- Débora souza de britto
Por Stephanie Kim Abe
O Novo Ensino Médio (Lei nº 13.415/17) começou a ser implantado em todas as escolas públicas e privadas do país neste ano letivo, para as turmas do 1º ano dessa etapa da educação básica. O ensino médio passa a ter uma maior carga horária (ampliada de 800 horas para 1000 horas anuais) e uma nova organização curricular, composta por uma formação básica comum a todas(os) as(os) estudantes e pelo aprofundamento em uma ou mais áreas do conhecimento por meio dos itinerários formativos.
A implantação segue o cronograma definido pelo Ministério da Educação (MEC) em julho de 2021. A portaria corroborou o que já estava previsto na Lei nº 13.415/17, que previa uma carga horária mínima de mil horas anuais no prazo de cinco anos da aprovação da lei. Assim, o Novo Ensino Médio deve chegar às(aos) estudantes de 2º ano em 2023 e, em 2024, a todas as turmas do ensino médio.
Mas os prazos foram contestados por alguns(as) especialistas e parlamentares – que chegaram a protocolar projetos na Câmara dos Deputados para adiar a implantação.
Para Ana Paula Corti, professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de SP (IFSP) e membro da Rede Escola Pública e Universidade (Repu), a rapidez com que essas mudanças têm tramitado nos estados a assusta:
A lei previu a implantação para 2022, mas tivemos uma pandemia no meio do caminho. É bastante temerária a maneira como esse processo continuou uma vez que as escolas estavam fechadas, porque as possibilidades de debates democráticos, sobretudo de uma política como essa, de mudança curricular, se limitam demais. Os alunos, professores, familiares não estavam na escola para discutir. Além disso, há um ano, nós tínhamos apenas seis estados com o currículo homologado. E, no final do ano, eram 22. Aconteceu tudo muito rapidamente.”
Ana Paula Corti
Já Ivan Cláudio Pereira Siqueira, membro do Conselho Nacional de Educação (CNE) e professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP), relembra que a discussão de mudanças no ensino médio já acontecia muito antes de 2017, quando a Lei 13.415 foi aprovada:
Estamos falando de uma discussão de quase 10 anos, porque o debate sobre uma reforma ocorre desde 2013. Não vimos muitas alterações essenciais nesse período e os estados já sabiam, desde a aprovação da lei, que seria necessário implantar o Novo Ensino Médio. Eles receberam recursos para se preparar. Eu tenho a impressão de que, se postergássemos essa data, agravaríamos ainda mais a situação de abandono das(os) estudantes dessa etapa, que já é grave.”
Ivan Siqueira
Diversos pontos de vista
Desde que foi aprovado, o Novo Ensino Médio tem gerado discussões e críticas. Há aquelas(es) que defendem a reforma e a veem como uma solução para o desinteresse das(os) estudantes por essa etapa da educação básica e aquelas(es) que preveem o aumento das desigualdades educacionais. Outras(os) apostam no projeto de vida e nas possibilidades de trazer mais protagonismo para a juventude, e outras(os) se preocupam com a precarização do trabalho docente e do ensino para as pessoas mais pobres e vulneráveis.
A sua implantação envolve a discussão com a comunidade escolar, a estrutura das redes e das escolas, a formação continuada de educadoras(es), a forma de avaliação e o Enem, as parcerias com outras instituições, os impactos em modalidades de ensino, como ensino médio noturno e EJA etc.
Dadas todas essas perspectivas e no intuito de colaborar para a melhor compreensão do cenário, das complexidades e das controvérsias em torno dessa implantação, o Portal Cenpec inicia agora a série Novo Ensino Médio. Nosso objetivo é trazer os diferentes aspectos, pontos de vista e experiências de aplicação do modelo nos estados e municípios brasileiros.
A cada mês, publicaremos uma reportagem com diferentes atores da comunidade escolar e especialistas que trarão os seus olhares sobre aspectos variados desse processo. A ideia é dar voz tanto a quem está no chão da escola (estudante ou docente) como a quem está na gestão pública planejando essas mudanças ou pesquisadoras(es) que se debruçam sobre as consequências dessa política pública.
Nesta primeira matéria, conversamos com Ana Paula Corti e Ivan Cláudio Pereira Siqueira. Confira.
Não há tempo a perder
O conselheiro Ivan Siqueira acredita que as mudanças propostas no Novo Ensino Médio podem ser uma oportunidade para atrair as(os) adolescentes que abandonaram a escola com a pandemia.
De acordo com a pesquisa Cenário da Exclusão Escolar no Brasil, realizada em parceria pelo Cenpec e UNICEF, mais de 1,5 milhão de adolescentes entre 15 e 17 anos estavam fora da escola ou sem atividades escolares em 2020, primeiro ano da pandemia no Brasil.
Uma das palavras-chave dessa política é a flexibilidade, à medida que propõe a criação de itinerários formativos em cinco áreas do conhecimento:
• Matemáticas e suas Tecnologias
• Linguagens e suas Tecnologias
• Ciências da Natureza e suas Tecnologias
• Ciências Humanas e Sociais Aplicadas,
• Formação Técnica e Profissional (FTP)
Cada rede de ensino tem autonomia para escolher quais itinerários vai ofertar, desde que sejam no mínimo dois.
Nas imagens abaixo, retiradas do infográfico produzido pelo Porvir, com apoio do Movimento pela Base, estão algumas das características do Novo Ensino Médio:
Para o conselheiro Ivan Siqueira:
Se o Novo Ensino Médio for feito de maneira adequada, juntando o projeto de vida, a possibilidade de as(os) estudantes escolherem as trajetórias com que têm mais afinidade, um clima acolhedor na sala de aula, a escola passa a fazer mais sentido. A flexibilidade é necessária justamente para ter um aprofundamento do conhecimento e trazer alguma ligação entre o que é visto em sala de aula e a vida prática das(os) jovens. E não tínhamos isso antes, com 13 disciplinas no ensino médio. É melhor fazer essas mudanças do que não fazer nada. Para quem tem 15, 16 anos, esperar um ano é muito tempo.”
Ivan Siqueira
Confira o livro organizado pelo Cenpec e aprovado no PNLD 2021 sobre projeto de vida.
Mudanças profundas – e perigosas
Ana Paula Corti classifica como “profundas” e “negativas” as mudanças propostas no Novo Ensino Médio. Na visão da professora, ao propor diferentes itinerários, em um país com redes de ensino tão desiguais, o ensino médio se desconfigura:
Nos anos 1990, quando o ensino médio se democratizou e massificou, ou seja, passou a ser para todas(os), essa etapa começou a compor a educação básica. Esse é um conceito muito importante, porque significa que toda cidadã e cidadão precisam ter acesso a uma formação geral para poder exercer a sua cidadania, que se traduz de várias formas – como no direito ao trabalho e à participação na vida cultural do país. É uma escolaridade mínima que se exige e oferece para todas(os).”
Ana Paula Corti
Seguindo a Base Nacional Comum Curricular do Ensino Médio, aprovada no final de 2018, cada estado tem homologado o seu próprio referencial curricular. No estado de São Paulo, por exemplo, existem 11 itinerários formativos, mas a maioria das escolas oferta apenas dois itinerários.
“Ao introduzir o conceito de flexibilização, o ensino médio deixa de ser uma formação geral básica e uma parte importante dele, hoje, está desregulamentada do ponto de vista do currículo. O efeito é, possivelmente, a geração de uma desigualdade no que deveria ser a base da formação. Ou seja, ele não é mais parte da educação básica comum”, explica Ana Paula.
A pesquisadora também chama atenção para a ausência de discussão sobre investimento na estrutura das escolas. Sem condições estruturais, materiais e humanas, as redes de ensino terão ofertas limitadas de itinerários formativos:
O Novo Ensino Médio não propõe nenhum tipo de reformulação da rede física. Como ele quer aumentar a oferta de itinerário formativo profissional sem investir em laboratório, equipamento, em manutenção? Então é uma falácia o discurso que diz que as(os) estudantes poderão escolher sua área de interesse, porque, na prática, elas(es) terão que se limitar ao que a escola estiver oferecendo.”
Ana Paula Corti
Para a professora, “em vez de promover mais igualdade no sistema, essa proposta de ensino médio está estratificando cada vez mais – e isso é uma perversidade. Ela está oferecendo para as(os) jovens da classe trabalhadora, as(os) jovens pobres, um ensino médio enfraquecido de conhecimento, que vai dificultar a sua inserção no Ensino Superior. Enquanto isso, as escolas particulares continuarão oferecendo diversas opções, com toda a estrutura necessária.”
Os gráficos a seguir, elaborados pelo Observatório da Educação com base no Censo Escolar (Inep), apresentam dados referentes à taxa de abandono de estudantes do ensino médio em 2019 de acordo com o perfil socioeconômico e étnico-racial, respectivamente. A análise dos dados revela que a taxa de abandono aumenta quanto menor é a renda familiar da(o) estudante, e é maior entre estudantes negras(os) em relação a estudantes brancas(os):
Taxa de abandono na rede pública do ensino médio por nível socioeconômico da Escola (NSE) em 2019:
O nível socioeconômico da Escola (NSE) reflete as condições de vida (família, renda e bens básicos) das(os) estudantes. Quanto maior o NSE, melhores as condições de vida das(os) estudantes de uma escola. O NSE foi organizado em cinco níveis de renda familiar. Nível 1: muito baixo ou baixo – até 1 salário mínimo. Nível 2: médio baixo – entre 1 e 1,5 salário mínimo. Nível 3: médio – de 1,5 a 5 salários mínimos. Nível 4: médio alto. – 5 a 7 salários mínimos. Nível 5: alto ou muito alto -acima de 7 salários mínimos.
Fonte: Censo Escolar / Observatório da Educação
Taxa de abandono na rede pública do Ensino Médio segundo cor/raça dos estudantes em 2019
A quem importa o fracasso escolar?
Um recorte de cor/raça sobre taxas de abandono escolar evidencia que os mais impactados pela cultura do fracasso escolar são estudantes negras(os) e indígenas. Além da reprovação, há outros fatores internos da escola que levam ao abandono dos estudos (como o desinteresse pelo currículo), além de externos, como trabalho remunerado ou gravidez na adolescência. Saiba mais.
Como as mudanças afetam as(os) docentes
Com base na experiência bem-sucedida dos Institutos Federais (IFs), Ana Paula Corti aponta dois componentes fundamentais nessa receita: o financiamento adequado do custo-aluna(o) no ensino médio e as condições de trabalho e perspectivas de carreira das(os) docentes.
São necessários recursos para poder oferecer uma estrutura como a dos campi onde se encontram os Institutos Federais – e essa é uma das críticas de quem acredita que é inviável massificar o acesso aos IFs.
“Um(a) estudante de Instituto custa em torno de 1,3 mil reais, o que é mais do que o custo da(o) estudante das redes estaduais. Mas o resultado que entregamos não é entregue por escolas privadas por uma mensalidade menor que R$ 4 mil. Ou seja, o ensino público federal faz bem feito com pouco”, rebate.
Sobre a carreira docente, a pesquisadora comenta que as condições de trabalho nos IFs estimulam as(os) professoras(es) a estudar, porque sabem que seus estudos serão valorizados, entre outros pontos:
A(O) docente bem remunerada(o) e que tem plano de carreira consegue se planejar e tem uma relação positiva com o seu ofício. Ela(e) ensina bem e as(os) estudantes se sentem extremamente estimuladas(os) por ela(e). Essa(e) profissional encontra no ambiente de trabalho uma estrutura física adequada, com laboratórios e equipamentos, e tem uma forte relação entre a teoria e a prática. Nós, nos IFs, não temos nenhuma cartilha, apostila ou currículo padronizado. Não existe um material único. E fazemos interdisciplinaridade há muito tempo. Como damos certo? Tendo docentes bem qualificadas(os) – que são fundamentais para uma educação de qualidade.”
Ana Paula Corti
A questão docente é uma das principais preocupações de quem analisa as mudanças propostas pelo Novo Ensino Médio com cuidado. Considerando que o currículo não se pautará mais por 13 disciplinas e sim por áreas do conhecimento, as(os) professoras(es) estão preparadas(os) para trabalhar nesse contexto? Há brecha para a contratação de novas(os) profissionais sem a formação necessária? Que tipo de apoio tem sido dado a essas pessoas, para que estejam preparadas para esse novo contexto?
O próprio conselheiro alerta:
Se eu sou professor de geografia ou história, eu sei dar aula de geografia ou história, respectivamente. Como eu vou dar aula em um contexto multidisciplinar? A resposta seria a formação continuada. Mas, com a pandemia, nós não fizemos isso. Então esse início de mudanças será um deus nos acuda.”
Ivan Siqueira
Quais os caminhos possíveis?
Diante de tudo o que foi posto, as alternativas de ação são diversas. Para o conselheiro, o que falta é uma visão mais macro dos rumos da educação brasileira como um todo. O ensino médio é uma etapa da trajetória escolar e, portanto, suas mudanças precisam estar dentro de um plano maior.
“Atualmente, nós não temos um propósito. Precisamos de seriedade e de um projeto de país, que não deixe essa quantidade imensa de pessoas para trás e que tenha continuidade. Se não, vamos fazendo apenas remendos. Se tivermos um projeto para que jovens, famílias, comunidade escolar, sociedade se engajem, acho que conseguiremos dar um salto imenso”, afirma o conselheiro.
Mas se não houver uma articulação nacional, a fim de construir uma base que garanta qualidade e equidade para todas(os) as(os) estudantes do ensino médio, quais serão as consequências dessa reforma? Nesse sentido, o papel do MEC é determinante e indispensável:
O ensino médio vai ter muitas dificuldades, não só por conta da pandemia, mas porque não foi feito um trabalho colaborativo entre os entes da federação: governo federal, estados, municípios e DF. O dinheiro já estava alocado para apoiar as mudanças do ensino médio, mas não é só uma questão de recurso. Considerando que o Brasil é esse país todo desigual, que há muitas diferenças de uma região para outra, é fundamental que o MEC faça essa articulação. Porque se ele não faz, não tem quem faça.”
Ivan Siqueira
Na visão de Ana Paula Corti, o Novo Ensino Médio não tem salvação – afinal, ele já nasceu de um estilo autoritário de implantação, quando a reforma do ensino médio foi proposta por meio de Medida Provisória (MP 746/2016), no governo Temer.
Me surpreende que mesmo estados com um governo no campo mais progressista não estejam se opondo a essa reforma. É muito necessário que pensemos em revogar essa lei, porque ela tem um compromisso com o autoritarismo e desmonta o direito à educação. Devemos convocar uma ampla conferência popular de educação para discutir, de maneira participativa e dentro dos marcos da democracia brasileira, mudanças para o ensino médio. E resgatar o protagonismo das(os) educadoras(es).”
Ana Paula Corti
Anna Helena Altenfelder, presidente do Conselho de Administração do Cenpec, pondera que a implementação do Novo Ensino Médio traz, por um lado, preocupações e alertas, que vão desde as condições objetivas para implantação até a ameaça de acirramento das desigualdades educacionais já existentes. Por outro lado, ela avalia como pouco provável que a lei seja revogada.
“Redes estaduais já fizeram diferentes esforços nesse sentido, como a elaboração dos novos currículos. Também temos que considerar que o modelo antigo não respondia às necessidades e aos interesses das(os) jovens e provocava exclusão, assim a simples revogação da lei não ajuda a caminhar na garantia do direito de aprender”, analisa.
A educadora ressalta a necessidade de análises e acompanhamento desse processo:
É preciso que docentes, estudantes, gestoras(es), famílias, pesquisadoras(es), sociedade civil organizada, mídia especializada assumam uma postura vigilante e crítica sobre a implantação do novo modelo. É importante lembrar que mesmo quem defende o modelo alerta que, sem investimentos em infraestrutura das escolas, formação e valorização docente, o Novo Ensino Médio poderá aprofundar as desigualdades educacionais. Assim, cabe alertar sobre as condições que devem ser asseguradas para que a reforma não acirre problemas já conhecidos e crie novos, que recaiam fortemente sobre as(os) estudantes, especialmente as(os) mais vulneráveis.”
Anna Helena Altenfelder
Confira nossas contribuições para o debate do Novo Ensino Médio.
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