Atento às necessidades das gestão educacional e escolar, projeto aborda a questão da saúde mental garantindo acolhimento, espaço de diálogo com especialistas e trocas entre diferentes secretarias e gestões escolares
Por Stephanie Kim Abe
“Hoje, tenho enfrentado a problemática de alunos se mutilando, com crises de choro e de ansiedade… Tenho conversado, aconselhado… E nessa expectativa de ajudar, tenho perdido o sono por não ver resultados. E até funcionários têm apresentado situações parecidas. Não está sendo nada fácil… Já tive vontade de sair da gestão por não encontrar caminhos que surtam efeitos”
O relato acima vem de uma gestora escolar de Ouricuri, pequena cidade no sertão pernambucano. Ele é real, recente e mostra as angústias, a ansiedade e as dores de quem se vê diante desse desafio de lidar com problemas referentes às emoções e os sentimentos de diferentes atores da comunidade escolar. Como você acolheria essa gestora? Já ouviu relatos parecidos?
“Angústias e ansiedades são sentimentos humanos. Precisamos nos acalmar porque juntos vamos encontrar um sentido“, pontua Isabel Kann, psicóloga, professora e pesquisadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP).
A seu ver, muito desse mal estar sobre as nossas próprias emoções e como lidar com elas vêm do fato de que vivemos em uma sociedade contemporânea que nos exige sermos eficientes, únicos e singulares a todo momento. Uma sociedade que prega que cada um vença sozinho e onde o mal estar, a insegurança e as dúvidas não tem muito espaço ou apreço.
Com isso, acabamos não pedindo ajuda, não olhando para ou escutando o outro, não permitindo a troca e a vulnerabilidade. “Estamos na contramão disso tudo, resgatando valores comunitários, solidários, valores de estarmos juntos, sem acreditar em respostas rápidas, mágicas, fáceis, míticas mesmo“, diz Isabel.
Suas falas – e o relato que abre esta reportagem – fizeram parte da 2ª edição do Intercâmbio entre Gestores Escolares, promovido pelo programa Parceria pela Valorização da Educação (PVE/2022). O tema escolhido foi Saúde Mental nas Escolas.
O gestor não vai resolver tudo sozinho, mas vai prestar atenção ao que o merendeiro, a família, os professores trazem. Vai dar valor aquele grito das crianças e reconhecer o que elas precisam. A escola deve ser esse lugar de esperança, que vai transmitir sonhos e procurar encontrar respostas. Ela precisa resgatar esse lugar, que pode não ter todas as respostas, mas que em conjunto pode produzir conhecimento e permitir encontros, abraços e entendimento sobre o tempo de cada um. Eu diria que saúde mental é poder sonhar“, diz.
Isabel Kann, psicóloga, professora e pesquisadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP)
Veja aqui o momento em que se discute o relato da gestora de Ouricuri (PE):
Como abordar esse assunto na escola?
“Em vez de falar de saúde mental, coloca sentimento, emoção no lugar. E eu não acho que temos que falar disso na escola. Nós temos que ter uma escola que consiga viver as suas emoções, viver seus sentimentos“, diz Joice Lamb, coordenadora pedagógica da Escola Profa. Adolfina J. M. Diefenthaler de Novo Hamburgo (RS).
É por acreditar nessa abordagem, que, para ela, a questão “Como abordar o assunto da saúde mental de forma leve, para que não vire um tabu ou constrangimento na escola” não faz muito sentido. Aliás, denota que talvez a pergunta ideal para se pensar sobre isso seja outra:
Precisamos olhar para a nossa escola e pensar: por que será que a criança ficaria constrangida de falar dos seus sentimentos? Você acha que os seus professores também se sentem constrangidos? Se sim, então talvez tenhamos uma escola que está um pouco mais focada na resolução de problemas de aprendizagem, e não esteja abrindo muito espaço para escuta“, questiona.
Joice Lamb, coordenadora pedagógica da Escola Profa. Adolfina J. M. Diefenthaler de Novo Hamburgo (RS)
Ela acredita que é preciso abandonar aquela ideia de uma escola regrada, quadrada, cheia de regras que tínhamos no passado e pensar em como tornar esse ambiente escolar mais acolhedor às necessidades das crianças que frequentam esse espaço todo dia e que hoje, pós-pandemia, já não se identificam tanto com isso.
“As crianças passaram muito tempo em casa, e as coisas se bagunçaram. Alguns podem dizer que voltaram meio rebeldes, mas a verdade é que a maneira como viveram os últimos dois anos não está batendo com a forma de viver da escola. O que fazemos? Tentamos encaixotar as crianças de novo naquele lugarzinho? Ou podemos olhar para a nossa escola e pensar, sem pré-julgamentos, sobre como essas crianças estão se sentindo, como estão entrando na rotina?”, diz Joice.
Ao ser questionada, durante a live, sobre se os problemas de saúde mental podem piorar o desempenho das(os) estudantes, a coordenadora é categórica em afirmar que sim e lembra o porquê:
Com certeza vão piorar. Questões emocionais e de sentimentos, seja dos pais, professores, alunos, gestores, vão conturbar o ambiente, porque, afinal, a escola é construída em cima de relações, convivência. Não podemos falar apenas de desempenho. E, quando falamos em saúde mental, é preciso entender: ela é uma tarefa ou uma vivência? O que a gente não vive, a gente não sente. Se o tema é abordado como uma tarefa, não vai dar certo, sinto muito”.
Joice Lamb, coordenadora pedagógica da Escola Profa. Adolfina J. M. Diefenthaler de Novo Hamburgo (RS)
Veja ao lado o momento em que Joice traz suas reflexões sobre o debate:
Por meio de parcerias com as prefeituras e as secretarias municipais de Educação, a proposta do PVE é contribuir para a melhoria da educação pública nos municípios, por meio da mobilização social das comunidades e da qualificação das práticas de gestão educacional e escolar, considerando o aperfeiçoamento de competências e habilidades profissionais.
Atualmente, ele acontece em 27 munícipios e atinge cerca de 600 gestoras(es) escolares. A ideia do Intercâmbio entre Gestores Escolares é justamente promover essa troca entre pares, como explica Luciana Franceschini, coordenadora do PVE:
Muitos diretores e coordenadores pedagógicos têm um trabalho muitas vezes solitário. O que nos motiva com essa ação é promover este encontro e proporcionar esse espaço de reflexão e de discussão sobre um tema que é comum a todos e que traz também respostas“.
Luciana Franceschini, coordenadora do PVE
Os relatos e perguntas que pautaram a conversa das duas especialistas ao longo da live foram coletados pela equipe do projeto com as(os) participantes, no ato da inscrição, garantindo assim que essas dúvidas das(os) gestoras(es) escolares de fato aparecessem na conversa do Intercâmbio.
“Uma coisa interessante que observamos foi uma tendência das escolas, mas não só delas, de achar que essa temática está relacionada apenas a pessoas com deficiência. Recebemos, por exemplo, muitas perguntas sobre pessoas com deficiência, inclusão, atendimento especial, enquanto sabemos que o tema é mais amplo. Estamos falando de estudantes – e professores – com apatia, com transtorno alimentar, sintomas de depressão. Então quisemos abordar a escola enquanto esse lugar de proteção e de garantia de direitos“, diz Luciana.
Heloísa Proença, formadora do PVE, também aponta uma das principais questões que encontrou entre as equipes gestoras com as quais trabalha:
Como o gestor escolar e o gestor da Secretaria se organizam para desenvolver um trabalho que seja competente, que valorize a aprendizagem e que, ao mesmo tempo, faça o acolhimento socioemocional dessas pessoas? Essa é uma grande dúvida e que a troca entre os pares pode trazer muita luz. Assim, mostramos para as equipes que não estão enfrentando um problema particularizado, mas sim coletivo”.
Heloísa Proença, formadora do PVE
Reflexão sobre a prática e apoio
Após a live – que teve apresentação da contadora de histórias Kiara Terra –, foram montados ainda grupos de trabalho com as(os) participantes, para que pudessem continuar conversando sobre o tema.
Luana Hussar, coordenadora pedagógica da Escola Municipal Professor Octávio Muller Filho, localizada em Capão Bonito, interior de São Paulo, participou do Intercâmbio e acredita que o encontro foi muito proveitoso.
Ainda que já realizasse ações de acolhimento às crianças, como atividades de leitura e brincadeiras, e com as(os) professoras(es), ela conseguiu ter inspirações para realizar mais trabalhos nesse sentido em sua instituição:
Durante a pandemia, nós buscávamos incentivar os professores, a autoestima deles, seja com uma música, uma brincadeira, um momento de escuta nas reuniões on-line. Apesar de já gostar de acolher, o Intercâmbio me permitiu parar e refletir sobre a minha prática. Será que eu ouço mesmo o professor? Será que não precisamos de mais parceria com outros órgãos (de saúde e assistência social) para nos apoiar? Afinal, há muitas habilidades que nós, educadores, não temos. Falar de saúde mental também requer o apoio de outros profissionais”, diz.
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