Percursos Alternativos para a educação étnico-racial
A plataforma Percursos Alternativos busca complementar a BNCC trazendo conteúdos gratuitos sobre a temática para estudantes, docentes e gestoras(es); saiba mais
Por Stephanie Kim Abe
Para que continuemos avançando na implementação da Lei 10.639, que este ano completa 20 anos de vigência, é preciso dar suporte para que a educação para as relações étnico-raciais se incorpore de fato no currículo escolar e no projeto político pedagógico das escolas.
É buscando apoiar professoras(es), gestoras(es) e estudantes nesse trabalho que surge a plataformaPercursos Alternativos. Como explica Valter Roberto Silvério, professor da Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR) e membro do Coletivo de Intelectuais Negras e Negros (CDINN):
A plataforma Percursos Alternativos procura fazer a relação de competências e habilidades, habilidades e competências de uma perspectiva étnico-racial que incorpora a historiografia sobre a experiência dos afro-brasileiros, africanos e afrodescendentes, transversalizando conteúdos em todos os campos disciplinares previstos na BNCC.”
Os materiais disponibilizados gratuitamente na plataforma – uma realização do CDINN em parceria com o Instituto Unibanco – estão organizados de acordo com o público alvo: estudantes, professoras(es) e política educacional e gestão. Eles versam sobre questões como racismo ambiental, estereótipos dos corpos negros, slam, gênero e sexualidade, quilombos etc. Há textos de apoio, indicação de podcasts e referências bibliográficas.
Para as(os) docentes, os planos de aulas disponíveis indicam quais competências e habilidades serão trabalhados com aquele conteúdo e demais materiais que podem ser utilizados para introduzi-lo à turma.
Atualmente, a área voltada para as(os) estudantes é a que apresenta maior quantidade de material que incluem as áreas de Ciências da Natureza, Humanidades, Linguagens e Mídias.
“A plataforma está em constante atualização. Hoje, ela está um pouco desequilibrada, com mais conteúdos sobre Ciências da Natureza e suas Tecnologias do que dos outros campos disciplinares. Mas temos uma proposição de longa duração de acrescentar mais conteúdos das outras áreas semanalmente. Também estamos desenhando o que seria uma gamificação da plataforma para uso tanto no computador como no celular“, explica Valter.
Como podemos avançar
A seguir, o professor Valter Silvério explica, em entrevista ao Cenpec, sobre os avanços da Lei 10.639/2003 e como incluir a educação para as relações étnico-raciais de forma transversal no currículo.
Confira abaixo!
Portal Cenpec: Como você vê a implementação da Lei 10.639 desde a sua promulgação há 20 anos? Como podemos avançar mais?
Valter Silvério: Eu faço essa avaliação em três momentos.
De fato, os vinte anos da lei mostram que aquela velha máxima de que “lei não pega no Brasil” não é verdadeira. A lei 10.639 pegou. Agora, ela pegou pra quem? Para a sociedade civil.
A sociedade civil brasileira demonstra que quer, que tem necessidade desses conteúdos, inclusive para lidar com os conflitos e as contradições que aparecem no chão da escola.
Porém, a lei pegou muito menos – ou não pegou – do ponto de vista estatal. Acho que o Estado brasileiro, pensado nas suas diferentes dimensões (municipal, estadual, federal), não entendeu ainda a profunda mudança social em curso na representação que temos do Brasil. Para esses poderes, ainda há uma imagem muito próxima à ideia da democracia racial, que apagou as várias culturas que formam a sociedade brasileira.
Então temos, de um lado, a sociedade civil manifestando essa pluralidade cultural – que é muito benéfica para o Brasil enquanto sociedade – e, do outro, o entendimento do Estado de onde nós estamos quanto a essa mudança social.
Há ainda um terceiro aspecto, que nem sempre é percebido, que é como o Brasil é visto lá fora. Para os nossos vizinhos latino-americanos, caribenhos, norte-americanos, ou mesmo os europeus, nós temos feito mudanças estratégicas. Eles acreditam que nós conseguimos implementar uma lei dessa natureza – e isso tem um impacto extremamente positivo na imagem internacional do Brasil.
Mas essa imagem acaba não sendo compatível com as dificuldades que nós temos em implementar a lei, que são colocadas pelo próprio Estado. Nós sabemos o quão difícil é implementar institucionalmente a lei, no sentido de dar visibilidade para e mostrar que estão vivas todas as culturas que participaram da formação social brasileira.
Então a lei pegou, mas ainda temos muito trabalho pela frente. E, para enfrentar os desafios que são colocados no plano institucional, seria necessário uma mudança prática, de currículo mesmo.
Mas nós entendemos que a Base é uma realidade e há todo um trabalho de implementação da BNCC, não havendo espaço neste momento para discutir uma reelaboração da Base na ótica dessas Diretrizes.
Por isso a importância de iniciativas como a do Percursos Alternativos, que procura fazer a relação de competências e habilidades, habilidades e competências de uma perspectiva étnico-racial que incorpora a historiografia sobre a experiência dos afro-brasileiros, africanos e afrodescendentes, transversalizando conteúdos em todos os campos disciplinares previstos na BNCC.
Portal Cenpec: Como foram pensados os temas que estão sendo abordados na plataforma Percursos Alternativos?
Valter Silvério: Eles são pensados de uma maneira bastante contemporânea. Tivemos duas preocupações. Uma no sentido de um olhar nacional, no sentido de contemplar a agenda de debates e proposições em relação à educação das relações étnico-raciais e ensino de história e cultura afro-brasileira e africana tal como previsto nos documentos normativos desde a Constituicão de 1988.
A outra preocupação tem um caráter mais global, pois procura se encaixar com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Então todo o material que temos desenvolvido refletem essas duas dimensões.
Portal Cenpec: Além de trazer materiais para gestoras(es) e professoras(es), vocês trazem materiais que conversam diretamente com as(os) estudantes. Por quê?
Valter Silvério: Sabemos que hoje em dia muitos estudantes acabam indo a escola não tanto pelo conteúdo que aprendem, mas pelas relações com os amigos e colegas.
Na minha percepção, isso se deve porque os conteúdos hoje propostos nas escolas, de uma maneira geral, são defasados em relação ao acesso que os estudantes tem através, por exemplo, da internet.
A nossa ideia básica foi respeitar essa relação que os estudantes têm com a rede mundial e utilizar essa perspectiva educacional que as redes sociais e a internet têm para fornecer a eles conteúdos mais atualizados, interativos e engajador.
A partir disso, a expectativa é que os estudantes provoquem também nos professores essa necessidade permanente de atualização. Veja bem: não estou dizendo que os professores estão desatualizados, mas é fato que o tipo de uso e acesso que os estudantes fazem da internet é muito maior que o dos professores.
Embora o estudante seja um elemento central da plataforma, a nossa grande preocupação é que o professor lide com os temas contemporâneos das diferentes áreas disciplinares, indicando ao estudante como é que ele pode preparar um plano de outra natureza. Lógico que isso deve estar contemplado na formação desse profissional, mas ele pode inclusive utilizar diferentes semioses na preparação de um plano de aula, melhorando assim a possibilidade de interação com os estudantes.
Portal Cenpec: Quais os desafios da formação docente para que educadoras(es) consigam realizar práticas pedagógicas voltadas para a educação étnico-racial?
Valter Silvério: Bom, o primeiro desafio é fazer uma crítica construtiva do documento.
O segundo desafio é trabalhar dentro da perspectiva orientada pelas Diretrizes Nacionais de 2004, fornecendo aquilo que os professores reivindicam desde a mudança da LDB: conteúdo. Os professores precisam de conteúdo, de meios e materiais de como trabalhar a educação para as relações étnico-raciais nos diferentes campos disciplinares.
Penso que o terceiro desafio é a a formação também dos gestores nessa perspectiva, uma vez que os materiais em termos de gestão nesse tema são prioritariamente materiais em língua inglesa.
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