100 anos de Semana de Arte Moderna

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100 anos de Semana de Arte Moderna

Especialista explica contexto e questões que envolveram o evento, as narrativas criadas em torno dele e possíveis debates sobre o tema na escola

Por Stephanie Kim Abe

2022 traz muitas comemorações. Uma delas, o centenário da Semana de Arte Moderna de 1922, está agitando museus e centros culturais de todo o país com uma agenda de atividades, palestras e exposições que devem celebrar a efeméride. Mas afinal, por que a Semana de 22 é tão importante? Será mesmo que ela foi tão grandiosa e inovadora como tanta gente defende por aí? Se não, por que ela tem essa fama?

Há diversos sites que têm buscado produzir e divulgar conteúdo e trazer elucidações sobre a Semana de Arte Moderna. É o caso do Agenda Tarsila, uma iniciativa do projeto Modernismo Hoje, da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo, e o Ciclo 22, da Universidade de São Paulo.

Foto: arquivo pessoal

Para contribuir com essas produções e trazer para o Portal Cenpec algumas das perspectivas e críticas que são feitas ao evento e ao Modernismo, conversamos com a historiadora e crítica de arte Alecsandra Matias de Oliveira. Especialista em História da Arte e Comunicação, ela atualmente dá aulas de Arte africana e afro-brasileira no Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc) e trabalha na produção executiva de exposições no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC-USP).

Foto: arquivo pessoal

Na conversa, Alecsandra analisa o contexto que levou à Semana de Arte Moderna, os atores envolvidos, as motivações por trás do movimento modernista e as formas como podemos refletir sobre a época, com os olhares críticos e as questões sociais que nos perpassam agora. Ela também comenta possibilidades de trabalho do tema na escola – que conversa muito com o relato da professora Lara Rocha, que nos conta sua experiência com estudantes do Cursinho Popular Florestan Fernandes ao trabalhar a Semana de 22 em um tour pela cidade de São Paulo.

Confira abaixo!

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Modernismo, narrativas e releituras

Portal Cenpec: O que foi a Semana de Arte Moderna de 22?

Alecsandra Matias de Oliveira: Acho que é importante as pessoas entenderem alguns fatos sobre a Semana. Primeiro, que ela aconteceu em três dias (dias 13, 15 e 17 de fevereiro de 1922), apesar de se chamar Semana. E que foi um festival de artes, como os que aconteciam na Europa, à moda francesa, com várias linguagens: literatura, poesia, música, artes plásticas. Naquela mesma época, a Semana aparece tanto como esperada nos jornais, como também uma algazarra, uma confusão, como “última pagodeira da Semana futurista”.

Cartaz da Semana de Arte Moderna/Wikipédia
Cartaz da Semana de Arte Moderna/Wikipédia

A diferença nesses tratamentos reflete os ideais da elite paulistana, que uma parte apoia, e outra rechaça. A elite paulistana que está voltada para a Europa, que está em contato com seus movimentos artísticos de vanguardas (que se iniciam em 1905 e terminam em 1924), quer colocar São Paulo no sistema capitalista internacional.

Mas ela não acontece do nada. Ela tem dois antecedentes importantes. Em 1913, quando Lasar Segall vem pela primeira vez ao Brasil e faz uma exposição em Campinas, muitos críticos classificam como “pequenas incorreções” aquilo que ele traz de expressionista na obra dele. Depois, em 1917, Anita Malfatti faz uma exposição em São Paulo que também recebe críticas – mas muito mais fortes do que a de Lasar Segall.

Várias pesquisas se debruçam sobre essa diferença: Anita era uma mulher jovem, tinha feito formação nos Estados Unidos e na Alemanha e era brasileira. Enquanto Segall era um homem estrangeiro. Monteiro Lobato escreve o artigo “Paranóia ou Mistificação?“, ou seja, dizendo que ela é completamente louca ou que está querendo nos enganar.

É nesse momento que os modernistas vão se formando, se juntando e se conhecendo, formando o caldo que culminaria na Semana de Arte Moderna de 1922. 

Portal Cenpec: O que é o Modernismo brasileiro celebrado nesse evento?

Alecsandra: Ele é composto por várias linguagens, vários movimentos artísticos. São artistas futuristas, abstracionistas, cubistas… eles não têm nada em comum. A única coisa em comum é que todos querem romper com o academicismo.

O Moderno passa a ser sinônimo de “novo”, de “avanço”, de “progresso” – mas isso significa muitas coisas distintas frente às questões da época. Quando se olha a economia, por exemplo, o “moderno” é deixar a agricultura, a monocultura e apostar na indústria e, consequentemente, na urbanização; na política, significa deixar as oligarquias e apoiar uma vertente mais liberal. Nas artes, é fazer rupturas com o acadêmico, trabalhar com diferentes materiais, não apenas os nobres (bronze, mármore, óleo) e aderir às vanguardas europeias. A arte moderna rompe com os materiais.

Mário de Andrade (sentado) e Anita Malfatti (sentada, ao centro)/Wikipédia

O chamado Grupo dos Cinco (Tarsila do Amaral, Anita Malfatti, Menotti del Picchia, Mário de Andrade e Oswald de Andrade) buscam descobrir o que é original do Brasil, no sentido de origem, de cerne, de essencial. Essa busca é inspirada no movimento das vanguardas europeias, que procuravam o primitivo em cada cultura, o que fazia a diferença em cada uma.

Daí essa primeira geração de modernistas eleger os indígenas, os africanos, os homens e mulheres negros como objetos e temas de suas criações. Tarsila, por exemplo, no ateliê de Lèger, vai pintar A Negra (1923), procurando as cores caipiras que ela acredita representar esse Brasil original.

Nos anos 30, vemos os desdobramentos desse movimento que se iniciou nos anos 20 e que se consolida com os Manifesto da Poesia Pau-Brasil (1924) e Manifesto Antropófago (1928), ambos de Oswald de Andrade. Aparece a segunda geração de modernistas (Alfredo Volpi, Francisco Rebolo, Fúlvio Penacchi), em sua maioria imigrantes ou filhos de imigrantes – ou seja, já não são de uma classe abastada, como a primeira geração. Eles estão mais envolvidos com uma ligação da arte com a questão política: a situação das(os) trabalhadoras(es), o flagelo, a imigração etc.

E, nos anos 50, vemos o Modernismo sendo oficializado pelo Estado, como uma linguagem sua, com a criação de museus, como o Museu de Arte de São Paulo – Masp (1947) e o Museu de Arte Moderna – MAM (1948), e a realização da Bienal de São Paulo (1951), que coloca o Brasil nesse circuito das artes internacionais.

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Portal Cenpec: Para um movimento que se inspirava e buscava trazer a cultura brasileira para o centro da produção artística e cultural, houve pouca ou nenhuma participação de pessoas negras e da periferia, ou mesmo de mulheres. Como você analisa essa falta de representatividade?

Alecsandra: Essa é uma questão muito importante que precisa ser analisada segundo dois parâmetros. Um é que as(os) artistas espelham uma mentalidade do seu próprio tempo, e o outro é que nós estamos olhando para o passado com a nossa mentalidade de hoje.

De fato, as(os) artistas da Semana de Arte Moderna fazem parte de uma elite cafeeira e industrial. A gente pensa que as(os) artistas brasileiros dos anos 20 eram pobres coitados, que viviam nas periferias de Paris, mas muito pelo contrário. Elas(es) eram ricas(os) – tanto que brasileiro em Paris nessa época era sinônimo de riqueza. Muitas(os) delas(es) tiveram escravizadas(os), por exemplo. Em 1922, fazia menos de 40 anos que a escravidão fora abolida. Então ainda existe uma peja muito grande com relação às pessoas negras.

Tem uma história de que o quadro A Negra (de Tarsila do Amaral, 1923), do qual falei ali anteriormente, é uma reminiscência das histórias que contavam para Tarsila, na fazenda de Capivari. Nessas histórias, as negras amarravam pedras aos seios para que eles ficassem maiores para assim poder jogar para trás e alimentar os seus filhos enquanto trabalhavam. A Tarsila era uma mulher branca, pintora, muito rica que tinha todo o acesso à cultura europeia.

Em A Negra, a mulher tem uma folha de bananeira atrás e ela está fincada à terra. O Portinari retrata as pessoas negras com as mãos e os pés grandes, descalços, por estarem ligados ao trabalho braçal. Na pesquisa de Brecheret e Vicente do Rego Monteiro, não vemos um índio de uma etnia que existia em nosso território, é um retrato idealizado.

Então essas(es) artistas modernas(os) fazem uma representação idealizada das(os) negras(os), das(os) indígenas, buscando o primitivo segundo os parâmetros da sua ideologia, da sua perspectiva de classe social. Nessa perspectiva, a população negra é muito ligada ao telúrico, ao chão.

Audiodescrição da obra “O Lavrador de Café”, de Cândido Portinari, 1934.

As obras das(os) modernistas tiravam a questão do conflito, retratavam o conceito do homem cordial, de uma democracia racial – e que vai demorar décadas para o Brasil assumir internacionalmente que isso não existe por aqui.

Sobre a representatividade das mulheres, ainda que tivéssemos duas das principais mulheres artistas brasileiras nesse movimento, se formos buscar nele um questionamento sobre o que é ser mulher, sua condição na sociedade dentro do repertório das duas artistas, não vamos encontrar muita coisa. Essas questões, que são pautas contemporâneas nossas, não existiam na época, não eram importantes naquele momento. A partir dos anos 30, o que é o feminino aparece mais nas obras da Tarsila, quando ela começa a desenvolver a sua fase mais social, retrata no tema das costureiras.

Portal Cenpec: O que São Paulo representou para a Semana de Arte Moderna e como a cidade foi impactada por ela?

Alecsandra: Naquele momento, São Paulo está em pleno desenvolvimento. A população da cidade cresce muito em algumas décadas, e ela se mostra como um avanço. Seguindo a ideia da ruptura que os modernistas propunham, São Paulo é essa materialização do abandonar o rural, o campo, pela urbanização. Além disso, o evento é uma forma de buscar tornar São Paulo a capital cultural – que, naquela época, está centrada no Rio de Janeiro.

Vale lembrar que 1922 marca os 100 anos da Independência do Brasil. Essa é uma efeméride que poucas pessoas comentam, mas que está no horizonte da Semana. O mito também de trazer o Brasil república em São Paulo está no cerne do evento, marcando o que seria uma ruptura com o passado colonial, imperial, que é representado pela cidade carioca.

Então, o evento foi de fato centrado em São Paulo, mas com a presença de artistas de outros lugares, que convergem para a cidade. Graça Aranha e Di Cavalcanti, por exemplo, são do Rio, mas vêm para São Paulo. Vicente do Rego Monteiro, que é pernambucano, ainda que não estivesse presente na Semana, envia suas obras pra cá.

Portal Cenpec: Como trabalhar essa efeméride na escola, debatendo os mitos que a envolvem e estimulando os estudantes a terem uma visão crítica e se interessarem sobre a temática?

Alecsandra: A primeira coisa é saber direitinho sobre os fatos que envolvem a Semana de Arte Moderna, porque é um evento envolto em muitos mitos. Então passar para as(os) estudantes o que de fato aconteceu: que foi um festival de artes, que aconteceu em três dias, os antecedentes etc.

Depois, explicar os desdobramentos (como a criação dos museus) e passar para os questionamentos presentes hoje em dia. Repensar o movimento modernista é muito importante para desconstruir os mitos que foram criados em torno dele, como o de São Paulo como a locomotiva da história do Brasil ou do bandeirante que desbrava e é herói brasileiro.

Monumento às Bandeiras, 1954/Wikipedia

Se prestarmos atenção, toda a cidade de São Paulo conta uma narrativa modernista. Há muitos monumentos da cidade que foram forjados nessa época – o próprio Monumento às Bandeiras, do Victor Brecheret, no Parque do Ibirapuera, começou a ser esboçado nos anos 20, apesar de ter sido concretizado em 1954. Nos oito monumentos indígenas que existem na capital, o índio é retratado como coadjuvante, não há conflito, está sempre trabalhando para a colonização.

Podemos questionar esses monumentos? Sim! Também vale trazer, por exemplo, artistas indígenas que hoje repensam os trabalhos dos modernistas. É o caso da Moara Tupinambá, que fez um trabalho lindíssimo de releitura do quadro Operários, da Tarsila, chamado O Retorno à Piratininga, retratando os parentes dela.

Trazer essa arte da periferia, das mulheres negras, da comunidade LGBTQI+, dos povos indígenas é escutar essas vozes e dar continuidade a um processo de reflexão e de visibilidade a esses novos movimentos e expressões culturais que têm pipocado em diferentes lugares da cidade.

A partir dessas ações, pensar em novas narrativas e releituras do movimento, assim como retomar a arte colonial e acadêmica que as(os) modernistas jogaram fora. É importante conhecermos os artistas acadêmicos Arthur Timótheo da Costa, Pedro Alexandrino e outros nomes. Benedito Calixto, por exemplo, fez um trabalho importante de pesquisa sobre a cidade de São Paulo. Ele chegou a conhecer as vanguardas europeias, mas seguiu no seu estilo.

A Semana de Arte Moderna foi importante e não podemos deixar de falar dela, mas não acredito que ela é a total inovação e que as(os) artistas que não participaram não importam.

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A cidade como sala de aula: a experiência do Cursinho Popular Florestan Fernandes

A Semana de Arte Moderna era um dos temas tratados pelas(os) educadoras(es) do Cursinho Popular Florestan Fernandes durante as Aulas em Movimento, tours pela cidade de São Paulo com as(os) estudantes em que utilizavam o espaço público para tratar de alguns temas relacionados ao conteúdo estudado em sala de aula.

A professora de língua portuguesa Lara Rocha, mestranda em Letras pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP), reflete:

A Semana de Arte Moderna em si é muito controversa. Embora hoje a gente tenha essa forte crítica pela não representatividade do povo enquanto se falava de povo, não há como negar que ela estava de algum jeito subvertendo a ordem e os padrões clássicos. É só lembrar que Monteiro Lobato fez duras críticas à Semana, e hoje nós o detonamos. Eu, com certeza, não estaria naquela época do mesmo lado de Monteiro Lobato criticando o evento. Além disso, grandes autoras(es) do movimento modernista seguem sendo referência ainda hoje de muita riqueza literária, como Mário de Andrade, Manuel Bandeira.”

Lara Rocha

A seguir, Lara, que também faz parte do Cursinho, conta um pouco mais sobre o impacto e a potência dessa experiência para as(os) envolvidas(os):

Theatro Municipal de São Paulo – Wikipédia, a enciclopédia livre
Theatro Municipal de São Paulo/Wikipédia

Lara Rocha: Eu escolhi trabalhar a Semana de Arte Moderna na frente do Theatro Municipal porque a relação com essa construção é muito simbólica e significativa. Apesar de oferecer espetáculos a preços populares, como óperas a cinco reais, o prédio em si é imponente, excludente, tem ares ostensivos, inibindo pessoas como os nossas(os) estudantes, a maioria negras(os), todas(os) de escola pública.

E, embora o movimento modernista tenha recebido duras críticas das alas conservadoras, ele era um movimento de elite e que olhava para o popular enquanto objeto. Inclusive usavam termos como ‘folclórico’, ‘lenda’ para falar de coisas que, na verdade, eram história e cultura das populações negras, indígenas. Ou seja, o público da Semana de Arte Moderna destoa completamente das(os) nossas(os) estudantes.

Então foi muito impactante e significativo lotar aquela escadaria com cerca de 100 alunas(os) nossas(os), que são pessoas que estão muito distantes do Theatro Municipal, e explicar que, durante a Semana de 22, a gente como um todo – nordestinas(os), pretas(os), pobres – era tema daqueles artistas, mas não estava presente. Nós já tínhamos autoras(es) negras(es) – como Machado de Assis, Lima Barreto, Maria Firmina dos Reis, Cruz e Sousa. Além disso, os povos africanos e indígenas sempre narraram suas histórias. Por que não estavam se apresentando no Municipal?

TV Brasil: Lima Barreto – De Lá Pra Cá 

É uma experiência muito massa de uma troca com a cidade mesmo, de estar o tempo todo aprendendo, em qualquer lugar, percebendo que não é só a escola que ensina. Em uma das vezes, enquanto estávamos lá, uma das pessoas em situação de rua do entorno participou do nosso debate, trocou ideia, falando que já tinha estado lá dentro do Theatro em uma Virada Cultural para dormir.

A educação popular não acaba na sala de aula, e é muito louco ver as(os) estudantes se dando conta disso, e poder discutir com elas(es) questões que não necessariamente caem no vestibular. Esse tipo de atividade é muito enriquecedor e já acontece nas escolas particulares. Nas públicas, muitas vezes elas não são feitas por falta de verba, porque o poder público diz que não tem dinheiro para levar as(os) estudantes a lugar algum.

Na sala de aula, o Modernismo é uma escola literária que consegue chamar atenção das(os) estudantes, que dialoga mais com as(os) adolescentes, porque tem essa pegada de quebrar o sistema, da poesia concreta. Temos que nos aproveitar disso, trazendo essa literatura para a sala de aula, de forma que elas(es) se interessem pelo tema. E abusando da intertextualidade, da literatura comparada, trazendo outras leituras.

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Por exemplo, o poema “Irene do Céu”, do livro Libertinagem (1930), de Manuel Bandeira, e o texto “O que não dizia o poeminha do Manuel”, de Marcio Barbosa em Cadernos Negros 15 (1992). Esse último é um texto recente, que faz uma releitura e vai colocar a ‘Irene preta, Irene boa’ em outro lugar.

Seja fora da escola ou na sala de aula, ao fazer essas atividades, nós podemos explicar que é possível estudar esse evento e repensar a literatura e as artes de outro jeito. Mostrar que podemos sim ocupar esses espaços, e como isso já tem acontecido nos últimos tempos – como quando o rapper Emicida lotou o Theatro Municipal de pessoas negras com o lançamento do seu álbum AmarElo, em 2019.

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