#PL573 ameaça gestão democrática na educação paulistana

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#PL573 ameaça gestão democrática na educação paulistana

Por que o projeto de lei que tramita em São Paulo (SP) e autoriza a gestão de escolas públicas por organizações sem fins lucrativos é um perigo à participação social e à qualidade da educação

Por Stephanie Kim Abe

Um dos princípios que regem a educação pública brasileira, tal qual posto no artigo 206 da Constituição de 1988, é a gestão democrática. Isso implica garantir mecanismos e processos de organização e gestão que favoreçam a participação efetiva de diferentes atores da comunidade escolar. Essa premissa aparece também na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) e na meta 19 do Plano Nacional de Educação (PNE).

Na maior rede municipal do país, a de São Paulo, não é diferente — tampouco esse pressuposto é algo inédito. Quando ocupou o cargo de secretário municipal de educação de São Paulo, durante o governo de Luiza Erundina (PT), o educador Paulo Freire elegeu a gestão democrática como uma das prioridades da sua gestão. 

Já como dirigente, em 1990 — com a Constituição recém saída do forno e a democracia ainda engatinhando pós-regime militar — Freire disse:

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“Tudo que a gente puder fazer no sentido de abrir mais a escola, no sentido de provocar, pedir, convocar, desafiar estudantes, merendeiras, zeladores, vigias, diretores de escola, coordenadores pedagógicos, Naes [Núcleo de Ação Educativa], quer dizer, médico, dentista, aluno, vizinho da escola, quer dizer, tudo que a gente puder fazer no sentido de convocar os que vivem entorno da escola e dentro da escola, no sentido de participarem, de tomarem um pouco o destino da escola na mão também. Tudo o que a gente puder fazer nesse sentido, é pouco, ainda, considerando o trabalho imenso que se põe diante de nós, que é o de assumir esse país democraticamente”.

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Paulo Freire

Como professora que entrou na rede municipal de educação de São Paulo em 1965 e que participou da secretaria durante a gestão de Freire, Meyri Venci Chieffi — que hoje faz parte do Coletivo Paulo Freire — relembra algumas das principais ações do período nesse sentido:

Foto: acervo pessoal

Para nós, a qualidade de ensino se traduziu em uma intensa construção participativa de currículo e de formação continuada. Nós tornamos os conselhos escolares, que eram apenas consultivos, em deliberativos, e estimulamos a participação por meio de reuniões semanais nos órgãos regionais, colegiados e na secretaria. Terminamos a nossa gestão com um Estatuto do Magistério formalizado, que incluía horário de trabalho coletivo na jornada de trabalho, piso, a criação do cargo de professor adjunto, o adicional noturno para fazer valer a pena o professor trabalhar em escolas à noite etc. Reduzimos a evasão e a retenção, pudemos apoiar projetos pedagógicos inovadores vindo das(os) próprias(os) professoras(es) ou coordenadoras(es). Foram avanços importantes para a democratização do ensino”.

Meyri Venci Chieffi

A gestão de Paulo Freire não foi a única que trabalhou a gestão democrática. Ao longo dos últimos 30 anos, ela segue como um princípio da educação paulistana.

No Plano Municipal de Educação de São Paulo (Lei no 16.271), aprovado em 2015, a meta 12 estabelece que ela seja efetivada por meio de recursos financeiros e criação de mecanismos de controle social. 


META 12. Assegurar condições, no prazo de um ano, para a efetivação da gestão democrática da educação, prevendo recursos financeiros e apoio técnico e aprimorar mecanismos efetivos de controle social e acompanhamento das políticas educacionais no Município de São Paulo.
(…)

12.10. Garantir no sistema municipal de ensino a participação e a consulta de profissionais da educação, educandos e seus familiares na formulação e avaliação do Projeto Político Pedagógico da escola, currículos escolares, plano de gestão escolar e regimento escolar. 

12.11. Fortalecer a gestão democrática das unidades educacionais em seus aspectos pedagógica, administrativos e financeiros

✏️ Plano Municipal de Educação de São Paulo (Lei no 16.271/15)
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Entenda mais da gestão de Paulo Freire aqui


Uma ameaça à vista

Não foi à toa, portanto, a surpresa de Meyri quando ela tomou conhecimento do PL (Projeto de Lei) 573/2021. Atualmente em tramitação na Câmara Municipal de São Paulo, o seu texto propõe que OSCs (organizações da sociedade civil sem fins lucrativos) sejam autorizadas a gerir escolas municipais de ensino fundamental e médio. 

A ideia é implementar um programa de “gestão compartilhada” em algumas escolas, com prioridade para escolas públicas municipais localizadas em bairros com menores indicadores de Desenvolvimento Humano e com menores níveis de avaliação escolar, no sentido de “modernização do modelo educacional” e melhoria da qualidade do ensino. 

Em seu art. 10, o PL permite que as organizações sociais estruturem “a matriz curricular, o projeto político pedagógico, as metodologias de ensino e organização escolar, assim como os materiais pedagógicos da escola assistida desde que aprovados previamente pela Secretaria Municipal de Educação”. E, segundo o art. 11 do PL, as OSs poderão contratar professoras(es), diretoras(es), vice-diretoras(es) e secretária(o) escolar

Foto: Foto: Richard Lourenço/Rede Câmara

Para Meyri, o PL é um perigo para a educação pública como um todo, fere os princípios da gestão democrática e tem o potencial de descaracterizar a rede de ensino:

O que faz uma rede ser uma rede? São as coisas em comum: a estrutura, os saberes construídos ao longo da história, o estatuto. Isso não quer dizer que é tudo igual, pois é preciso considerar cada realidade. Mas a rede tem uma trajetória como um todo e reconhece aquela escola que está ao seu lado. Quando você tem um projeto como esse em que algumas escolas terão uma gestão privada, você rompe com essa lógica e esgarça a rede”.

Meyri Venci Chieffi

Alexandre Schneider, ex-secretário municipal de educação de São Paulo e presidente do Instituto Singularidades, reforça que a ideia de uma gestão compartilhada, ainda que presente no texto, é equivocada:

Foto: acervo pessoal

O que a proposta prevê é uma gestão por uma instituição privada, sem fins lucrativos, de uma escola pública. É bem diferente, por exemplo, do modelo das escolas parceiras na Educação Infantil, que tem que seguir o projeto pedagógico da prefeitura. Certamente, ao abrir mão de gerir as escolas e permitir que não sigam o currículo da prefeitura, você está simplesmente transferindo as(os) estudantes da escola pública para a escola privada pagando um valor per capita por isso. Ou seja, não há compartilhamento, há uma entrega”.

Alexandre Schneider

Há outros argumentos que ainda atestam contra o PL, como explica Meyri:

“O texto parte da premissa que a gestão privada é melhor que a gestão pública, o que não se sustenta — a não ser que você veja a educação como um negócio e o aluno como um produto. O PL abre brecha para a privatização da escola pública, e vai na direção de desresponsabilizar o Estado de seu dever primeiro de assegurar o direito à Educação a toda criança, jovem e adulto que vive em nosso país.”

Saiba mais sobre os perigos do PL 573 aqui


Impactos no orçamento público

Segundo Alexandre, há três principais argumentos que refutam a aprovação desse PL:

Em primeiro lugar, é desnecessário, porque o atendimento no ensino fundamental  é universal — ao contrário do que acontece com as creches, em que a demanda é maior do que a prefeitura consegue atender e, por isso, tem a parceria de organizações não governamentais para tal. 

Em segundo, não há previsão no Fundeb para o financiamento de escolas privadas com fim público, o que significa que a prefeitura, para fazer esse tipo de parceria, perderia recursos do Fundo — o que, do ponto de vista da eficiência financeira, é um erro. 

Por fim, não há nenhuma evidência científica onde esses modelos de gestão foram adotados e funcionaram”.

Alexandre Schneider

Ele se refere, por exemplo, ao estudo Escolas Charter e Vouchers, feito pela D3e – Dados para um Debate Democrático na Educação, que analisou cerca de 150 artigos produzidos nos EUA e três estudos de caso sobre o Chile, a Colômbia e a Suécia (metanálise), para entender o que dizem as evidências sobre subsídios públicos para entidades privadas em educação. 

As escolas charters são instituições privadas financiadas pelo setor público, e os vouchers são como bolsas de estudos para que estudantes cursem escolas privadas financiadas pelo governo — como o Programa Universidade para Todos (ProUni). 

Os estudos mostram que esses modelos ajudaram apenas um grupo pequeno de alunos. E mais: em alguns casos estudados, inclusive, ampliou a segregação e a desigualdade. E sabemos que a prefeitura e todos aqueles que estão à frente da educação pública no Brasil deveriam lutar pela redução das desigualdades, e não proporcionar o seu aumento”, acrescenta Alexandre.


#PL573Não

No último dia 24 de agosto, a Comissão de Educação, Cultura e Esporte da Câmara Municipal de São Paulo aprovou o parecer contrário do PL. O projeto foi discutido em duas audiências públicas que ocorreram em agosto e contou com a manifestação de diversas(os) educadoras(es) e especialistas, principalmente contra a proposta. O PL segue em tramitação. “Por isso, precisamos que a secretaria municipal de educação, vereadores, docentes, organizações sociais, familiares, estudantes e toda a comunidade escolar estejam atentos, debatam e continuem se posicionando contra essa proposta”, diz Meyri.

A partir do debate levantado, ela reforça que são muitos os ganhos que temos com o estímulo à participação social e à gestão democrática na educação

Quando você tem processos participativos, há um ganho muito claro na qualidade da educação, que se reflete tanto no trabalho da gestão, no currículo, na prática em sala de aula ou nos programas pensados a longo prazo. Quando você está em uma discussão que abrange diferentes olhares e ouve diferentes necessidades, a sua perspectiva se amplia, há mais estímulo e energia para o engajamento e o processo gera corresponsabilidade. A participação é condição para a melhoria da qualidade”. 

Meyri Venci Chieffi

Ela reconhece que esses processos não são fáceis e exigem vontade política e muita escuta — e justamente por isso nem sempre são vistos com bons olhos. “Apesar de trabalhosa, ela é fundamental e necessária. Não é fácil tomar decisões coletivas, mas ela permite que possamos dar respostas às várias questões que a rede exige de nós, gestão”, diz. 

Alexandre reforça que é preciso dar mais autonomia às escolas e seguir ampliando os processos de participação ativos na rede municipal:

Já está maduro há um tempo um processo que procura dar mais autonomia para as escolas, para que elas tenham mais liberdade para desenhar o seu projeto pedagógico, gerir os recursos (humanos e materiais) que estão a sua disposição e, eventualmente, ter uma participação maior da comunidade no processo decisório — que é algo que deveria ser ampliado para que ela possa cumprir a sua missão de atender adequadamente o contexto em que ela está inserida, considerando a grande diversidade que há na cidade”.

Alexandre Schneider

Meyri resume quais deveriam ser as prioridades para garantir educação pública de qualidade:

O fortalecimento de uma rede pública e o atendimento de qualidade socialmente referenciada exige o investimento na consistência de sua estrutura e de todo seu quadro docente e gestor, o que se consegue pela promoção de concursos públicos, estruturação de carreira estimulante, formação permanente, condições de trabalho e salários dignos. É desta forma que exercemos o preceito constitucional que afirma a educação pública como um direito do cidadão e não como negócio. Por princípio, portanto, devemos todos lutar pela retirada do PL 573″.

Meyri Venci Chieffi

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