Racismo NÃO é piada

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Racismo NÃO é piada

Entenda como o humor pode ser ofensivo ou aliado na luta contra o racismo estrutural e que medidas tomar para que piadas que ofendem não tenham espaço na escola

Por Stephanie Kim Abe

Nas últimas semanas, dois casos de distintas áreas chamaram atenção da mídia e do debate popular sobre o racismo. 

Na cultura, o Tribunal de Justiça de São Paulo pediu a retirada do ar de um especial de stand-up comedy do humorista Léo Lins por conter comentários preconceituosos e odiosos contra minorias e grupos vulneráveis, como piadas relacionadas à escravidão. A decisão gerou manifestações da ala artística que debateram se a decisão beirava a censura ou até que ponto chega a liberdade de expressão.

Cartazes contra o racismo e de apoio a Vini Jr. Foto: Cleber Mendes/O Dia (reprodução)

No esporte, a denúncia do jogador de futebol brasileiro Vini Jr. quanto às ofensas racistas que tem recebido durante as partidas do time Real Madrid, onde joga, e a vista grossa que a organização do campeonato espanhol La Liga vem apresentando a esses episódios, sem a identificação e punição das pessoas  envolvidas, causou revolta e manifestações em apoio ao craque de diversas personalidades e de movimentos sociais. 

Os casos mostram que o racismo está ainda muito presente, no Brasil e no mundo afora, e que atinge a todas e todos, em diversas esferas do cotidiano. E, infelizmente, por mais que avanços tenham ocorrido nos últimos anos, atitudes assim acontecem também na escola. 

O perigo das brincadeiras e piadas

A professora Fernanda Eleutério tem se debruçado sobre a questão do racismo desde que uma turma do 3o ano do ensino médio da escola estadual em Cotia (SP), onde trabalha, fez comentários relacionados à raça de um professor que foi dar uma aula substitutiva.

“Tudo começou com a famosa brincadeira. As(Os) estudantes  começaram a ‘brincar’ com ele com falas como ‘lugar de preto é no tronco’ e outras, que são bem pesadas. O próprio docente comentou conosco quando voltou para a sala dos professores sobre o episódio, e disse que, embora soubesse que eles estavam ‘brincando’, era uma brincadeira, para dizer o mínimo, desnecessária“, conta ela. 

Segundo a professora, ao conversar com a turma, ela questionou sobre os comentários que tinham feito e se não enxergavam a problemática nesse tipo de brincadeira.

Foto: acervo pessoal

Apesar de pedirem desculpas e reconhecerem que as falas foram pesadas, as(os) estudantes relataram não ver mal em ‘brincar’ dessa maneira entre amigos ou pessoas que sabem do contexto da ‘brincadeira’. No caso de outra pessoa que não está participando da ‘brincadeira’ se sentir ofendida, disseram que seria problema dela – mesmo quando essas piadas têm cunho racista, machista ou homofóbico”, relembra. 

Conversando com outras(os) professoras(es), a professora chegou à conclusão de que o problema não está apenas nessa turma do 3o ano, mas sim na escola toda:

Essa sala teve esse problema específico, mas outras turmas ou rodas de amigas(os) também fazem essas brincadeiras de se chamar de ‘macaco’, ‘preto safado’, ‘tinha que ser preto mesmo’, ‘fez isso porque é preto’ etc. As pessoas usam esses termos pejorativos ‘de brincadeira – como dizem’. É um comportamento que está se alastrando pela escola”. 

Fernanda Eleutério, professora


Não é só uma brincadeira 

A discussão sobre os limites de uma piada não é nova. No documentário O riso dos outros, de Pedro Arantes, exibido em 2012 pela TV Câmara, humoristas e comediantes falam sobre como uma piada pode ofender e o que seria permitido ou não na piada. 

Em seu depoimento, o escritor Antônio Prata diz:

“Quando você faz uma piada politicamente incorreta, quando você faz uma piada racista, você não faz nada de transgressor. Você tá assinando embaixo da realidade. Você tá falando assim: ‘o mundo é desigual e eu estou rindo disso.”

Documentário O riso dos outros, de Pedro Arantes, discute com diferentes comediantes os limites do humor e o humor politicamente incorreto

Marina Caminha, doutora em Comunicação Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF), concorda:

Foto: acervo pessoal

As culturas populares sempre usaram o brincar, a festa como um referencial de existência. É uma forma de ver o mundo, que nunca foi apolítico, ou seja, essas culturas sempre tiveram um projeto. Se olharmos para a história medieval, constataremos que até bobos da corte morriam pelas piadas e graças que faziam, apesar de terem a função de divertir o rei”.

A professora, que estuda o humor e a mídia, conta que a ideia da brincadeira como algo inocente se construiu na modernidade. “O riso passou a ser entendido como algo inocente, infantil. Essa forma de entendimento do riso acaba sendo legitimada pelo Estado, quando no Código Penal brasileiro, por exemplo, nós temos o ‘animus jocandi’, que significa que a pessoa fez uma ofensa a partir do riso, mas sem dolo”, explica Marina. 

Uma vez validada pelo Estado essa possibilidade da brincadeira que não é considerada uma ofensa, necessariamente, abre-se diferentes possibilidades de uso do riso e do humor:

O humor é um lugar de ataque, seja de um costume, uma pessoa, uma forma de ser etc. O riso vira um espaço muito poderoso, onde se pode construir posições tanto perversas e encarceradoras quanto de resistência e libertação. O que atravessa isso? A moral, a ética que rege cada riso“, diz Marina. 

Marina Caminha, doutora em Comunicação Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF)

Para Washington Góes, mestre em educação, especialista em Cultura, Educação e Relações Étnico-Raciais e técnico de programas e projetos do Cenpec, o humor também revela relações de poder e se baseia em uma ideia de ridicularização que acaba por favorecer o racismo.

Foto: acervo pessoal

O humor ridiculariza e se dá por meio de uma correlação de forças. O humor ofensivo, racista, discriminatório muitas vezes se baseia em estereótipos físicos, como falar sobre o cabelo ou o nariz da pessoa negra. O racismo vai, assim, ganhando materialidade“, reflete.


Ouvir o outro e não ferir

Considerando que a piada pode ser sim ofensiva, é preciso tomar cuidado com o que falamos, para quem falamos, quando falamos. 

Se é possível dizer tudo o que quer, então você está liberando o outro para ser perverso também. Não se pode dizer tudo, portanto. Não se pode fazer piada racista, não se pode fazer piada LGBTfóbica, gordofóbica. A medida é simples: aquilo que fere o outro não é engraçado“, diz Marina. 

Por isso, é preciso escutar a criança, o adolescente, a outra pessoa. Mas, mesmo assim, não é porque a pessoa não se manifesta ou conta da sua dor que a piada não foi ofensiva ou não a atingiu. 

“Às vezes, a(o) jovem negra(o) não fala nada sobre uma piada porque quer ser aceita(o) no grupo. Ou se incomoda, mas não diz nada porque já sofreu tanto racismo que prefere escolher quais situações enfrentar. É uma pedra no sapato silenciosa. Finge que não dói porque precisa viver e sociabilizar”, conta Marina. 

Não é que a(o) estudante negra(o) não fica ofendida(o). Ela(e) aceita porque precisa ser aceita(o), porque está cansada(o) de ser xingada(o) desde criança. Só que isso vai causando sofrimento mental que ninguém vê, e também faz essa pessoa ser agressiva. Se alguém me chama de ‘preto’, eu chamo o outro de ‘gordo’, o outro de ‘viado’… e vira essa relação de ofensas que estamos acostumados”, relata. 

Washington Góes, mestre em educação e relações raciais e técnico de programas e projetos do Cenpec

Assista ao documentário Coletivo Resistir e Existir (CRE): uma experiência de educação para a diversidade


Currículo que vá além da escravidão

O que mais surpreendeu a professora Fernanda neste episódio foi que, ao lecionar a matéria de História no ano passado para essa mesma turma do 3o ano, ela tratou do tema da escravidão. Assim, ela achava que tinha coberto bem a temática e trabalhado esse olhar para o racismo a partir dessas aulas.

Fiquei chocada com o episódio porque tínhamos feito um trabalho bem legal sobre o racismo. Tratamos da questão da escravidão, como está no currículo. Falamos da chegada do negro aqui no Brasil, assistimos o filme estadunidense Amistad, e fizemos uma roda de conversa sobre como as pessoas negras foram trazidas à força e não tiveram os seus direitos respeitados desde então até os dias atuais”, conta. 

Fernanda Eleutério, professora

Washington Góes alerta que essa abordagem, porém, muitas vezes não é suficiente para dar conta de promover um ambiente escolar verdadeiramente antirracista. 

Tratar pontualmente as questões étnico-raciais, inclusive, não dá conta de cumprir de forma adequada o que propõe a lei 10.639 – que, promulgada há 20 anos, estabeleceu a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira e africana no currículo da educação básica.

Isso significa que essa temática não deve ser abordada apenas na disciplina de História ou Arte, mas sim aparecer em todos os componentes curriculares, de forma articulada e transdisciplinar. 

Mais do que isso, Góes explica que é preciso ir além da perspectiva da escravidão:

Um grande problema tem sido entender que a história dos povos negros ou africanos começa com a escravidão. A abordagem da história afro-brasileira deve ocorrer dentro do contexto da história mundial, entendendo que os povos africanos produziram culturas, ciências, conhecimentos. Ou seja, a África existe muito antes de 1500. Trabalhar apenas a história do nosso povo a partir da escravidão – ainda que esse olhar seja necessário e deva ser estudado – é reforçar um estereótipo de que somos apenas descendentes de escravizadas(os)“. 

Washington Góes, mestre em educação e relações raciais e técnico de programas e projetos do Cenpec

Outra maneira de estabelecer um currículo que valorize as diversidades e trabalhe uma perspectiva antirracista é garantir a diversidade de materiais utilizados e reforçar sempre a representatividade:

Precisamos criar condições para que crianças e adolescentes aprendam o que é ser uma pessoa negra em condições positivas. Apresentar personalidades pretos e pretas, como escritoras(es), juristas, engenheiras(os), cientistas; falar sobre a produção de conhecimento dos povos africanos; colocá-los como protagonistas, não apenas como personagens passivos da história; e preencher o espaço escolar com mensagens e imagens que combatam o estereótipo e reforcem a identidade negra“, diz Góes. 

O que é preciso considerar nos currículos para o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana


Ações de combate ao racismo no PPP

A professora Fernanda tem pesquisado materiais e maneiras de trabalhar com o tema do racismo com as(os) estudantes na disciplina Projeto de Vida, que ministra atualmente. 

Além da iniciativa dela, as danças originárias da África já foram trabalhadas com algumas turmas no itinerário formativo de Cultura que a escola oferece. “Apesar dessa introdução, eu quero fazer um trabalho mais extenso porque essas brincadeiras mostram como o racismo estrutural está intricado na nossa sociedade de tal forma que as pessoas nem percebem”, diz Fernanda. 

Para Góes, a iniciativa louvável da professora terá mais efetividade se aliada a ações mais contundentes e estruturais por parte da escola e da rede como um todo. 

“Essa preocupação da professora é muito interessante e precisa ser valorizada, mas o ideal é que episódios como esse sejam levados para instâncias maiores, como Conselho Escolar, gestão, coordenação pedagógica e, principalmente, com as famílias. Essa mudança não depende só dela“, diz.

Marina recomenda que as(os) professoras(es) entrem em contato com outras referências de humor, como o Terreiro do Riso (assista ao lado), que atua no campo da alegria, do riso e das comicidades negras e afro-indígenas.

Góes também reforça a necessidade de que ações de combate ao racismo estejam presentes no Projeto político-pedagógico (PPP) das instituições escolares, contemplando três vieses: da valorização, da repressão e de afirmação: 

Vídeo-aula Comicidades negras: Alegria é fundamento ético

Ações valorativas são aquelas que mostram a cultura negra de forma positiva o tempo todo. Ações repressivas são normativas de punição cabíveis em caso de injúria e violência racial, como um aluno chamar outro de macaco. É preciso estabelecer critérios para as consequências e penalizações a essas situações, além da conversa com a família e com as(os) estudantes. Já as ações afirmativas são aquelas que envolvem identificar o número de pessoas negras trabalhando na escola, em que posições estão alocadas, se há oportunidades iguais para todas e todos”.

Ao considerar maneiras de tornar a escola um lugar livre de discriminações e preconceitos como essas, não se pode esquecer do que especialistas chamam de “currículo oculto”: as relações que se estabelecem entre as pessoas na instituição e os valores que são compartilhados entre elas nesse espaço comum escolar.

Nesse sentido, Washington Góes reafirma que:

Quando falamos sobre racismo estrutural, muita gente se isenta da culpa, pensa que, como é algo que está na estrutura, fica longe de nós. Ou seja, não é problema meu. Mas o racismo é uma ideologia que se materializa no cotidiano, nas relações sociais, na sociabilidade. Ele não é uma questão do outro. É preciso se perguntar, portanto: qual a parcela de responsabilidade que eu tenho nisso? E agir sobre ela“.

Washington Góes, mestre em educação e relações raciais e técnico de programas e projetos do Cenpec

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