Primeira audiência pública sobre o Programa Future-se
Gestores de universidades, professores e estudantes temem que proposta leve à privatização das unidades
Por Suzana Camargo
Uma audiência pública realizada na quinta-feira, 15, pela Comissão de Educação da Câmara dos
Deputados, em Brasília, colocou em discussão uma das propostas do governo
federal que tem gerado polêmica entre gestores, professores e alunos de
universidades públicas brasileiras, o Future-se.
O programa visa implantar nas universidades e institutos federais um modelo de desenvolvimento baseado em empreendedorismo, pesquisa e internacionalização. Prevê que as instituições que optarem pela proposta – que é facultativa – possam levantar recursos próprios por meio de parcerias público-privadas, cessão de prédios, criação de fundos com doações e venda de nomes de campi e edifícios.
O Future-se foi apresentado
em julho pelo Ministério da Educação (MEC) após a adoção de outra medida
polêmica, o contingenciamento de verbas das
universidades, anunciado no final de abril pelo governo e que poderá representar
corte de 15% a 54% de recursos.
O MEC está disponibilizando consulta
pública sobre o programa, e que, segundo informações do ministério, já recebeu
cadastro de 50 mil pessoas. Um projeto de lei sobre o tema deverá ser enviado
ao Congresso Nacional em breve, mas
ainda sem data específica.
Audiência pública
A mesa da audiência pública sobre
o Programa foi conduzida pelas deputadas Alice Portugal (PCdoB/BA) e Margarida
Salomão (PT/MG) que se revezaram em duas rodadas de debates – veja no final da
reportagem a relação completa dos nomes.
Participaram também o secretário
de Educação Superior do MEC, Arnaldo Barbosa de Lima Júnior, que defendeu a
proposta durante sua exposição; gestores de universidades, professores, representantes
de entidades com trabalho voltado à educação e estudantes, que se posicionaram contra o
programa.
Em suas falas eles manifestaram
o entendimento de que a implantação do programa poderá ser o primeiro passo
para a privatização das universidades públicas.
Mais receitas para as universidades
Arnaldo Barbosa de Lima Júnior garantiu que “não se trata de privatização”. Ele disse que as instituições continuarão sendo gratuitas e lembrou que o modelo é facultativo.
O representante do MEC
enfatizou que o Future-se dará mais segurança jurídica para que as
universidades possam captar recursos junto a organizações de apoio, o que
também proporcionará a elas, mais autonomia.
Por meio de gráficos e dados
ele explicou que o objetivo do
MEC é tornar mais eficientes práticas já existentes nas universidades.
“As instituições já possuem receitas próprias, porém,
não têm retorno direto desses recursos para atividades acadêmicas por causa da
limitação legal existente. O dinheiro arrecadado vai para a Conta Única do
Tesouro. Nossa proposta é desburocratizar o recebimento dessa verba”, disse.
O secretário comentou que um
dos aspectos do projeto é apostar no potencial dos estudantes. Acrescentou que
a ideia é formar nas universidades, “não apenas bons empregados, mas bons
empreendedores”.
Como exemplo Lima Júnior citou
que ao “invés de um aluno que se formou no Brasil ir posteriormente trabalhar
no Vale do Silício, vamos fazer com que tenhamos vales do silício tropicais
para absorver essa mão de obra qualificada”, argumentou fazendo referência ao famoso
centro de tecnologia situado na Califórnia (EUA).
Future-se questionado
Apesar dos esforços do secretário
de Educação Superior do MEC, a maior parte das falas na audiência foi de
questionamentos ao Future-se.
Nilton Brandão (foto), presidente da Federação de Sindicatos de Professores e Professoras de Instituições Federais de Ensino Superior e de Ensino Básico, Técnico e Tecnológico (Proifes), disse que a proposta tem teor “econômico” e sobre a apresentação feita por Arnaldo Barbosa de Lima Júnior, reclamou que no conteúdo “praticamente” não há referência à educação.
“É um
‘Fature-se’, no qual a universidade pública gratuita e socialmente referenciada
e a pesquisa de base, não cabem, e a ciência não tem vez”, afirmou.
João Carlos Salles Pires da Silva (foto), presidente da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) e reitor da Universidade Federal da Bahia (Ufba), comentou que o Future-se chega em um momento delicado para as universidades públicas. Ele disse considerar importante discutir o programa, porém, sem deixar de garantir o funcionamento das unidades e o andamento de projetos que já foram iniciados.
“Já
foram liberados 58% do orçamento, temos 12% contingenciados e 30% bloqueados”,
lembrou. O reitor ressaltou que o programa modifica o
funcionamento do sistema de ensino superior e ataca a autonomia universitária.
“É preciso antes de tudo valorizar as universidades no âmbito do nosso país”,
disse.
Iago Montalvão (foto), presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), destacou que os estudantes não foram consultados sobre o programa e não participaram de sua elaboração.
“Que adianta abrir uma
consulta pública se na construção do projeto não houve diálogo com a comunidade
acadêmica, nem mesmo com os reitores e gestores. Não se sabe quais foram os
especialistas consultados”, questionou.
Montalvão ainda atacou: “O
Future-se é na verdade a admissão de culpa daqueles que aprovaram a PEC do Teto
de Gastos, que congelou recursos para a educação”.
Portal CENPEC Educação ouve especialistas
Na linha das críticas feitas
ao Future-se na audiência pública, dois importantes educadores do cenário
acadêmico, em São Paulo, ouvidos pelo Portal do CENPEC Educação, fizeram
diagnósticos negativos sobre o programa.
Fernando Cássio (foto), professor e coordenador do Fórum Permanente de Políticas Educacionais da Universidade Federal do ABC (UFABC), afirma que a iniciativa sequer deveria ser chamada de programa
“É uma colcha de retalhos
com propostas mal costuradas e tecnicamente muito inferiores se for levado em
conta o funcionamento das instituições de ensino superior e os mecanismos já
existentes de captação de recursos próprios”, opina.
O educador afirma que o
conteúdo da proposta referente à inovação e internacionalização já está
contemplado na política de inovação atual.
O problema da proposta é que ela parte de premissas falsas e faz promessas que não conseguirá cumprir. Além disso, revela um desconhecimento dos modelos de gestão adotados em universidades estrangeiras, inclusive, no que se refere a organização financeira dessas instituições”, garante.
Fernando Cássio
E complementa que o
Future-se ataca o artigo 207 da Constituição Federal, que trata da autonomia
das universidades.
Romualdo Portella (foto), doutor e pesquisador em Educação diz, sobre o programa, que se trata de um “plano sem diagnóstico dos problemas da educação superior” já que não há análise que diga onde estão esses problemas, apenas um discurso genérico de que há problemas de gestão”.
Para Portella a ideia de
transferir a gestão das universidades para organizações sociais, contida na proposta,
cria um problema de duplo comando nas unidades, pois nelas as estruturas de
poder continuarão a funcionar. “Não está claro quais serão as competências de
uma e de outra, então certamente haverá choque”, prevê.
Outro ponto não esclarecido
no projeto, segundo avalia o educador, é o fato das próprias faculdades
contratarem pessoal.
Não fica claro se essas contratações serão para atividades meio ou atividades fim. Para essas últimas seria preciso estabelecer um outro plano de carreira para professores, o que é complicado já que um dos pilares da universidade é garantir a eles estrutura e jornada de trabalho para que possam se dedicar à pesquisa”, analisa.
Romualdo Portella
Quanto a possíveis impactos do programa na Educação Básica, Romualdo avalia que será preciso aguardar a implantação do programa e verificar se o governo fará algum tipo de adequação que causa reflexo nessa instância educacional. “Não dá para perceber, no cerne do programa, se haverá implicações na Educação Básica como, por exemplo, nas regras de acesso às universidades, mas nada ainda foi publicado nesse sentido”, comentou.
Participantes da audiência pública
Wagner Vilas Boas, Diretor
de Desenvolvimento da Rede de Instituições Federais de Ensino Superior/MEC;
João Carlos Salles Pires da
Silva, presidente da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições
Federais de Ensino Superior (Andifes);
Jerônimo Rodrigues da Silva,
presidente do Conselho Nacional das Instituições da Rede Federal de Educação
Profissional, Científica e Tecnológica (Conif);
Qelli Viviane Dias Rocha,
primeira vice-Presidente do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de
Ensino Superior (Andes);
Deise Ramos da Rocha, coordenadora
regional da Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação
(Anfope);
Antônio Alves Neto, coordenador
da Federação de Sindicatos de Trabalhadores Técnico-administrativos em
Instituições Públicas de Ensino Superior do Brasil (Fasubra).
Raio-X do Future-se
Promover
a sustentabilidade financeira, ao estabelecer limite de gasto com pessoal nas
universidades e institutos. Hoje, em média, 85% do orçamento das instituições
são destinados para isso. Para a administração pública, a Lei de
Responsabilidade Fiscal (LRF) estabelece percentual máximo de 60%;
Estabelecer
requisitos de transparência, auditoria externa e compliance;
Criar
ranking das instituições com prêmio para as mais eficientes nos gastos;
Gestão
imobiliária: estimular o uso de imóveis da União e arrecadar por meio de
contratos de cessão de uso, concessão, fundo de investimento e parcerias
público-privadas (PPPs);
Propiciar
os meios para que os departamentos de universidades/institutos arrecadem recursos
próprios, com estímulo à competição entre as unidades;
Autorizar
naming rights (ter o nome de empresas/patrocinadores
e patronos) nos campi e em edifícios, o que possibilitaria a modernização e
manutenção dos equipamentos com ajuda do setor privado.
Pesquisa
e inovação
Instalar
centros de pesquisa e inovação, bem como parques tecnológicos;
Assegurar
ambiente de negócios favorável à criação e consolidação de startups, ou seja,
de empresas com base tecnológica;
Aproximar
as instituições das empresas, para facilitar o acesso a recursos privados de
quem tiver ideias para pesquisa e desenvolvimento;
Premiar
os principais projetos inovadores, com destaque para universidades de pequeno
porte.
Internacionalização
Estimular
intercâmbio de estudantes e professores, com foco na pesquisa aplicada;
Revalidação
de títulos e diplomas estrangeiros por instituições públicas e privadas com
alto desempenho, de acordo com os critérios do MEC;
Facilitar
o acesso e a promoção de disciplinas em plataformas online;
Firmar
parcerias com instituições privadas para promover publicações de periódicos
fora do País;
Possibilitar
bolsas para estudantes atletas brasileiros em instituições estrangeiros.
Fundo
de investimento – O programa será financiado por um
fundo de direito privado, que permitirá o aumento da autonomia financeira das
instituições federais de ensino. A administração do fundo é de responsabilidade
de uma instituição financeira e funcionará sob regime de cotas.
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