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Por uma cultura inclusiva na comunidade escolar
Autora e pedagoga Lucila Toledo Bernardes fala sobre currículo acessível, desafios da docência ao trabalhar com as diferenças, diversificação de práticas pedagógicas e muito mais
- Débora souza de britto
Por Stephanie Kim Abe
Para Lucila Toledo Bernardes, o processo inclusivo nunca está 100% completo. “A incompletude desse projeto está posta. O que precisamos ter é uma intenção. Intenção de poder abranger e atingir o maior número de crianças e adolescentes possível dentro de uma sala de aula”, defende a pedagoga e psicanalista.
Especialista em terapia de casal e família e em educação inclusiva e gestão das diferenças, Lucila tem uma longa trajetória na educação e que lhe dá conhecimento de causa ao discutir como podemos pensar a formação de educadoras(es), as relações construídas entre discentes e docentes, os espaços criados na escola e a necessidade de repensar práticas pedagógicas para criar uma cultura de inclusão na comunidade escolar.
Este mês, ela lançou o livro Por uma cultura inclusiva na comunidade escolar (Benjamin Editorial), no qual discorre sobre esses aspectos citados acima e busca não só divulgar o seu trabalho como assessora em educação inclusiva, mas colocar na roda este assunto e subsidiar as(os) profissionais de educação sobre ele.
“As pessoas precisam perceber que, quando falamos de educação inclusiva, não há resposta pronta. Mas ainda assim o bom educador precisa estar sempre se perguntando sobre sua prática em sala de aula e buscando incluir a todos e todas”, diz.
Conversamos com Lucila para entender mais sobre a obra, como engajar educadoras(es) na busca por diferentes metodologias e dinâmicas, que medidas podem ser tomadas pela gestão escolar para apoiar as(os) docentes nessa jornada e mais.
Leia abaixo a entrevista completa:
Lucila Bernardes: A minha intenção foi de divulgar e informar sobre a educação inclusiva e mostrar situações práticas e bons exemplos de como ela pode ser realizada nas escolas e fazer a diferença na formação não só dos estudantes, mas da comunidade escolar em geral.
Por isso, é um livro que engloba um pouco de tudo sobre o tema. No primeiro capítulo, eu contextualizo o percurso da educação inclusiva, passando por leis que garantiram esse direito e pela diferenciação, ao longo da história, da educação especial. Depois, eu trato dos laços entre professor e estudante, sob o viés da psicanálise, que é a minha área de pesquisa, e também abordo a questão do currículo inclusivo.
Ao longo do texto, coloquei muitos exemplos, porque acho que os professores precisam ver que a educação inclusiva não é uma coisa de outro mundo. São situações de sala de aula muito singelas que vão fazendo toda a diferença.
Por fim, falo um pouco da necessidade de rede e de promover formação não só para e com os professores, mas com diretores, coordenadores e demais profissionais da escola. É preciso abarcar todo mundo, não deixar ninguém de fora — inclusive as famílias. Daí o título do livro, que remete à cultura inclusiva na comunidade escolar.
Além disso, apesar de ser um tema muito atual, não há muitas obras atualizadas sobre educação inclusiva. Conseguimos achar bons textos na internet, mas antigos. Claro que a educação é dinâmica, mas é importante você ter alguns momentos documentados, até para ter ideia dos processos, e acho que o meu livro, abordando os conteúdos que listei acima, faz um pouco esse papel.
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Lucila Bernardes: Uma coisa muito comum que vejo acontecer nas escolas e que é bastante complicada é separar o trabalho por departamento, ou seja, jogar a responsabilidade apenas para o setor, núcleo ou equipe (cada escola chama de um jeito) de práticas inclusivas.
É um equívoco a(o) professora(or) achar que ela(e) não sabe lidar com as(os) estudantes com deficiência e que, portanto, quem deve cuidar deles seriam essas(es) profissionais mediadoras(es) ou do Atendimento Educacional Especializado (AEE). Obviamente que essa ajuda é absolutamente imprescindível e enriquece muito o trabalho (tanto dos educadores quanto para o desenvolvimento dos estudantes), mas eles não substituem o saber da(o) professora(or).
Essa equipe especializada pode saber muito do autismo, por exemplo, mas quem entende da docência é a(o) professora(or). Por isso, eu defendo o tempo todo no livro que precisamos dar às(aos) educadoras(es) a confiança para trabalhar com as(os) estudantes com deficiência. Instrumentalizá-los, empoderá-las(os) de alguma forma para que eles peguem para si estas(es) alunas(os).
Há um entrave maior nas séries finais da educação básica, a partir do sexto ano, porque a equipe docente costuma ser mais ampla, diversificada e fragmentada — o que impacta no tempo de qualidade que ele tem para conhecer os estudantes. No ensino fundamental I, as(os) professoras(es) são polivalentes e passam bastante tempo com a(o) aluna(o). Assim, quanto mais velho a(o) aluna(o), mais volume de conteúdos é oferecido no currículo e mais difícil fica para a(o) professora(or) estar junto, conhecer e engajar com a(o) estudante com deficiência. É preciso levar essa questão em consideração, principalmente quando pensamos em formação continuada, de forma a garantir que essas(es) professoras(es) também tenham um comprometimento com essas(es) alunas(os).
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Lucila Bernardes: Sabemos que uma sala nunca é homogênea. Há sempre diversidade de ensino e aprendizagem, que é um desafio comum a todas(os) as(os) educadoras(es). Mas toda(o) professora(or) costuma se preparar e fazer um planejamento para alcançar aquela coletividade da sala.
Bem ou mal, as(os) alunas(os) respondem. Supondo que estamos falando de uma classe de 5o ano, por exemplo, todas(os) escrevem e leem, e têm a possibilidade de estar dentro desse contrato, desse discurso escolar. Mas no caso das crianças que são do espectro do autismo, a comunicação via escrita talvez não funcione. Ou mesmo a fala ainda não é bem desenvolvida, ou a criança não senta quando a(o) professora(or) pede. Então ela(e) tem que lidar com uma criança que não vai responder às demandas da sua aula como está habituada(o) — e isso causa um deslocamento e uma impotência nessa(e) profissional.
Como fazer para atingir esse aluno? A(O) professora(or), então, tem que entrar em contato com a(o) estudante e pesquisar formas novas para suas práticas pedagógicas. Ela(e) acaba tendo que ser muito criativa(o). E, às vezes, aquilo que ela(e) pensa para aquela(e) aluna(o) acaba servindo para toda a turma, porque é uma linguagem diferente e menos padrão, vamos dizer assim, do que aquilo que ele está habituado a fazer.
Não é uma situação simples, pelo contrário. Há uma grande complexidade, principalmente se considerarmos que você nunca tem uma(um) aluna(o) em situação de inclusão igual à(ao) outra(o) e, portanto, não há uma receita pronta. Isso exige um trabalho meio artesanal — e a escola não funciona dessa forma, daí essa enorme dificuldade.
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Lucila Bernardes: O processo de inclusão de crianças com deficiência nas escolas regulares traz uma mobilização da(o) professora(or) a se repensar: repensar a metodologia e a linguagem que usa, e a relação que constrói com as(os) alunas(os), por mais desconhecido que seja o jeito que eles funcionam.
Eu faço parte de um grupo com o professor Rinaldo Voltolini, psicanalista da Universidade de São Paulo (USP) que escreve muito sobre psicanálise e educação. Ele usa um termo que eu gosto bastante, que é “engenhosidade docente“. A(O) professora(or) tem que ser engenhosa(o) na hora de pensar a sala de aula. Em que sentido? Ela(e) tem que observar a sua fala e ver o que os suas(seus) alunas(os) estão precisando, independentemente de ter apenas uma(um) ou mais com deficiência.
Ou seja, não estou falando de fazer um “puxadinho” para as(os) alunas(os) em situação de inclusão. Já ouvi queixas como: “esse aluno tem toda uma equipe para ajudá-lo, mas o que eu faço com esses outros medianos que não conseguem avançar?”. Justamente por isso que a(o) professora(or) precisa se inovar para poder pensar como tornar a aula acessível para todo mundo, independentemente se os estudantes têm ou não deficiência.
A(O) professora(or) inclusiva(o), portanto, é aquela(e) que consegue pensar bem em fazer uma sala para todos. Isso não é algo novo; é, inclusive, uma coisa bem paulo freiriana.
Lucila Bernardes: Para lidar com esse desafio de planejar uma aula acessível para todos, eu cito no livro a proposta do Desenho Universal de Aprendizagem (DUA). Nessa perspectiva, o currículo não seria adaptado, mas já apresentado de forma a atender a todos.
Vamos supor que eu tenho uma(um) aluna(o) com dificuldade em português ou matemática. Quando eu for pensar a minha aula, eu já devo pensar em metodologias e práticas diferenciadas, que possam atender às diferentes formas de aprender de cada uma(um).
Por isso acredito que as metodologias ativas e cooperativas são potentes para trabalhar a inclusão, porque você deixa de centralizar tudo na(o) professora(or). Ela(e) não consegue sentar ao lado de cada aluna(o) o tempo todo para desafiá-la(o) com uma aula expositiva. Então quando você cria grupos com tarefas diferentes para cada um da turma, faz uma rotação por estações de trabalho, trabalha com projetos, você cria mais possibilidades de interação entre as(os) alunas(os) e com cada aluna(o) individualmente, de aprendizado e d’elas(es) se sentirem pertencentes ao grupo. Assim, ela(e) pode se aproximar da(o) aluna(o) e criar vínculos. É o que eu chamo de criar um currículo acessível.
Como tudo hoje, acredito que esse currículo requer muitas mídias e tecnologias. As crianças com autismo, por exemplo, são muito mais imagéticas, então vale trabalhar com filmes, fotos etc. Esses recursos também acabam beneficiando o resto da turma.
Não existe uma sala de aula inclusiva se ela não for variada, em termos de métodos, de técnicas, de suportes, de estratégias pedagógicas, e, principalmente, se ela deixar alguém para trás.
Lucila Bernardes: Uma dica é aproveitar as parcerias entre pares. Isso não é nenhum segredo e a gente sabe que, como adultos, trabalhar em grupo não é simples. Por isso, para trabalharmos com essa dinâmica, precisamos programar bem o papel de cada um, como será esse esforço conjunto, o trabalho reflexivo, as propostas e os objetivos de cada atividade da formação.
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Lucila Bernardes: Primeiro, a escola precisa dar voz às(aos) professoras(es). Ela tem que garantir fóruns em que essas(es) profissionais possam falar dos incômodos, das aflições, das ideias que deram certo, e ter uma troca muito ampla para socializar estratégias e experiências. Elas(es) precisam ter uma interlocutora(or), seja ela(e) uma(um) coordenadora(or) ou uma(um) parceira(o) de sala, para poder pensar junto, e assim dar subsídios para um trabalho em sala de aula mais bem pautado e planejado.
Cada escola tem uma estrutura, claro, mas se todas possibilitarem esse espaço de troca e acolhimento, será possível criar equipes dinâmicas e fazer esse processo virar rotina.
É comum ainda hoje algumas(uns) profissionais confundirem a dimensão médica com a social, por exemplo, achando que é preciso receitar remédios para as crianças do espectro autista. Mas precisamos separar bem isso: à(ao) professora(or) cabe pensar sobre o diagnóstico educacional. Por isso, é preciso trabalhar com essa questão também e garantir a autonomia de pensamento da(o) professora(or).
Para que isso aconteça, num primeiro momento, é preciso um trabalho com as(os) coordenadoras(es), diretoras(es) e orientadoras(es), para se traçar um plano de ação ao longo do ano. Elas(es) precisam ter conhecimentos sobre os direitos e a causa das pessoas com deficiência, o histórico da luta e as demandas, para poder atender as dúvidas e formar as(os) educadoras(es) nessa perspectiva da educação inclusiva. Essas(es) profissionais, aliás, também devem ser assessoradas(os) de alguma forma para poder acolher as(os) docentes — isso é algo importante.
Também é preciso organizar e garantir o Atendimento Educacional Especializado (AEE) integrado, não separado no contraturno, apenas na sala de recursos, sem contato ou diálogo com a(o) professora(or) da sala de aula. Só conseguimos fazer um trabalho minimamente inclusivo se tivermos essa(e) profissional de AEE junto com a(o) professora(or) regente da sala. O que torna a experiência mais rica é fazer um planejamento conjunto e em parceria. Ao longo do tempo, com a formação continuada, acredito que as(os) professoras(es) mesmas(os) vão aprendendo a lidar com as(os) estudantes público alvo da educação especial.
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Lucila Bernardes: A formação continuada é absolutamente necessária. Palestras, textos, grupos de estudo são necessários dentro das escolas, e a rede precisa proporcionar isso, considerando toda a sobrecarga de demandas que recai sobre as(os) professoras(es) hoje.
Eu fico muito impressionada que as(os) professoras(es) e as famílias que ainda não sabem o que é capacitismo. Muitos pais ainda precisam lidar com escolas que se recusam a matricular seus filhos, porque não sabem que isso é contra a lei. Muitas(os) profissionais da educação ainda acham que as crianças com deficiência deveriam estar em escola especial, ignorando o fato de que quando não temos diversidade, as crianças não se desenvolvem tanto, como diversos estudos já comprovaram. Ou seja, falta muita informação — e por isso falar sobre o assunto, colocá-lo na roda com toda a sociedade discutindo e entendendo sobre a educação inclusiva é fundamental.
Já em termos de formação inicial, os cursos de pedagogia têm que rever também as suas prioridades. Já temos matéria de educação inclusiva no curso da USP, mas é preciso intensificar esse processo.
Lucila Bernardes: Isso é muito importante. Eu trato dessa questão por meio das pessoas com deficiência, mas também estamos falando de inclusão racial, de gênero, étnica etc.
Tanto que no quarto capítulo, eu falo sobre o preconceito e sobre o porquê o ser humano tem tanta dificuldade de lidar com o diferente. Do ponto de vista psicanalítico, nós temos receio, vemos na(o) outra(o) o que não queremos ver em nós mesmos. Trato de uma forma muito singela, sem aprofundar muito, mas é um tema sobre o qual precisamos nos debruçar porque estamos vivendo em um momento em que o preconceito está posto.
É muito interessante ver que, em salas de aula com diversidade, você não tem esse grau de preconceito. Se você tem uma criança cadeirante, um menino com síndrome de down, outro com autismo, um(a) adolescente negra, outra trans e a(o) professora(or) sabe trabalhar positivamente toda essa diversidade, a turma cresce junto, com mais respeito e com um olhar mais humano.
A humanização é necessária não só no sentido de ser legal com o próximo, no sentido moralista, mas quando falamos de direitos mesmo. É uma questão de direitos humanos respeitar e garantir direitos para todas as minorias. Diversidade em sala de aula é o caminho.
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