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Resgatando a educação pelas ondas do rádio
Como três experiências pelo Brasil têm utilizado o rádio para manter o vínculo com estudantes e transmitir conteúdo durante a pandemia
- José Alves
Por Stephanie Kim Abe
Na cidade de Santo Estêvão, no interior da Bahia, quem sintoniza na Rádio Paraguassu FM, 87,9, a qualquer dia da semana às 11h, ouve uma contação de histórias como essa abaixo.
É preciso ser pontual para não perdê-la, já que o seu público-alvo – quase 1,7 mil alunos da Educação Infantil e cerca de 3,4 mil do Ensino Fundamental do município – costuma se distrair rápido, então a contação de histórias dura cerca de cinco minutos.
A ação, que começou em junho, é tocada pela Secretaria Municipal de Educação de Santo Estêvão, como uma forma adicional de tentar chegar aos alunos nesse período de escolas fechadas por causa da pandemia de Covid-19. O rádio foi visto como uma solução voltada para aqueles alunos que não tem acesso à Internet.
O projeto: Contação de histórias para alunos da Educação Infantil e Ensino Fundamental I
Horário: Segunda à sexta, às 11h
Duração: Cerca de cinco minutos
Onde sintonizar: Rádio Paraguassu FM 87,9
Como surgiu: O projeto começou em junho, apenas uma vez por semana, às 11h30, e envolvendo apenas os professores da Educação Infantil. O objetivo era atingir as crianças que não têm acesso à Internet dessa etapa. Com o retorno positivo dos educadores participantes e dos familiares, a partir de julho o projeto foi ampliado para o Ensino Fundamental I e com transmissão todos os dias da semana.
Como funciona: Toda a comunidade escolar (funcionários, diretor, coordenador pedagógico, professores) que quiser se aventurar a contar uma história pode participar, já que o projeto é voluntário. No geral, são histórias de literatura infantil ou infanto-juvenil, do folclore local, do repertório do próprio professor e outras temáticas. Com orientações de um roteiro de gravação elaborado pela Secretaria, os voluntários gravam em suas casas os áudios, enviam para a equipe da Secretaria, que faz a edição e manda para a emissora de rádio. De segunda à quinta são transmitidas histórias inéditas; às sextas, uma história é reprisada.
Socializamos os áudios nos grupos de WhatsApp, escutamos as produções dos colegas e vamos aprendendo. Tem sido um trabalho e uma troca bem interessante, além de uma descoberta de um talento que estava ali adormecido, de professores que cantam, têm uma voz legal etc
Carla Virginia da Silva Marinho Dias, coordenadora da Educação Infantil na Secretaria Municipal de Educação de Santo Estêvão (BA)
A receptividade das transmissões, que vem em formato de feedbacks positivos, tem incentivado a gestão e os professores a continuar o projeto.
“Eu acho muito legal [a história que foi contada na rádio], é um papel muito importante, porque instrui as crianças, incentiva a cada dia, então acho muito bom. A minha filha mesmo gosta muito das historinhas. Depois eu pergunto para ela o que ela entendeu e ela fala tudo certinho. Então acho muito bom”, relatou Edileide Oliveira Leal Conceição, mãe da aluna de cinco anos Raquel Oliveira Conceição, à professora Eunice Rocha, sobre a iniciativa.
Enquanto em Santo Estêvão (BA) a programação de rádio engloba só a contação de histórias, em Pindamonhangaba, interior de São Paulo, o programa A Escola nas Ondas da Rádio é mais abrangente e engloba todas as disciplinas escolares. O programa, idealizado pela Secretaria Municipal de Educação, dura mais tempo e permite que cada professor escolha que tipo de conteúdo quer transmitir.
O projeto: Programa A Escola nas Ondas da Rádio
Horário: De segunda a sexta-feira, às 8h e às 14h
Duração: uma hora
Onde sintonizar: Rádio Vale FM 104.9
Como surgiu: Em uma consulta com os professores da rede sobre o ensino remoto, duas educadoras sugeriram que o rádio fosse utilizado entre as estratégias de educação do período. A sugestão foi acatada pela Secretaria Municipal de Educação, que então fez parceria com uma rádio comunitária para a transmissão das aulas, a partir da última semana de julho.
Como funciona: O programa tem duração de uma hora, mas é dividido pelas escolas, que possuem horários fixos, de cerca de cinco a dez minutos, e escolhem quais professores voluntários vão falar em cada dia. Os educadores também são livres para escolher de que forma querem passar o conteúdo – seja por meio de recados, brincadeiras, atividades, contação de histórias, orientações para os pais sobre como organizar a rotina. Todas as disciplinas estão envolvidas, tanto da Educação Infantil como do Ensino Fundamental – e abrangem inclusive as Artes e Educação Física. O programa das 14h é uma reprise do transmitido às 8h.
“No caso da Educação Física, alguns professores ensinam uma atividade física ou uma brincadeira que incentive a movimentação da criança, que ela pode fazer sozinha ou com a participação dos pais. Com relação às Artes, já tivemos educador que falou sobre a biografia de um artista, outro sobre técnicas que a criança pode utilizar para uma atividade dirigida. O importante é que seja algo fácil e que possa ser realizado com materiais acessíveis, como reciclagem”, conta Luciana Ferreira, secretária municipal da educação de Pindamonhangaba (SP).
Para o professor Marciel Consani, é importante prestar atenção aos tipos de conteúdo que valem a pena ser transmitidos via áudio, já que existem limitações. “É muito mais fácil aprender Geografia ou Filosofia ouvindo o rádio, do que a Matemática ou qualquer outro conteúdo que precise de uma explicação visual para ser complementado”, diz.
As aulas por rádio não são centrais na estratégia de ensino remoto da Secretaria Municipal de Educação de Pindamonhangaba (SP). O órgão também utiliza plataformas on-line e faz a distribuição de atividades impressas para manter o processo de aprendizagem dos alunos. A comunicação entre professores, alunos e familiares é feita principalmente por WhatsApp. Mas para a secretária Luciana, o programa de rádio é uma questão de cuidado e de reforçar os vínculos.
Uma mensagem recebida por WhatsApp ou escrita na plataforma parece um pouco fria. Mas quando a criança escuta uma pessoa que ela tem vínculo, como o professor – que é uma grande referência -, isso ressoa dentro dela, traz um acalento, um reconhecimento, uma memória afetiva. É uma forma de acolhimento socioemocional, e por isso valorizamos muito esse projeto
Luciana Ferreira, secretária municipal da educação de Pindamonhangaba (SP)
Saiba mais sobre como garantir o apoio emocional por meio do “acolhimento em cascata”
A contação de histórias via rádio em Santo Estêvão (BA) é voluntária, mas todos os professores devem fazer uma contação em vídeo para enviar aos alunos todas as sextas-feiras. As propostas são diferentes, ainda que tratem da mesma ação, pois envolvem mídias diversas.
“Os dois são bem desafiadores. No vídeo, ainda que não seja uma regra, o professor precisa montar um cenário, estar caracterizado. No rádio, é preciso outros atrativos, como uma entonação de voz, boa dicção. Tivemos professores que gravaram o áudio de uma história de livro-álbum, e tivemos que explicar que não seria possível passar essa história na rádio porque nesses casos a criança só tem realmente a compreensão do enredo vendo a imagem”, explica a coordenadora Carla Dias.
É justamente no fato de poder ser acessado sem a necessidade de uma atenção plena que se encontra a força do rádio.
O rádio foi feito tradicionalmente para acompanhar o ouvinte. Então é possível escutar o programa enquanto se faz outra coisa, seja lavando louça, trabalhando na recepção de um prédio, limpando a casa
Marciel Consani, professor doutor do curso de Educomunicação do Departamento de Comunicações e Artes da ECA-USP
Se pensarmos que esses áudios veiculados na rádio hoje em dia também são disponibilizados em sites e aplicativos de streaming, no computador ou celular, as vantagens desse recurso midiático aumentam: costuma ser um arquivo mais leve que um vídeo (e por isso consome menos Internet), e permite, muitas vezes, o aumento da velocidade de reprodução e a repetição quantas vezes for necessário.
O grande propulsor do rádio no Brasil foi Edgard Roquette-Pinto, que na década de 20 fundou a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro. Ele é o responsável pelo primeiro grande projeto nacional de rádio educativa, pois acreditava que através desse meio seria possível veicular conhecimento educativo para todos.
“O próprio Roquette-Pinto havia projetado que o rádio seria a melhor solução para promover a educação, considerando as dimensões continentais do Brasil. Mas esse projeto só era viável numa classe social muito restrita, já que ele considerava conhecimento educativo apenas o erudito – na época, a cultura europeia. Não deu certo nem comercialmente, nem socialmente”, explica Marciel Consani, professor doutor do curso de Educomunicação do Departamento de Comunicações e Artes da ECA-USP.
No governo militar, houve uma segunda tentativa, por meio do Projeto Minerva. Foi inspirado no modelo de Roquette-Pinto, mas pensado para as massas, em regiões da Amazônia e do sertão nordestino. O projeto não vingou por questões pedagógicas.
“Por mais que o rádio fosse um veículo popular, as pessoas não tinham como trabalhar o conteúdo das aulas, sem a mediação de um educador. O Projeto Minerva fracassou por falta de mediação pedagógica”, diz Consani.
No Rio Grande do Norte, os cuidados e desafios são diferentes das experiências anteriores, pois o uso da rádio na região da cidade de Caicó é voltado para a Educação de Jovens e Adultos (EJA). A começar pelo horário: o EJA em Ação é veiculado à noite, levando em consideração o horário que o estudante geralmente chega em casa, após o trabalho.
Realizado pela 10ª Diretoria Regional de Educação e Cultura (Direc) , com o apoio da Secretaria de Estado da Educação, da Cultura, do Esporte e do Lazer (SEEC) e em parceria com a Rádio Rural FM 102,7 de Caicó, o programa também tem uma abrangência maior, atingindo todas as 19 escolas que possuem alunos de EJA da 10ª Direc, localizadas em 11 diferentes municípios do entorno da cidade.
O projeto: Programa EJA em Ação
Horário: De segunda a sexta-feira, às 18h50
Duração: 50 minutos
Onde sintonizar: Rádio Rural AM 102,7. É possível acompanhar também pelo Facebook da 10ª Direc.
Como surgiu: Foi a assessora pedagógica Fabíola Dantas que teve a ideia de recorrer ao rádio para atingir os alunos de Educação de Jovens e Adultos, uma vez que a 10ª Diretoria Regional de Educação e Cultura (Direc) da Secretaria de Estado da Educação, da Cultura, do Esporte e do Lazer do RN (SEEC/RN) se viu frente ao desafio de pensar estratégias de ensino remoto com as escolas fechadas. Com o aval da Secretaria, a 10ª Direc buscou a parceria da Fundação Educacional Santana e da Rádio Rural FM 102,7 de Caicó para viabilizar as transmissões e passou a realizá-las desde 15 de abril.
Como funciona: Há uma coordenação geral do projeto, que envolve direção, coordenação pedagógica, assessores de comunicação e da área de Educação Especial e Diversidade. Inspirados na pedagogia de Paulo Freire, eles elaboraram um modelo de roteiro que parte de um tema gerador, que se desdobra em uma situação problematizadora e na construção de respostas pelas áreas de conhecimento.
Já foram transmitidos mais de 70 programas, que versaram sobre os mais diversos temas, como Covid-19, auxílio emergencial, cultura e diversidade, reflexão socioambiental, religiões afrobrasileiras etc. Às segundas, são abordados temas sociais e do interesse geral; às terças, Ciências Humanas; às quartas, Ciências Naturais e Matemática; às quintas, Linguagens; e por fim os ciclos de cultura às sextas-feiras. Os professores em cada escola decidem como dar encaminhamento às atividades, após a veiculação de cada programa.
“Toda segunda, às 14h, temos uma reunião de avaliação do programa, para analisar o que precisa ser modificado, se atendemos ou não o que foi proposto. É um processo de ensino que leva em conta a dialogicidade, a pesquisa da realidade, o multiculturalismo. As formulações e a aprendizagem são coletivas e inclusivas, um escuta o outro”, relata Suenyra Nóbrega Soares, diretora da 10ª Direc da Secretaria de Estado da Educação, da Cultura, do Esporte e do Lazer do Rio Grande do Norte (SEEC/RN).
Não é à toa que a coordenação do EJA em Ação se inspira em Paulo Freire.
“A linguagem do rádio traz uma perspectiva dialógica – e o educador falava muito sobre isso. O rádio monodirecional fica muito limitado enquanto possibilidade pedagógica e didática, então ele deve ter uma maneira de fazer a interação aluno-professor acontecer”, explica o professor Marciel Consani.
A coordenação do programa EJA em Ação busca incentivar a participação dos alunos e da comunidade escolar no planejamento do conteúdo, elaborando formulários e consultando-os sobre quais temas serão abordados no programa.
Se já enfrentamos uma evasão da EJA em tempos presenciais, imagine em tempos de isolamento social? Então a nossa intenção com esse programa de rádio foi manter o aluno junto da gente, interagir com ele, trazer possibilidades, renovar suas expectativas
Suenyra Nóbrega Soares, diretora da 10ª Direc da Secretaria de Estado da Educação, da Cultura, do Esporte e do Lazer do Rio Grande do Norte (SEEC/RN)
Ainda que não tenham um levantamento de quantos de seus 1.626 estudantes estão de fato ouvindo as transmissões, ela conta que teve um aumento de 100 matrículas na EJA no mês de junho, algo que não aconteceu nos anos anteriores.
Em Caicó, a experiência do programa trouxe muitas perspectivas e possibilidades para o futuro. A diretora Suenyra Soares conta que a ideia é dar continuidade ao projeto, mesmo com a reabertura das escolas, e até ampliá-lo.
“Queremos criar condições para que a Direc tenha seu estúdio radiofônico, para que ele seja um espaço dos estudantes, onde possam trazer esses ciclos de cultura. Também temos projetos e estudos de rádio adormecidos em várias escolas, e esperamos reativar essas práticas radiofônicas quando voltarmos”, explica.
Ela também ressalta a esperança de manter vivo o planejamento coletivo, interdisciplinar e intertranscultural que tem ocorrido nesse processo de construção do programa.
“Essa redescoberta da possibilidade de usar o rádio pode ser uma ampliação de repertório, no sentido de criar possibilidades para o aluno fazer, produzir e transmitir a partir dessa mídia. São experiências importantíssimas”, diz Richard Romancini, professor doutor adjunto do curso de Educomunicação da ECA-USP .
Com a pandemia, estratégias de ensino que utilizam mídias digitais acabaram se impondo sobre a rotina dos professores, que tiveram que lidar com elas na marra. Mas não são novas, e muito provavelmente vão continuar presentes no pós-pandemia. Daí a importância da formação continuada e de cursos on-line gratuitos como o Comunicação Digital para Educadores, criado em 2017 pelo CENPEC Educação, em parceria com o Itaú Social.
“O curso indica práticas e possibilidades de diferentes áreas e conteúdos, sobre as quais os professores podem refletir sobre como incorporar isso a possíveis estratégias pedagógicas que eles tenham”, explica o professor, que também é criador do curso.
Saiba mais sobre o curso Comunicação Digital para Educadores do CENPEC Educação
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