Na manhã da última quarta-feira (13/03), o Brasil foi abalado com a notícia do ataque realizado por Luiz Henrique de Castro, 25 anos, e Guilherme Taucci Monteiro, 17 anos, à Escola Estadual Professor Raul Brasil, em Suzano (SP), depois de um meticuloso planejamento que durou cerca de um ano e meio.
Ao todo, o crime deixou 10 vítimas, incluindo Guilherme e Luiz Henrique. Também foram mortos: Kaio Lucas da Costa Limeira, Cleiton Antônio Ribeiro, Caio Oliveira, Samuel Melchiades Silva de Oliveira e Douglas Murilo Celestino, todos com idades entre 15 e 17 anos; a coordenadora pedagógica Marilena Ferreira Vieira Umezo; a inspetora Eliana Regina de Oliveira; e o tio de Guilherme, Jorge Antônio Moraes, baleado minutos antes, em uma locadora de carros.
Ação e reações
Ao longo da última semana, fatos e histórias relacionados ao crime têm sido descobertos e noticiados pela imprensa. Sabe-se, por exemplo, que tanto Guilherme como Luiz Henrique eram ex-alunos da escola. Sabe-se que Guilherme, que a abandonou em 2018 provavelmente devido ao bullying, foi criado pelos avós, e que sua mãe, Tatiana Tucci, luta contra a dependência química. Sabe-se que os dois jovens eram fãs de videogames e gostavam de jogos violentos. Que frequentavam a chamada deep web, a área sombria e frequentemente ilegal da rede, onde participavam de fóruns virtuais nos quais receberam ajuda e orientação para planejar o atentado.
Em meio a tantos detalhes, o esforço da mídia e da sociedade tem sido buscar relações de causa e efeito entre eles. Mas isso acarreta riscos. O primeiro é que as investigações estão em andamento e que, até terminarem, não se pode ter plena clareza das motivações do crime.
O segundo risco é reforçar estereótipos, que não dão conta, necessariamente, do anseio de “encontrar culpados”. Será o videogame o vilão? As questões familiares de Guilherme desempenharam algum papel? A deep web, em si mesma, é um risco? O bullying foi o fator primordial? Foi a soma de todos eles? Eles tinham problemas psicológicos?
Infelizmente, a violência é um marcador comum à juventude do século XXI, muito mais que nas gerações anteriores. É uma geração que conhece a morte dos seus pares, que tem medo da morte iminente e violenta, especialmente os mais vulneráveis. No entanto, essa vulnerabilidade nem sempre é apenas social: pode ser afetiva. É preciso combater a sociabilidade violenta que engendramos.”
Marília Rovaron
As reações têm sido destoantes, especialmente as de representantes do poder público. Há quem defenda mudar a arquitetura das escolas, instalar medidas adicionais de segurança e até armar os(as) professores(as). Para o senador Major Olímpio (PSL-SP), que também comentou sobre a redução da maioridade penal, se os(as) professores(as) estivessem armados(as), a tragédia seria evitada. Seu colega de bancada, o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), acredita que armas fazem tão mal quanto um carro.
Já o secretário estadual de Educação de São Paulo, Rossieli Soares, foi taxativo: “Não acho que mais armas resolverão nossos problemas. Colocar arma na mão do professor pode ter determinada reação e muitas vezes nem sempre a melhor reação”.
Escola e políticas públicas
Se as motivações e os fatores individuais ainda estão sendo descobertos, a situação é diferente quando se fala de políticas públicas e educação. Aí já há respostas sobre o que é ou o que não é adequado. “Uma medida de armamento, em hipótese alguma, resolve a raiz do problema”, comenta Maria Amabile Mansutti, diretora de tecnologias educacionais do CENPEC – Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária.
Para Amabile, caso armar professores(as) se tornasse, de fato, uma política pública, “continuaríamos com o problema, porque a escola, especialmente a pública, é um retrato do que há na sociedade. Nesse caso, estamos lidando com jovens, especialmente com um jovem que abandonou a escola – e não podia ser perdido. Precisa haver acolhimento, escuta, orientações na escola. Trabalhar com o coletivo, mas também com atenção individual – e é isso que não temos conseguido fazer”.
“A escola tem uma proximidade com o macrocosmo social que a torna complexa”, concorda Anna Helena Altenfelder, presidente do Conselho de Administração do CENPEC. “É preciso haver, sim, enfrentamento da violência, mas ele precisa ser pensado de forma integrada. Há autores que trabalham com os conceitos de violência contra a escola, violência na escola e violência da escola. A violência contra a escola, que é a que vem de fora, requer políticas públicas amplas e um diálogo com a sociedade, e as violências na e da escola requerem políticas educacionais.”
A proposta de armar os(as) professores(as) parte do pressuposto de que a escola é um espaço de violência, de insegurança. Isso destrói toda a proposta de transformação que a escola traz, de ser um espaço de construção da sociedade.”
Mônica Gardelli Franco
“São políticas que passam por discutir qual é o papel da escola”, continua Anna Helena. “Nesse sentido, pensamos muito no desenvolvimento integral como uma proposta que tem esse papel de trabalhar as questões sociais, culturais, emocionais e cognitivas de forma integrada. Olhar o(a) aluno(a) como um todo. Dessa forma, tanto as questões que ameaçam como as que angustiam os(as) jovens precisam ser discutidas. É por isso que a escola tem de ser o lugar da divergência, dos diferentes pontos de vista, do diálogo.”
Marília Rovaron, coordenadora de projetos do CENPEC especializada em adolescentes que cumprem medidas socioeducativas, chama a atenção para o fator da evasão escolar: “Quando soube do que aconteceu em Suzano, imediatamente me lembrei de Marcos Rolim, autor de A formação de jovens violentos, que afirma ser a escola o fator principal para a prevenção da violência […]. O que as pesquisas apontam – e aí também entro na área em que trabalho, de adolescente que comete ato infracional – é que esse ato coincide com o momento em que o adolescente rompe com a escola”.
Práticas discursivas
“A escola é um espaço de sociabilidade, não um campo de guerra. É onde se conhecem e se praticam os valores da democracia, onde se aprende a respeitar a diversidade, a lidar com as diferenças”, afirma Marília Rovaron. “O que me preocupa é que as reações ao que houve são superficiais: passam por armar pessoas, militarizar. Não se discute como se previne o ato, apenas como se reprime.”
A especialista menciona os estudos do criminologista Lonnie Athens, que pesquisou o processo de formação de criminosos violentos. Para Athens, esse processo compreende as fases de brutalização, beligerância, performance violenta e virulência, cada qual constituída por etapas próprias.
“Os(As) jovens passam por esse processo, que começa com a subjugação – e o bullyingé um exemplo – e segue por outros, como o treinamento violento, que afeta muito os homens e é perceptível em adolescentes que cometem ato infracional. O treinamento violento é a violência excitada pela família ou por outras pessoas no entorno. É quando se diz: ‘fulano te bateu, vai lá e bate nele’ ou, se o menino chora, bate porque ‘homem não chora’”, explica Marília.
A escola é um espaço de muita vida, em ebulição. É difícil gerir uma escola de 2 mil alunos em um território vulnerável, e isso precisa envolver muita parceria entre a equipe de professores(as) e entre as famílias. Pode não resolver problemas patológicos, pontuais, mas a solução certamente também não passa por armar a todos. Não é o que mostram os estudos nacionais e internacionais.”
Beatriz Cortese
“Estamos em uma sociedade que vive em meio à violência, em que há um culto à violência e que acredita que a violência é a maneira pela qual os problemas sociais são resolvidos. Simplesmente, não discutimos quais discursos legitimam essa violência – e hoje esses discursos são estimulados pelo próprio Estado. A mensagem que se passa é que a sociedade é violenta em si, que está tão brutalizada que não consegue dar outras respostas para resolver seus próprios conflitos, não consegue preveni-los. Assim, as respostas podem ser apenas reativas. Arma-se, então, a população”, diz Marília Rovaron.
Para Beatriz Cortese, gerente de projetos do CENPEC, esses discursos também legitimam a ideia de controle estrito do comportamento: “Alguns discursos religiosos e militares, do ponto de vista do controle do comportamento, respondem a uma falta de recursos técnicos de professores(as) e educadores(as) para lidar com todas as dificuldades que temos hoje. Então, o jeito mais fácil de lidar com isso, quase intuitivo, é ‘garantir um bom comportamento’”.
“No entanto, se você tem uma equipe de professores mais fortalecida, tanto do ponto de vista da valorização profissional como do ponto de vista da qualificação técnica, nem os recursos de um ‘comportamento religioso’ nem da militarização são fundamentais para que o(a) aluno(a) tenha um comportamento de estudante na escola. Isso é garantido por conhecimento técnico”, avalia Beatriz.
Formação e articulação
A discussão sobre enfrentar a violência na, da e contra a escola também passa, portanto, pela formação dos(as) professores(as). “A sociedade hoje está em moldes muito diferentes daqueles para os quais os(as) educadores(as) foram formados(as)”, comenta Mônica Gardelli Franco, diretora-executiva do CENPEC.
É preciso haver programas, políticas, formações, para poder lidar com tudo isso. Se não há, não é porque os(as) educadores(as) não queiram, porque eles(as) vivem esse dia a dia e é o que mais desejam. Não há os recursos, e, portanto, é necessário um melhor investimento na escola e na própria formação.”
Maria Amabile Mansutti
“Não há um repertório de convivência e uma formação adequada que permita, por exemplo, identificar uma patologia ou jovens que estejam mais suscetíveis, por exemplo, a serem cooptados por fóruns virtuais e páginas da deep web que promovem a violência. E, principalmente, não há articulação entre as políticas educacionais, os sistemas de saúde, a assistência social, a segurança pública e as políticas de juventude, articulação que permita essa identificação e a abordagem adequada”, diz Mônica.
“Não pode recair sobre a escola toda a responsabilidade de enfrentar a violência”, concorda Anna Helena Altenfelder. “A função social da escola é a transmissão do conhecimento socialmente adquirido, a formação para a cidadania e autonomia, e isso se dá necessariamente em um clima de confiança. Para isso, o professor precisa de apoio, e o apoio não é ‘uma arma para se defender’. Ele precisa de formação para lidar com as complexidades, de condições adequadas de trabalho – e o sistema público de ensino precisa do apoio das outras políticas públicas, dos outros organismos. É assim que se constrói uma rede de proteção para as nossas crianças dentro da escola.”
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