Retrospectiva sobre 2019 demonstra que o Brasil registrou pelo menos 60 ataques à democracia e liberdade em um ano – e, em 2020, há novos exemplos.
Restrições a livros em SP e RO
Em Rondônia, no último dia 6/2, veio a público um memorando da Secretaria de Educação (Seduc-RO) que mandava recolher mais de 40 livros das escolas públicas estaduais, por supostamente apresentarem “conteúdos inadequados para crianças e adolescentes”, segundo o portal G1.
O memorando, assinado pelo secretário de Educação, Suamy Vivecananda Lacerda de Abreu, foi endereçado às coordenadorias regionais de Educação do estado. Ao G1, o secretário reconheceu a existência do documento, mas informou tratar-se de rascunho feito por técnicos e que não chegou a ser expedido.
Mesmo assim, houve reações. O Sindicato dos Professores de Rondônia, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/RO), a União Nacional dos Estudantes (UNE) e a Academia Brasileira de Letras estiveram entre as entidades que manifestaram repúdio. Entre as obras que poderiam ser recolhidas, estão clássicos da literatura nacional, como Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis; Macunaíma, de Mário de Andrade; e Os sertões, de Euclides da Cunha.
A Academia Brasileira de Letras vem manifestar publicamente seu repúdio à censura que atinge, uma vez mais, a literatura e as artes. Trata-se de gesto deplorável, que desrespeita a Constituição de 1988, ignora a autonomia da obra de arte e a liberdade de expressão. A ABL não admite o ódio à cultura, o preconceito, o autoritarismo e a autossuficiência que embasam a censura.
É um despautério imaginar, em pleno século XXI, a retomada de um índice de livros proibidos. Esse descenso cultural traduz não apenas um anacronismo primário, mas um sintoma de não pequena gravidade, diante da qual não faltará a ação consciente da cidadania e das autoridades constituídas.”
Academia Brasileira de Letras, 07/02/2020
Outro acontecimento atingiu o estado de São Paulo. Segundo o jornal Folha de S. Paulo do último dia 11, o governo de João Doria (PSDB) vetou uma lista de livros do programa Remição em Rede, voltado a estimular a leitura em penitenciárias do estado. Novamente, entre as obras, havia autores consagrados, como Gabriel García Márquez, Albert Camus e Harper Lee.
Inicialmente, o governo negou que tenha havido censura, mas, novamente de acordo com a Folha, criou uma comissão no dia 13 para avaliação dos livros disponibilizados pelo programa.
Literatura e direito à educação
Diante das duas notícias, a Rede Leitura e Escrita de Qualidade para Todos (LEQT), da qual o CENPEC Educação faz parte, publicou uma nota pública a favor do direito à leitura e contra tentativas de censura.
“Sem acesso a texto literários os mais
variados possíveis, não há educação de qualidade, que garanta aos sujeitos
habilidades para o exercício de sua cidadania, sua inserção no mundo do
trabalho e o pleno desenvolvimento de suas potencialidades, de maneira crítica,
criativa e humanizada”, diz o documento.
A Rede LEQT lembra que as obras
que constam da listagem de Rondônia “não apenas são adequadas para adolescentes
e jovens a partir dos anos finais do ensino fundamental, como figuram, em
grande parte, entre o cânone literário nacional e internacional e são indicadas
como leituras obrigatórias para exames vestibulares de instituições públicas e
privadas de ensino superior”. A nota pública também repudia a lista de São
Paulo.
Tão grave quanto o ato foi a resposta da Seduc-RO, que inicialmente tentou negar o fato comprovado e, a posteriori, censurou documentos oficiais, afrontando o princípio da publicidade dos atos da administração pública e a Lei de Acesso à Informação (Lei Federal 12.527/2011).
A Rede LEQT recomenda que a Seduc-RO não impeça a livre circulação de obras literárias em ambiente escolar, convoca as autoridades competentes a apurarem devidamente o caso.
Nesse sentido, repudiamos também, e com igual veemência, a censura feita pelo governador de São Paulo, João Dória, a uma lista de livros do ‘Remição em Rede’, projeto de leitura realizado em penitenciárias do estado de São Paulo. Embora o governo negue a censura, fato é que os livros em questão não chegaram aos presídios.”
Rede LEQT
Leia abaixo a nota na íntegra.
Não existe educação de qualidade sem garantia do
direito à literatura
“A literatura é o sonho acordado das civilizações”
Antonio Candido
A Rede LEQT – Leitura e
Escrita de Qualidade para Todos – que reúne um amplo espectro de organizações
da sociedade civil que atuam no campo da promoção da leitura, da educação e da
cultura, incluindo investidores sociais, organizações sociais, produtores
editoriais, bibliotecários, autores e representantes do setor público, da
academia – vem a público manifestar seu repúdio à tentativa de limitação da
livre circulação da produção literária nacional e internacional feita pela
Secretaria de Estado da Educação de Rondônia (SEDUC-RO) e reivindicar que o
caso seja devidamente apurado pelas autoridades competentes.
Na semana passada houve, por
parte da SEDUC-RO, a tentativa de censurar 43 obras que deveriam ser recolhidas
das escolas públicas do estado, por supostamente abordarem “conteúdo
inadequado”. Como se pode verificar na listagem, porém, as obras não apenas são
adequadas para adolescentes e jovens a partir dos anos finais do Ensino
Fundamental, como figuram, em grande parte, entre o cânone literário nacional e
internacional e são indicadas como leituras obrigatórias para exames
vestibulares de instituições públicas e privadas de ensino superior.
A tentativa de censurar a livre
circulação de tais obras é uma afronta direta ao Estado democrático de direito
e ao princípio constitucional de livre expressão da atividade intelectual,
artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou
licença. Viola ainda o direito à educação e à cultura de crianças, adolescentes
e jovens, contrariando o Estatuto da Criança e do Adolescente e os princípios
constitucionais da liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o
pensamento, a arte e o saber que regem a educação nacional.
Num estado em que 42% das
escolas públicas estaduais (239 unidades educacionais) não possuem biblioteca
ou sala de leitura, de acordo com o último Censo Escolar (Inep/MEC, 2018),
causa estranhamento que qualquer ação da Seduc-RO não seja no sentido de
ampliar a disponibilização de acervos e a circulação de obras literárias,
garantido o que o pensador e crítico literário Antonio Candido defendia como um
direito humano:
“…a literatura tem sido um
instrumento poderoso de instrução e educação, entrando nos currículos, sendo
proposta a cada um como equipamento intelectual e afetivo. Os valores que a
sociedade preconiza, ou os que considera prejudiciais, estão presentes nas diversas
manifestações da ficção, da poesia e da ação dramática. A literatura confirma e
nega, propõe e denuncia, apoia e combate, fornecendo a possibilidade de
vivermos dialeticamente os problemas” (CANDIDO, 1988, p. 175).
Em outras palavras, sem acesso
a texto literários os mais variados possíveis, não há educação de qualidade,
que garanta aos sujeitos habilidades para o exercício de sua cidadania, sua
inserção no mundo do trabalho e o pleno desenvolvimento de suas
potencialidades, de maneira crítica, criativa e humanizada.
Tão grave quanto o ato foi a
resposta da SEDUC-RO, que inicialmente tentou negar o fato comprovado e, a
posteriori, censurou documentos oficiais, afrontando o princípio da publicidade
dos atos da administração pública e a Lei de Acesso à Informação (Lei Federal
12.527/2011).
A Rede LEQT recomenda que a
Seduc-RO não impeça a livre circulação de obras literárias em ambiente escolar,
convoca as autoridades competentes a apurarem devidamente o caso.
Nesse sentido, repudiamos
também, e com igual veemência, a censura feita pelo governador de São Paulo,
João Dória, a uma lista de livros do “Remição em Rede”, projeto de leitura
realizado em penitenciárias do Estado de São Paulo. Embora o governo negue a
censura, fato é que os livros em questão não chegaram aos presídios.
A Rede LEQT acompanha atenta a
tomada das providências necessárias para que o mencionado projeto de remição de
pena possa cumprir seu importante papel, proporcionando a pessoas em restrição
de liberdade acesso a um direito fundamental: o direito humano à literatura. A
LEQT reitera seu repúdio, não só a toda e qualquer tentativa de ativamente
impedir, restringir ou censurar a livre circulação de livros, como também às
tentativas de fazê-lo por omissão ou inação de agentes do Estado, em flagrante
desrespeito às diretrizes da Política Nacional de Leitura e Escrita e do Plano
Nacional do Livro e Leitura.
CANDIDO, Antonio. O direito à
literatura. In: Vários escritos Antonio Candido. Rio de Janeiro: Ouro
sobre Azul; São Paulo: Duas Cidades, 2004.
Rede LEQT – Leitura e Escrita de Qualidade para Todos
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