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O PNAE e a segurança alimentar das(os) estudantes
Mariana Santarellil (Consea) explica a importância da merenda escolar no combate à fome e quais medidas devem ser tomadas para fortalecer o Programa Nacional de Alimentação Escolar
- Tamara Castro
Por Stephanie Kim Abe
Em março, o governo federal anunciou o reajuste dos valores destinados ao Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) – correção que não ocorria há seis anos. Os reajustes variam de 28% a 39%, a depender da etapa e da modalidade de ensino.
Por exemplo, se antes o valor repassado por estudante matriculada(o) no ensino fundamental e no ensino médio, em período parcial, era de R$ 0,36, agora passou para R$ 0,50. Já para estudantes de escolas indígenas ou quilombolas, os valores passaram de R$ 0,64 para R$ 0,72. Ao todo, a verba federal para o PNAE será de cerca de R$ 5,5 bilhões, que são distribuídos a todos os estados e impactam cerca de 40 milhões de estudantes da rede pública do Brasil.
Esse é um passo importante em direção ao combate à insegurança alimentar e à fome, que aumentou nos últimos anos. De acordo com dados da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssam), temos 33 milhões de brasileiras(os) passando fome. O número corresponde a 15,5% dos domicílios brasileiros e é maior do que o constatado no final de 2020, quando 9% deles encontravam-se nessa situação.
Em pouco mais de um ano, 14 milhões de novas(os) brasileiras(os) não têm o que comer. E, como se não bastasse, mais da metade da população do país – 125,2 milhões de pessoas – vive com algum grau de insegurança alimentar.
Como explica Mariana Santarelli, integrante do núcleo executivo do Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN):
Pelas nossas pesquisas, constatamos que a maioria dos estudantes tem a alimentação escolar como a principal refeição do dia – e é óbvio que isso é a realidade sobretudo para as(os) alunos que estão em situação de maior vulnerabilidade alimentar.”
Mariana Santarelli
Mariana também é coordenadora do Observatório de Alimentação Escolar (ÓAÊ) e relatora nacional de Direitos Humanos da Plataforma DHESCA. Com a reinstalação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) em fevereiro, que havia sido extinto em 2019, ela também passou a fazer parte do órgão, representando a Fian Brasil, organização pelo Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas
Em entrevista para o Portal Cenpec, Mariana conta mais sobre a importância da merenda escolar, comenta o reajuste federal ao PNAE e como a população pode participar e cobrar mais para garantir alimentação escolar saudável para todas as crianças e adolescentes.
Confira abaixo.
Portal Cenpec: O que contribuiu para essa escalada da fome nos últimos anos no Brasil?
Mariana Santarelli: São múltiplos fatores. Um fator importante foi a pandemia, que desestruturou a nossa economia e aumentou ainda mais as taxas de desemprego na nossa sociedade. Muitas pessoas perderam os seus postos de trabalho.
Outro fator muito relevante é a inflação dos preços dos alimentos. Vários dos alimentos que compõem a cesta básica sofreram um aumento gritante: arroz, feijão, frutas, legumes, verduras. Isso fez com que a alimentação pesasse muito mais no bolso das brasileiras e dos brasileiros.
Infelizmente, a inflação não veio acompanhada de um aumento real do salário mínimo. Ou seja, temos salários cada vez menores com o preço dos alimentos cada vez maiores.
Além disso, houve o desmonte das políticas públicas, com a desestruturação de uma série de programas que levavam a alimentação saudável até as famílias, assim como a rede de equipamentos públicos de alimentação e nutrição, com muitos restaurantes populares e cozinhas comunitárias, desativada pelo país por falta de apoio.
O Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que comprava alimento dos agricultores familiares para distribuir para a rede socioassistencial e que está voltando com força agora, também teve orçamento cortado. O PNAE não sofreu tanto quanto as outras políticas, mas teve uma perda do poder de compra significativa.
Portal Cenpec: Quem são as pessoas em situação de insegurança alimentar e que passam fome?
Mariana: As pessoas mais afetadas por insegurança alimentar estão nos domicílios chefiados por mulheres, em especial pelas mulheres negras, assim como nas famílias com crianças menores de 6 anos.
Outros dados mostram que os domicílios que têm crianças e adolescentes que estão em escolas públicas – e portanto têm acesso ao PNAE – também abrigam pessoas que estão em situação de vulnerabilidade alimentar. Isso mostra a relevância que o PNAE tem para as famílias que estão mais vulneráveis à fome.
Portal Cenpec: Qual é o papel da alimentação oferecida nas escolas públicas para a garantia da segurança alimentar?
Mariana: No Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ), nós temos a perspectiva de escuta com relação aos sujeitos de direito do programa.
Por isso, nós realizamos a campanha Conta pra Gente, que ouviu mais de mil estudantes do Brasil para entender qual é a relevância da alimentação escolar para elas e eles. Recentemente, nós ouvimos estudantes e responsáveis da região metropolitana do Rio de Janeiro.
Pelas nossas pesquisas, constatamos que a maioria das(os) estudantes tem a alimentação escolar como a principal refeição do dia – e é óbvio que isso é a realidade sobretudo para estudantes que estão em situação de maior vulnerabilidade alimentar.
Sobretudo para as mães dessas(es) estudantes, essa refeição é muito importante, porque elas têm a possiblidade de ficar um pouco menos preocupadas em relação a ter e preparar um alimento, porque sabem que na escola a criança vai ter acesso a pelo menos uma refeição saudável.
A alimentação escolar da escola pública – quando fornecida pelo PNAE seguindo as diretrizes do programa de oferta de legumes, verduras e frutas, ou seja, de uma oferta de alimentação balanceada – também tem um papel importante na formação dos hábitos alimentares. Muitas crianças têm dificuldade de acesso a esses alimentos, pois às vezes esses produtos não compõem a própria alimentação que têm em casa. Assim, a escola passa a ser esse lugar onde elas terão contato com uma alimentação mais balanceada.
Uma coisa interessante que percebemos na comparação com as escolas privadas é que muitas vezes as(os) estudantes das escolas públicas se alimentam de forma mais adequada do que quem está em uma instituição privada, porque nessas instituições prevalece a cantina escolar, que normalmente oferece alimentos ultraprocessados, que não fazem bem à saúde.
Portal Cenpec: O que deve compor a merenda escolar para garantir segurança alimentar e nutricional?
Mariana: Uma alimentação de qualidade na escola deve ser definida sempre por uma nutricionista, que deve pensar um cardápio que tenha o máximo de alimentos in natura e o mínimo de alimentos processados ou ultraprocessados.
A Resolução 06/2020 define os mais recentes parâmetros de orientação do Programa, como a oferta mínima de frutas in natura, legumes e verduras por semana, e a restrição à oferta de determinados alimentos (bebidas adoçadas, biscoitos, bolachas).
Entre outras regulamentações, a normativa proíbe a oferta de gordura trans industrializada em todos os cardápios, além de alimentos processados e ultraprocessados, e com adição de açúcar, mel, adoçante, nos alimentos servidos a crianças com menos de 3 anos.
Uma boa merenda escolar também deve seguir dois princípios muito importantes do PNAE. Primeiro, deve respeitar as necessidades nutricionais e os hábitos e a cultura alimentar de cada uma das localidades, em especial quando falamos de escolas quilombolas e indígenas.
Segundo, deve seguir a perspectiva da compra local de alimentos, diretamente da agricultura familiar. Então o alimento mais saudável e sustentável é também o comprado nas proximidades, no mesmo munícipio ou mais próximo possível da escola, respeitando a lógica de proximidade, de circuitos curtos de produção, abastecimento e consumo. Isso garante tanto uma perspectiva de desenvolvimento local quanto uma melhor qualidade nutricional dos alimentos. Essa é uma grande inovação do PNAE.
Portal Cenpec: No mês passado, o governo federal anunciou o reajuste dos recursos para o PNAE em até 39%. Como você avalia esse reajuste? Ele é efetivo?
Mariana: Primeiro, é importante comemorar essa grande vitória. Essa foi uma campanha permanente do Observatório de Alimentação Escolar. Já há dois anos vínhamos batendo nessa tecla da necessidade de retomar o poder de compra do PNAE, com base em nota técnica que elaboramos em parceria com a Fineduca.
Nós reiteramos que o Programa não era ajustado de acordo com a inflação dos alimentos desde 2010 – ou seja, ele vinha perdendo o seu poder de compra desde então. O último reajuste tinha sido feito em 2017, mas ainda de forma insuficiente. De acordo com os nossos estudos, para retomar esse poder de compra que existia no PNAE em 2010, o orçamento do Programa precisaria ter subido para 7,9 bilhões de reais, frente aos 4 bilhões que ele teve ano passado.
O aumento que conseguimos de até 39% foi capaz de cobrir, de certa forma, parte dessas perdas, chegando ao orçamento de mais de 5 bilhões de reais. Mas a gente precisaria de muito mais.
Então seguimos nessa batalha pelo aumento progressivo desse valor. Nesse sentido, estamos lutando para assegurar, na própria lei do PNAE, um mecanismo de indexação anual para que esse reajuste possa ser feito de forma automática, sem que se precise anualmente disputar orçamento no Congresso Nacional para garantir o poder de compra do PNAE. É algo que precisa ser feito também.
Vale lembrar que o financiamento do programa é uma corresponsabilidade dos entes federados responsáveis pela educação. Então não adianta só o governo federal aumentar a destinação, mas os estados e municípios precisam também colocar recursos para a compra dos alimentos. O que vemos em boa parte do país são prefeituras, principalmente de municípios mais pobres, não destinando dinheiro para a compra dos alimentos. Isso leva, obviamente, a uma alimentação de má qualidade. É importante que estados e munícipios também entendam o PNAE como um investimento necessário para a superação da fome e da insegurança alimentar.
Portal Cenpec: Como o Consea pretende atuar sobre as políticas de alimentação escolar, como o PNAE?
Mariana: O Consea teve sempre um papel muito importante em relação ao PNAE. Para se ter uma ideia, vários artigos e inovações da própria lei do PNAE foram mecanismos e desenhos de política pública concebidos no âmbito do próprio Consea.
Para o Conselho, o PNAE é um programa estratégico de extrema relevância, uma política basilar do próprio Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Então esse monitoramento permanente será feito, sobretudo, nesse aspecto do financiamento, que é algo bem relevante.
Outra preocupação muito grande das(os) conselheiros que apareceu já na primeira plenária é relativa às compras da agricultura familiar. Nos últimos anos, vimos um apagão dos dados dos sistemas de informação por parte do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), o que dificulta o controle social.
Não temos dados para comprovar, mas a nossa percepção é de que as compras da agricultura familiar diminuíram porque muitas(os) conselheiras(os) do Consea atuam nos territórios. Mais do que isso, temos constatado uma concentração cada vez maior de cooperativas de agricultoras(es) familiares de grande porte. Isso nos preocupa muito porque toda a perspectiva desse mecanismo é justamente a democratização das compras públicas. Então, como garantir que as mulheres, jovens, quilombolas, indígenas – que são os grupos prioritários – sejam de fato fornecedoras(es) da alimentação escolar?
Outra preocupação é o cadastro da agricultura familiar, devido a um novo sistema feito pelo antigo governo que não está funcionando corretamente. Esse é um grande gargalo que precisa ser solucionado e para o qual o Consea também está olhando.
Portal Cenpec: Como a população pode atuar para garantir o monitoramento social das políticas de alimentação escolar?
Mariana: A população pode participar atuando por meio dos Conselhos de Alimentação Escolar, que sempre têm assento para um(a) representante de familiares de estudantes, como também para organizações da sociedade civil.
Também é possível participar por meio dos Conseas estaduais e municipais. Estamos ansiosas(os) para viver agora uma fase muito bacana e interessante na perspectiva da participação social, que é a organização da Conferência Nacional, prevista para dezembro. Ela será precedida de conferências estaduais e municipais. A ideia é adotar uma metodologia de conferências livres, abertas para quem quiser e quem puder participar. Queremos gerar uma ampla participação da sociedade na construção da agenda pública da segurança alimentar e nutricional.
Outra coisa bacana que está para acontecer é a criação e institucionalização das cozinhas solidárias. Durante a pandemia, surgiram várias iniciativas nesse sentido, que ainda hoje seguem distribuindo alimentos, cestas e refeições a quem está passando fome. A ideia é que esses coletivos e grupos informais, que muitas vezes chegam a lugares onde o Estado não consegue atender, recebam apoio do governo para fortalecer essas iniciativas.
Essas são algumas das formas que podemos enfrentar de forma ativa esse grave problema que é a fome.
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