Podcasts trazem 50 histórias da cultura afro-brasileira por contadores(as) negros(as)
Parte da iniciativa Deixa que eu Conto, material é voltado para crianças da Educação Infantil e primeiros anos do Ensino Fundamental; conheça a história de duas das contadoras negras participantes
Por Stephanie Kim Abe
As histórias são importantes. Muitas histórias são importantes. As histórias têm sido usadas para desapropriar e tornar maligno. Mas as histórias também podem ser usadas para dar poder e para humanizar. As histórias podem quebrar a dignidade de um povo. Mas as histórias também podem reparar essa dignidade quebrada.”
Quando era criança, Samara Rosa lembra que costumava sair da sala na aula de história, quando o assunto era escravidão. Ela ficava nervosa e sofria ao ver, no material didático, a imagem de pessoas negras amarradas no tronco. Mesmo gostando muito da matéria, sentia vergonha pelos olhares de “coitadinha” dos colegas nessas aulas.
Da sua infância, passada em Curitiba (PR), ela também lembra do seu avô, bem negro e de cabelos branquinhos, tomando chimarrão e contando muitas histórias. Ela passava o dia inteiro com ele, quando sua mãe saía para trabalhar. “Eu pensava: ‘um dia quero ser igual o meu avô, quero ser capaz de fazer o que ele faz – me deslumbrar com as histórias e esse imaginário que ele cria comigo’”, relata Samara.
As duas lembranças, ainda que opostas, trazem potência e significado ao trabalho de Samara Rosa, contadora de histórias e professora de educação infantil há 17 anos. Ela não acredita que a história da escravidão tenha que ser omitida, mas sim que há muitas outras riquezas e histórias relacionadas ao povo negro que precisam ser reforçadas e trazidas para a sala de aula.
Precisamos oportunizar às crianças negras e não-negras essa pluralidade de histórias. Contar histórias é importante não só para o desenvolvimento pedagógico das crianças, mas também das relações, porque a partir do momento que escutamos o outro, conseguimos nos colocar no lugar dele. Somos todos feitos de histórias, e ao as contarmos e ouvirmos, vamos pertencendo a vários outros lugares e fazendo outras conexões”
Samara Rosa, contadora de histórias e professora de educação infantil
A potência da oralidade
Em 2008, quando Mafuane Oliveira começou a trabalhar como educadora, a Lei 10.639/2003, que alterou a LDB (Lei 9394/1996) e tornou obrigatório o ensino da “História e Cultura Afro-brasileira e Africana” na Educação Básica, ainda estava no começo da sua implementação. Por isso, ela também tinha essa vontade de trabalhar, em salas de leitura e em projetos de incentivo à leitura, com histórias que não fossem vinculadas à escravidão.
Fazendo pesquisas, ela foi criando o seu repertório de narrativas e contos populares, não só afro-brasileiros e africanos, mas de outros lugares do mundo. Sua atuação ultrapassou os muros da escola e ela criou uma companhia de contação de histórias, chamada O Chaveiroeiro.
Eu fui percebendo que a narração é muito mais potente do que esse lugar utilitário em que muitas vezes a escola e a sociedade a coloca. A oralidade, a narração de histórias é um valor civilizatório de todas as nações, mas sobretudo daquelas que se organizam pela oralidade, como as comunidades afro-ameríndias.”
Mafuane Oliveira, contadora de histórias
Com sua companhia, ela já foi convidada a se apresentar em São Tomé e Príncipe e Moçambique; conhecendo não só as histórias que existem por lá, mas também contando as nossas histórias afro-brasileiras nesses países.
Todo dia é Dia da Consciência Negra
O CENPEC Educação reconhece a importância do Dia da Consciência Negra (20 de novembro), como marco para dar visibilidade à cultura africana e afro-brasileira. Por isso, lançamos, com esta reportagem, o Especial Consciência Negra, com novas matérias sobre a temática publicadas toda semana durante este mês de novembro.
Ao mesmo tempo, o CENPEC Educação acredita que o combate ao racismo e a valorização da cultura afro-brasileira dentro e fora do ambiente escolar deve acontecer o tempo todo, para além dessa data específica. No Portal CENPEC Educação, a temática está presente em produções feitas ao longo de todo o ano, que versam sobre arte e cultura, representatividade, inclusão, diversidade, racismo etc.
Samara Rosa e Mafuane Oliveira fazem parte do grupo de seis contadores e contadoras de histórias negros(as) que dão vida aos programas de áudio Afro da iniciativa Deixa que eu Conto, criada pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF).
“Cada um dos contadores está promovendo dez programas. O mais interessante desse coletivo é que os temas são abordados por diferentes perspectivas, já que temos contadoras e contadores negros do Sul, Sudeste, Nordeste e Norte do país”, explica Carolina Velho, consultora do UNICEF Brasil.
Mafuane Oliveira foca em temas relacionados à diáspora negra, trazendo histórias dos países africanos visitados e outros que compartilham a nossa língua portuguesa. Em seus programas, ela traz também músicas e curiosidades dessas culturas.
Samara Rosa também conta histórias de países africanos, como Gana e Angola, mas dá mais espaço a escritores e escritoras negros(as) brasileiros(as). Nos seus podcasts, ela convida diferentes profissionais negros e negras (cientistas, professores, etc.) para mostrar às crianças que o corpo negro ocupa diversos lugares.
Já os programas de Kemla Batista abordam questões relacionadas às religiões afro-brasileiras, fazendo referência também a aspectos da culinária afro-brasileira; enquanto os de Ivamar Santos e Suane Brazão estão recheados de histórias de quilombos afro-amazônicos, direto do Amapá, e a baiana Vovó Cici, uma das contadoras de história mais antigas do Brasil, traz seu repertório de histórias orais, ouvidas de seus ancestrais.
As histórias, as brincadeiras, as músicas, as curiosidades, a cultura ajudam na construção da identidade negra, e são muito importantes desde muito cedo. Por isso, o UNICEF quis estimular esse direito de voz, tendo contadores e contadoras negras falando dos mais diversos aspectos da sua cultura, para crianças, jovens e professores e professoras negros e não-negros. Enxergamos a possibilidade de uma cocriação, uma imaginação e uma participação ativa nessa construção, por meio desses podcasts.”
Carolina Velho, consultora do UNICEF Brasil
Momentos alegres em meio à pandemia
A iniciativa Deixa que eu Conto foi criada com o objetivo de contribuir com a aprendizagem das crianças de zero a oito anos de idade durante o período de pandemia de Covid-19. Por isso, todos os programas estão alinhados com os direitos de aprendizagem e campos de experiência da Base Nacional Comum Curricular (BNCC).
Os arquivos em áudio, que podem ser baixados gratuitamente, editados e transmitidos por rádios de todo o Brasil, buscam ajudar tanto os(as) educadores(as), como recurso pedagógico; como as famílias, propiciando um momento de interação entre adultos e crianças.
Além dos 50 programas voltados à cultura negra, o Deixa que eu Conto tem programas sobre histórias amazônicas e histórias gerais. Uma vez publicados todos os podcasts, a iniciativa terá 194 programas. Desde que a iniciativa foi lançada, no final de abril, os áudios do Deixa que Eu Conto já chegaram a mais de 3,3 milhões de crianças e seus familiares.
Mesmo neste momento que muitas redes de ensino já estão retomando as aulas presenciais, o material mantém-se útil, tanto dentro de casa quanto nas escolas, podendo ser incluído no planejamento de retorno.
Escutar o Deixa que eu conto em família, junto com as crianças, pode ser um momento feliz, alegre e de estreitamento do vínculo familiar em meio à tristeza da pandemia. Mesmo na reabertura das escolas, o material pode ser usado pelo professor no acolhimento. Há muitas curiosidades, trava-línguas, personagens e brincadeiras nesses podcasts, que podem aquecer o coração nesse primeiro momento.”
Carolina Velho, consultora do UNICEF Brasil
Hora da contação de história: dicas para educadores(as) e familiares por Mafuane Oliveira
“É importante cada família ou educador(a) criar rituais pra preparar o corpo para essa escuta. Em cada podcast, há um elemento ou som que dá esse sinal. No meu caso, é o som do chaveiroeiro. Claro que dá para ouvir fazendo outras coisas, mas acho bonito e mais potente quando criamos um ambiente gostoso para que a criança possa ouvir e se movimentar. Isso porque quase todos os episódios têm um momento de brincadeiras ou de músicas, então é legal propiciar essa interação também. Outra dica é que esse podcast, a meu ver, não é para dormir.
A escuta não é estática: a criança pode falar, fazer perguntas, pausar. Vale lembrar que, se ela não está acostumada a escutar podcasts, essa mudança não vai acontecer do dia pra noite. O processo educativo é processual, tem várias etapas, então é preciso, às vezes, paciência e muitas tentativas”.
Equidade de narrativas
Tanto Mafuane Oliveira quanto Samara Rosa acreditam que o mais importante dessa iniciativa é aumentar o repertório cultural – um primeiro passo para combater uma hierarquia de saberes e culturas que ainda persiste na sociedade e escolas brasileiras e efetivar uma educação antirracista. Além disso, a valorização da cultura afro-brasileira precisa estar presente desde pequeno.
A equidade social ou a representatividade começa com a construção da nossa subjetividade – e isso passa por oportunizar às crianças a valorização da cultura afro-brasileira e repertoriá-las para essa mudança social. Se eu opto apenas por histórias euroreferenciadas, que não têm ligação com as pessoas que representam mais de 50% do país, que tipo de adulto elas serão quando crescer? É preciso garantir uma equidade de narrativas.”
Mafuane Oliveira, contadora de histórias
Enquanto para as crianças negras as histórias servem como instrumentos de construção de identidade e representatividade, para as crianças não-negras elas são uma oportunidade de alteridade, de reconhecer que há espaços e narrativas que não são centradas na figura branca eurocêntrica e de impedir que cresçam com uma “branquitude tóxica”.
“Não é uma questão de negar as histórias dos irmãos Grimm, como da Chapeuzinho Vermelho, ou mesmo das princesas da Disney. Mas de entender que existe algo além, que há outras referências e representações – de princesas, de personagens, de florestas. A questão é: por que as histórias com protagonismo negro não estão no mesmo lugar?”, questiona Samara Rosa.
Hora da contação de história: dicas para educadores(as) e familiares por Samara Rosa
“Assim como fazemos com propostas literárias, os educadores que utilizarem os podcasts como recursos pedagógicos devem ter o cuidado de escutá-los antes da apresentação para as crianças. Há muitas informações neles, que podem ser utilizadas de diferentes formas e abrem possibilidades dos educadores também trazerem suas vivências e realidades para a atividade.
Não é algo engessado, então o professor pode decidir por utilizar apenas uma parte do podcast, ou complementar um episódio com outro, fazendo conexões entre as histórias, as culturas, os países.
Para as famílias, recomendo que tenham paciência e entendam que a escuta sem a presença visual requer a criação do imaginário – capacidade essa de que as crianças estão sendo podadas hoje em dia, com o tanto de tempo que passam em frente às telas. Mesmo que eu faça a narrativa do som da água ou descreva o formato da árvore baobá, é a criança quem vai criar esse imaginário. No final, cada família irá experimentar o podcast de uma forma.”
2 pensamentos sobre “Podcasts trazem 50 histórias da cultura afro-brasileira por contadores(as) negros(as)”
Genteeeeeeee, sou muito fã de Samara e Mafuane e encontrá-las por aqui é um grande e iluminado presente. Parabéns por essa iniciativa prenhe de delicadezas.
Viva, Carlos Roberto! Um de nossos propósitos é contemplar a riqueza da diversidade cultural brasileira em nossos conteúdos. Entendemos que esse é um dos caminhos fundamentais na construção de uma sociedade de fato inclusiva e democrática! Ficamos muito felizes com seu comentário. Abraços!
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Genteeeeeeee, sou muito fã de Samara e Mafuane e encontrá-las por aqui é um grande e iluminado presente. Parabéns por essa iniciativa prenhe de delicadezas.
Viva, Carlos Roberto! Um de nossos propósitos é contemplar a riqueza da diversidade cultural brasileira em nossos conteúdos. Entendemos que esse é um dos caminhos fundamentais na construção de uma sociedade de fato inclusiva e democrática! Ficamos muito felizes com seu comentário. Abraços!