser mais efetivo, gastando menos recurso inútil e enfrentando mais a desigualdade. 

Fabiana: Por isso nós gostaríamos que essa obra chegasse aos gestores. Temos também a preocupação de ampliar o número de pesquisadores gestores que trabalham na nossa rede, porque há lugar para eles aqui. Queremos justamente oferecer instrumentos e materiais para ajudá-los a pensar e implementar as políticas públicas. 

Por exemplo, durante a pandemia, vimos nos nossos estudos como as secretarias e os gestores focaram em organizar cursos de formação remota, mídias digitais e outras plataformas de ensino, sendo que muitas crianças e adolescentes não tinham acesso ao computador. Os estudos podem antecipar esse tipo de decisão e ajudar a tornar a política mais eficaz. 


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