A narrativa oral como arte do encontro e do diálogo

-

A narrativa oral como arte do encontro e do diálogo

Em artigo, pesquisadora da tradição oral relata papel da contação de estórias na formação de professores.

Por Fabiana Rubira*

Professora universitária e pesquisadora Fabiana Rubira.
Professora universitária e pesquisadora Fabiana Rubira.

Um tempo fora do tempo. Um lugar sobre e além do tempo do H das horas que nos devoram. Um momento de liberdade ao perambularmos pela Terra dos Encantados. Um descanso à alma desses vagamundos, para que possam se refrescar na fonte das águas ancestrais da memória, sentando-se à sombra de uma frondosa e acolhedora árvore que ali está desde sempre.

Aprendi, lendo e ouvindo Guimarães Rosa, que somos seres feitos de histórias e estórias. Os fios dos fatos vividos se entrelaçam aos fios dos sonhos que sonhamos de olhos fechados e aos que sonhamos de olhos bem abertos, nesses momentos poéticos, nos quais ouvimos e contamos estórias maravilhosas sabidas de cor e que, por isso mesmo, calam a mente inquisidora, fazendo uma conexão direta com nosso coração. “As palavras que saem da boca tocam as orelhas. As palavras que saem do coração tocam o coração”, este provérbio africano, dito pelo griot Hassane Kouyaté, ressignificou esse saber de cor: algo que aprendemos e sabemos de cor-ação.

Foi numa experiência, como professora recém-contratada num curso de Pedagogia, que toda teoria que eu havia pesquisado em meu mestrado, sobre o poder de ensinamento das estórias e seu potencial humanizador, ganhou corpo, cores e novos sentidos.

Não estava conseguindo trabalhar com um grupo de 60 mulheres, que estavam chateadas com algumas resoluções administrativas da faculdade. Três semanas haviam se passado; mas nem todos os argumentos lógicos utilizados conseguiam demovê-las da atitude de não assistir às aulas.

Foi quando decidi, sherazademente, oferecer-lhes, sem nenhuma cobrança pedagógica, uma noite de estórias. No início, apenas duas alunas me ouviam; porém, depois de uma hora, percebi que a maioria delas estava sentada, de olhos vidrados em mim. Calei-me e uma delas disse: “Não temos nada contra você. Você até parece legal, mas…” Então, o canal do diálogo se estabeleceu entre nós… Barreiras que pareciam intransponíveis foram franqueadas pela poesia da arte de narrar estórias.

Jogo de tabuleiro astronômico. Livro dos jogos Iluminura de Alfonso X, o sábio (séc. XIII)

De volta à Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, iniciei uma nova jornada investigativa com essa arte milenar no Laboratório Experimental de Arte-Educação & Cultura (Lab_Arte). Não para capacitar professores da Educação Infantil como contadores de estórias no sentido formal e tecnicista. Queria contar-lhes estórias. Despertar neles o desejo de compartilhar histórias e estórias, criando assim um espaço de partilha de saberes ancestrais, que dispensava artifícios como fantasias, fantoches e outros. Éramos só nós, sentados em torno da luz de um candeeiro, com nossa boca e ouvidos generosos disponíveis para contar e ouvir narrativas da tradição oral. Qualquer uma? Não! Aquela que tocou meu coração. Aquela que me acompanha desde a infância. A minha favorita e que vou oferecer como um presente precioso a quem estiver comigo.

Nessa roda, contando, cantando, brincando, o tempo de Cronos, deus que devora seus próprios filhos, era suspenso. Saíamos de lá com uma grata e feliz sensação de estarmos verdadeiramente descansados, nutridos, de termos feito algo realmente importante pela nossa formação, não apenas docente, mas humana.

A arte de narrar estórias é a arte do encontro e do diálogo. Nunca saberei com exatidão o que ensinei nesses meus encontros com os educadores. No entanto, os sorrisos e abraços sinceros que recebo dos que me reencontram pelas ruas do Mundo dos Desencantados reafirmam a esperança dos que conhecem os caminhos que levam àquele lugar, fora do tempo, onde podemos nos lembrar de quem somos, recuperar nossas forças e seguir viagem. Porque a viagem continua…

* Professora no Ensino Superior, contadora de estórias e pesquisadora da tradição oral. Graduada em Letras, mestra e doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (USP), defendeu a tese “Dançando com o Minotauro nas noites: narração de estórias e formação humana” (São Paulo: USP, 2015). Foi coordenadora e idealizadora do Núcleo de Narração de Estórias do Lab_Arte da Faculdade de Educação da USP, onde atua como professora e pesquisadora convidada.


Veja também


Arte: Helder Lima