Olhar histórico sobre a valorização docente no Brasil
Entenda como fatores como carreira, formação, salário e reconhecimento têm sido tratados ao longo da história brasileira no processo de valorização de professoras e professores
Por Stephanie Kim Abe
Engana-se quem pensa que valorização docente tem a ver apenas com salários dignos. Ou a planos de carreira estruturados e formação adequada. Ou ao reconhecimento social da importância do papel que professoras e professores. Valorização docente é a soma de tudo isso.
Por um lado, temos tido avanços nos últimos anos nesse sentido. Segundo o Anuário Brasileiro da Educação Básica 2021, realizado pelo Todos pela Educação em parceria com a Editora Moderna, o número de professoras(es) da educação básica com pós-graduação aumentou na última década (de 24,5% para 43%), o salário tem se aproximado dos demais profissionais com curso superior (atualmente em R$4.131) e avançou a proporção de docentes que lecionam em apenas uma escola (79,6%).
Políticas públicas como o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (FUNDEF) e, mais recentemente, o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), a Lei do Piso Salarial Profissional Nacional (Lei nº 11.738, de 16/7/2008), as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores (Resolução CNE/CP 1/2002), a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei nº 9.394/96) foram determinantes para que isso acontecesse.
Por outro, ainda estamos aquém do cenário ideal — tanto que, das quatro metas do Plano Nacional de Educação (PNE – Lei 13.005/14) que versam sobre a formação e a valorização docente, apenas uma foi parcialmente cumprida. Para entender porque avançamos pouco, não vale apenas olhar para os últimos anos.É preciso olhar para a história da formação do Brasil como um todo.
No livro Professores do Brasil: novos cenários de formação, publicado em 2019 pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) em cooperação com a Fundação Carlos Chagas, as autoras Bernardete Gatti, Elba Siqueira de Sá, Marli Eliza Dalmazo Afonso de André e Patrícia Cristina Albieri de Almeida deixam claro que:
“Não é de hoje que enfrentamos dificuldades em ter professores habilitados para cobrir as demandas da população escolarizável, dificuldades para oferecer uma formação sólida, e, também, recursos suficientes para dar a eles condições de trabalho e remuneração adequadas. É um dos traços persistentes e problemáticos em nossa história” (pág. 20)
#PriorizaAProfessora: venha discutir a docência nas eleições 2022
Por que priorizar as políticas públicas de formação e valorização de professoras(es) da educação básica nos planos de governo de candidatas(os) nessas eleições? Como a qualificação e o fortalecimento da carreira docente podem incidir na garantia e recomposição de aprendizagens, profundamente impactadas na pandemia?
Na próxima terça-feira (dia 30/08), o Cenpec promove o evento #PriorizaAProfessora: a docência no centro do debate sobre educação nas eleições 2022. On-line, ao vivo e gratuito, o debate será transmitido às 15h (horário de Brasília), pelo canal do Cenpec no YouTube.
Com duas mesas temáticas e diversos especialistas da área educacional, o evento abordará questões emergentes sobre a carreira docente na educação básica do país, sob a condução de especialistas que são referência no assunto.
Confira o convite de Romualdo Portela, diretor de Pesquisa e Avaliação do Cenpec, para o evento:
Nos primórdios da educação escolar no Brasil, por exemplo, época em que ela era comandada pelos jesuítas (1549 a 1759), os professores eram religiosos que tinham uma formação “muito sólida”, conforme explica o professor João Monlevade, doutor em educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e ex-consultor técnico do Senado Federal:
Os jesuítas tinham anos de estudo em Religião, Letras, Filosofia, Teologia — e eram eles que alfabetizavam as crianças. Eram considerados homens das Ciências e vistos pela sociedade como hoje olhamos um ministro do Supremo Tribunal Federal. Ou seja, durante mais de 200 anos, os professores foram supervalorizados”.
João Monlevade
Vale lembrar que, durante a colonização, não se pode considerar que havia um sistema de ensino propriamente dito no país, mas sim uma autorização do governo pelos jesuítas para ensinar em seus estabelecimentos as crianças da elite da época (excluindo, consequentemente, a população negra e originária).
Da expulsão dos jesuítas à independência brasileira (1822), a educação passou a ocorrer pelas chamadas Aulas Régias, estabelecidas pelas Reformas Pombalinas. Para João, elas significaram um processo de desvalorização do professor, à medida que a qualidade dos docentes decaiu e o honorário que eles recebiam era baixos:
Não havia critério de qualidade, e os professores jesuítas que tinham um acúmulo em educação foram substituídos pelos chamados ‘professores leigos’, que eram uma pessoa alfabetizada, sem comprovação de formação. Foi então que passamos a valorizar o professor não mais pelo seu saber e autoridade, mas pelo valor de seu salário”, explica.
João Monlevade
Em Educação Brasileira: O Ensino de 1º e 2º graus: Antes, Agora e Depois?, Valnir Chagas descreve como era o trabalho dos professores na época:
“O aluno se matriculava em tantas “aulas” quantas fossem as disciplinas que desejasse. Para agravar esse quadro, os professores eram geralmente de baixo nível, porque improvisados e mal pagos, em contraste com o magistério dos jesuítas, cujo preparo chegava ao requinte. Nomeados em regra por indicação ou sob a concordância de bispos, tornavam-se “proprietários” das respectivas aulas régias que lhes eram atribuídas, vitaliciamente, como sesmarias ou títulos de nobreza.” (CHAGAS. V. (1980) Educação brasileira: o ensino de Io e 2o graus. 2. ed. São Paulo: Saraiva.)
Formação docente
A necessidade de formação dos professores começou a se consolidar com a criação das Escolas Normais, em 1834, mas que só começaram a ser valorizadas de fato no século 20.
“As escolas normais de nível primário e secundário, mais tarde agregadas ao ensino médio, desempenharam papel importante na formação dos professores para os primeiros anos da educação básica durante o século vinte, até o momento em que, após a promulgação da Lei no 9.394/96 – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (BRASIL, 1996) que propôs que a formação dos professores fosse feita em nível superior, elas começam a ser extintas. Seu currículo também sofreu mudanças nesse período de tempo, uma delas a criação de habilitação para a educação infantil, e outra, já nos anos setenta, a transformação de todo o curso como apenas uma habilitação do ensino médio geral, com redução em seu currículo de vários aspectos formativos relativos à formação de professores para atuar nos primeiros anos da educação básica, o que foi considerado uma descaracterização dos cursos normais em suas finalidades (MELLO et al. 1985; GATTI, 1987; LELIS, 1989).” (p. 23)
Nessa época, houve uma crescente demanda por matrículas e por uma diversificação na oferta de docentes. O perfil desse profissional começou a mudar, com mais presença de mulheres e de classes populares.
Em sua tese de doutorado sobre a conquista da Lei do Piso, o professor João explica como essa mudança não significou melhores salários:
“Os docentes não são mais os ‘moços pobres e as moças ricas’ dos primeiros quadros de formandos da ‘Escola Normal Caetano de Campos’. Engendrava-se um novo quadro de assalariados e assalariadas que, por precisarem do salário para sobreviver, talvez fossem mais dóceis em aceitar a proposta do capital travestido em Estado empregador: ‘se queres ganhar mais, trabalha mais”. (p.39)
Desvalorização docente
João explica que a conta que leva à desvalorização do salário docente ao longo do século 20 tem como fatores o crescimento das matrículas com o aumento demográfico da população brasileira na primeira metade do século 20 e a industrialização acelerada que demanda mais escolarização e acelera a migração do campo para a cidade.
Como o ritmo de crescimento da função docente não foi acompanhado da arrecadação de impostos, houve, como consequência, uma diminuição do salário desses profissionais e o acúmulo de cargos, jornadas e empregos (período de 1950 a 1990).
Conforme o sistema educacional brasileiro foi se estruturando, a ideia do direito à educação pública gratuita e de qualidade para todas e todos se consolidando e as estatísticas e avaliações se aprimorando, também é preciso considerar outro fator que hoje está ligado ao reconhecimento ou não das(os) educadoras(es):
“A valorização do professor é diretamente proporcional ao resultado da aprendizagem do aluno. Se o aluno não aprendeu, o professor não é valorizado socialmente”, diz João.
Formação continuada
Uma das grandes conquistas do Magistério que foi regulamentada pela Lei do Piso foi a reserva de 33% das horas da jornada de trabalho para atividades extraclasses, que permite à(ao) docente planejar suas aulas ou se dedicar ao seu processo de formação continuada.
Maria Amabile Mansutti, consultora do Cenpec, chama atenção para o fato dessa conquista ter sido deturpada:
Como o salário é muito baixo hoje em dia, cada sistema de ensino regula essa questão de uma determinada forma. A(O) professora(or) acaba não ficando na unidade e muitas vezes utilizando esse horário para complementar a sua renda, trabalhando em outras escolas”.
Maria Amabile Mansutti
Ela lembra que, infelizmente, o Brasil não tem uma política de formação continuada consistente ou programas voltados para o desenvolvimento profissional docente:
Peguemos a Base Nacional Comum Curricular como exemplo. Era preciso uma política de formação de professores para que eles entendessem a BNCC, já que suas orientações curriculares são por competências e habilidades — enquanto a cultura e a prática docente estão mais voltadas a uma visão conteudista. Sem essa política, há muitos entraves para a implementação efetiva da Base, como temos visto nos projetos em que estamos trabalhando”.
Maria Amabile Mansutti, consultora do Cenpec
A falta de articulação entre a formação inicial e a continuada e de planos de carreira que retenham as(os) melhores professoras(es) na sala de aula (em vez de concorrer a cargos de coordenação ou gestão), além da cultura de descontinuidade dos programas educacionais, são outros gargalos importantes de serem solucionados para que possamos avançar na valorização da docência no Brasil, aponta Amabile.
Para o professor João, a qualidade da aprendizagem não deve ser olhada apenas como de responsabilidade das(os) professoras(es) — afinal, não é só na sala de aula que se educa:
A escola não é só a sala de aula. Ela é um conjunto de espaços educativos onde você tem o refeitório para a criança ter garantido o seu direito à alimentação e ter educação alimentar; a biblioteca para ela frequentar, ler livros, ter outras referências, etc. Ou seja, precisamos entender que o porteiro, a merendeira, a bibliotecária também educam e, portanto, também precisam ser valorizados”.
João Monlevade
Justamente por isso, a(o) professora(or) defende dignidade e equidade nos salários de todas as redes de ensino não apenas para as(os) docentes, mas para todos as(os) profissionais de educação, assim como jornadas de trabalho adequadas à atuação de cada uma(um) delas(es).
Por exemplo, às(aos) docentes, jornada com 50 a 60% do tempo dedicado à interação com estudantes em “turmas” e o restante com formação continuada, preparação das ações, avaliação dos alunos, atenção individual ou a grupos, interação com a comunidade escolar e local. Já às(aos) funcionárias(os), jornada com até 80% das horas semanais dedicadas às atividades da função específica e o restante com formação continuada e interação com comunidade escolar e local.
“Essas pessoas poderiam ser as responsáveis pela ligação entre a comunidade e a escola, fazendo um recenseamento ou uma busca ativa — mesmo porque, os funcionários costumam ser aqueles que moram perto da instituição escolar. Professor costuma morar longe. É preciso considerar a sua formação, jornada e salários”, defende João.
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