Pertencimento e identidade, ações afirmativas e políticas públicas são alguns dos aspectos que perpassam ou que se apoiam em dados de cor/raça para garantir mais justiça e equidade
Por Stephanie Kim Abe
Está em curso, desde 1o de agosto, a coleta domiciliar do Censo Demográfico 2022. Realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) desde 1940, o recenseamento começou na época do Império, em 1872. Este ano, mais de 180 mil recenseadoras(es) devem visitar, até final de outubro, 75 milhões de residências em todos os 5.570 municípios do país.
O Censo é importantíssimo, pois tem como objetivo trazer as características socioeconômicas da população brasileira e conhecer como ela vive. Raça/cor, idade, religião, escolaridade, renda, acesso à saneamento básico e coleta de lixo e tipo de moradia são algumas das informações coletadas.
É com base nesses dados que governantes podem pensar, elaborar e revisar políticas públicas, de forma a garantir que estejam atingindo de fato as camadas da população que precisam melhorar suas condições de vida.
Por exemplo, em 2010, ano do último Censo brasileiro, ainda tínhamos 81 milhões de pessoas com 10 anos ou mais sem o ensino fundamental completo — sendo esse número maior entre as pessoas autodeclaradas negras (cerca de 39 milhões de pardas e 7 milhões de pretas). Uma vez que tivermos os dados do Censo 2022, poderemos comparar e ver se as políticas educacionais dos últimos anos deram conta de diminuir esse número e essa desigualdade no grau de escolaridade entre pessoas brancas, pretas, pardas, amarelas e indígenas. Afinal, a meta é que todas e todos possam avançar na educação, não apenas um grupo, certo?
No Censo e em outras pesquisas do IBGE (como a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD), a raça/cor é autodeclarada — ou seja, as pessoas são perguntadas sobre como se definem dentre cinco opções (branca, preta, amarela, parda ou indígena). Não é a pessoa recenseadora que analisa e preenche o questionário.
Nesse quesito, muitas pessoas são reticentes ou até mesmo contra essa informação constar no Censo e em outros levantamentos nacionais, seja porque acreditam que são dados irrelevantes (algumas afirmam que geram mais segregação ou “racismo” entre a população), ou simplesmente porque não sabem muito bem onde se encaixam nessa classificação.
O desconhecimento sobre o tema é um dos motivos pelos quais esse debate e a autodeclaração são tão importantes.
De fato, um dos grandes desafios da autodeclaração é a questão do pertencimento racial.
Nem sempre as pessoas, no seu cotidiano, são orgulhosas ou mesmo cientes do seu pertencimento racial e do que isso significa para a sua vida, tanto social, profissional, emocional — independentemente de isso ser positivo ou negativo”.
Ana Lúcia Silva Souza, socióloga, pós-doutora em Linguística Aplicada e docente do Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
“Mas é fato que ninguém quer ser esse diferente marcadamente inferiorizado”, acrescenta adocente.
Infelizmente, é nesse lugar que sempre esteve a figura das pessoas pretas no Brasil, desde a época do Brasil colônia, quando chegaram ao país as primeiras africanas e africanos escravizadas(os). Mesmo com a Abolição da Escravatura (1888), essa imagem de inferioridade não mudou — tanto que as pessoas mestiças, que passaram a crescer em número com a vinda de imigrantes europeus no começo do século 20, também eram associadas a esse estereótipo.
Zé Mariano, pesquisador, professor e mestrando em Estudos Comparados de Literatura de Língua Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP), conta que a figura do mestiço sempre esteve ligada a projetos nacionais de mudança da imagem do Estado Nação sobre a formação da sua sociedade:
No final do século 19, o mestiço tinha uma posição de degeneração, que era vinculada à figura da negritude. Ele, tal como o preto, era também negado como cidadão. Mais pra frente, nos anos 1930, o mestiço vira o símbolo de uma dita democracia racial. Ele não é visto mais como um elemento negativo, mas como uma imagem a ser nacionalizada, a ser trazida como símbolo de uma tal união entre raças, conforme o projeto político nacional de embranquecimento da população brasileira. E sabemos que grande parte da sociedade brasileira é mestiça desde muito tempo — ou seja, sempre esteve nesse lugar fronteiriço”.
Para Dennis de Oliveira, professor de Comunicação na Universidade de São Paulo (USP), pesquisador na área de cultura popular e movimentos sociais e ativista do movimento negro, ainda que o conceito do sociólogo Gilberto Freyre da “democracia racial” já tenha sido desmentido há tempos, o seu pensamento ainda reflete hoje em dia e está presente entre nós:
Segundo ele, como no Brasil não tivemos um grau de segregação como ocorreu nos Estados Unidos e na África do Sul, há uma tolerância e um trânsito entre sujeitos brancos e negros. Logo, o racismo é mitigado e, portanto, falar de racismo no Brasil seria bobagem, não seria importante. Daí também uma dificuldade em expressar pertencimentos raciais”.
Dennis de Oliveira
É conquista das lutas do movimento negro a mudança nessa visão inferiorizada das pessoas negras. “Até na linguagem o negro é associado ao negativo, como ‘mercado negro’, ‘a situação está preta’ e ‘câmbio negro’”, lembra Dennis.
“Muita gente falava que era pardo porque tinha vergonha de falar que era negro. O movimento negro tem afirmado a positividade da figura negra, desconstruído essa carga negativa, o que tem ajudado na afirmação do pertencimento racial e na autoidentificação das pessoas como negras”, completa.
O racismo existe e os dados — como o Censo — mostram como
Não é porque o nosso país não teve um conjunto de leis segregacionistas, como no apartheid sul-africano, que não há racismo.
É preciso lembrar que raça não é um conceito biológico, é uma categoria social. Sendo uma construção social, o que tem que se verificar é de forma essas diferenças fenotípicas ou de origem impactam as desigualdades sociais. Indivíduos de pele mais clara ou mais escura têm desigualdade de oportunidades sociais? Os dados mostram que sim”, explica.
Dennis de Oliveira, professor de Comunicação na Universidade de São Paulo (USP)
Frente a essas desigualdades, o estabelecimento de ações afirmativas também foi outra conquista do movimento negro que têm buscado atacar esses sintomas e trazer justiça social.
No campo da educação, a Lei 10.639/03, que estabelece a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira na educação básica, e a Lei de Cotas (Lei 12.711/12), que completou dez anos este mês, são alguns exemplos bem sucedidos dessa luta.
Em seu livro O Movimento Negro educador, Nilma Lino Gomes explica como as políticas defendidas pelo movimento negro deram uma virada de um discurso mais universal para um olhar mais específico que atende-se as necessidades da população negra:
“É possível dizer que até a década de 1980, a luta do Movimento Negro, no que se refere ao acesso à educação, possuía um discurso mais universalista. Porém, à medida que este movimento foi constatando que as políticas públicas de educação, de caráter universal, ao serem implementadas, não atendiam à grande massa da população negra, o seu discurso e suas reivindicações começaram a mudar. Foi nesse momento que as ações afirmativas, que já não eram uma discussão estranha no interior da militância, emergiram como uma possibilidade e passaram a ser uma demanda real e radical, principalmente a sua modalidade de cotas”.(p. 34)
Uma década da Lei de cotas: avanços e desafios
“A conquista de políticas como as ações afirmativas de ingresso na educação superior trouxe à luz o debate sobre a existência de desigualdades duradouras nos diversos âmbitos da sociedade brasileira e as formas de enfrentá-las, principalmente com a crescente representação de pessoas negras nos espaços de poder dentro da academia”, afirma Claudia Monteiro Fernandes (UFBA) em artigo exclusivo para o Portal Cenpec, em que reflete sobre a política afirmativa e sua continuidade no ano que em que completa 10 anos.
“A autodeclaração é importante para evidenciar justamente as desigualdades sociais e tirá-las dessa zona oculta. Com esse tipo de mapeamento, você consegue, primeiramente, evidenciar o racismo e, também, elaborar políticas públicas de combate ao racismo”, diz Dennis.
Daí a importância de estimular que as pessoas se autodeclarem. A Coalizão Negra por Direitos, por exemplo, iniciou este mês a campanha “Responda para ter respeito”, justamente como maneira para entender e combater esse cenário desigual, como escrevem em sua carta manifesto:
“(…) reconhece-se hoje o caráter estratégico de se obter indicadores sociais e econômicos desagregados por cor/raça da população e, em especial, da população negra. Essa tem sido uma das formas mais exemplares de demonstrar as desigualdades existentes entre brancos e negros no país, seja qual for o gênero, idade, naturalidade, escolaridade, posição no mercado de trabalho, entre outras características”.
“Não é o pertencimento para hierarquizar, mas é um pertencimento para usufruir de direitos que são de toda a sociedade”, reforça Ana Lúcia.
A escola pode fazer a sua parte
Se é uma construção social, a questão da raça precisa ser discutida por todos e todas. “Se o negro não tem uma construção positiva, o que é ser branco no Brasil? É preciso contrastar esses dois grupos raciais e entender como essa relação funciona na sociedade. Não dá para discutir a questão racial sem abordar branquitude”, diz Ana Lúcia.
Colocar essa discussão para e com toda a sociedade é buscar entender as dificuldades e as discriminações pelas quais algumas pessoas passam e outras não, e, inevitavelmente, reconhecer e refletir sobre os seus próprios preconceitos e privilégios.
Quando você luta contra qualquer tipo de preconceito (de raça, de gênero, de orientação sexual), aqueles sujeitos que gozam de privilégios em função de pertencimentos — principalmente o homem hétero, cisgênero, branco — são tirados da sua zona de conforto. Por isso, são muitas vezes essas pessoas que têm dificuldade de assumir a sua condição racial ou argumentam que ‘é essa divisão que causa mais preconceito’. São falas de quem não quer romper com os seus privilégios cristalizados.”
Dennis de Oliveira, professor de Comunicação na Universidade de São Paulo (USP)
Não é um processo de convencimento, mas educativo mesmo, tanto de entender o que é ser negro e o que é ser branco na sociedade brasileira, mas que valorize a cultura negra e fale sobre a importância da autodeclaração e da identidade”.
Ana Lúcia Silva Souza
Nas instituições de ensino, ela aponta as formações continuadas como chave, assim como o resgate e a apropriação das produções cada vez mais ricas de pesquisadores e pesquisadoras negros e negras, que têm trazido novos olhares para a história do país. “Essa mudança não acontece de um dia para o outro. Não é mágica. Por isso, é preciso um trabalho de médio a longo prazo”, reforça Ana Lúcia.
Para Zé Mariano, essa reflexão sobre as identidades brasileiras precisa considerar as especificidades do mestiço com mais cuidado, que abrange grande parte da população e que muitas vezes não é levada em consideração ou classificada apenas junto com a população preta. “Caso contrário, deixamos de lado a constituição subjetiva de cada um de nós que constituímos o povo barsileiro”.
O pesquisador acredita que é preciso abordar a questão racial dentro da escola a partir de três frentes essenciais:
Primeiro, ela precisa ter um projeto político pedagógico que esteja muito propício a discutir abertamente o racismo como um produto histórico. Segundo, incorporar o debate da autodeclaração ao intenso processo de fragmentação racial pelo qual passamos, fruto de diferentes projetos políticos, de tal forma que realmente ajude o estudante a pensar sua própria autodeclaração. E, por fim, problematizar a ideia da democracia racial, que ainda está dentro do imaginário social da população brasileira”.
Zé Mariano, pesquisador, professor e mestrando em Estudos Comparados de Literatura de Língua Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP)
Outros aliados desse processo são a internet, que tem possibilitado o acesso a diferentes conteúdos por diversos públicos de maneira rápida, e as(os) próprias(os) estudantes. “Se a escola se permitir conversar com a juventude, ela vai aprender muito. Eles têm muito a nos ensinar”, diz Ana Lúcia.
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