Alfabetizar letrando é o caminho do meio

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Alfabetizar letrando é o caminho do meio

#CENPECexplica: Alfabetização em foco
Sônia Madi discute a proposta da PNA e defende a importância de articular o ensino sistemático das relações entre letras e sons às práticas sociais de leitura, escrita e oralidade
CENPEC Educação Explica.

Em continuidade ao debate sobre políticas, teorias e práticas acerca do ensino e da aprendizagem da leitura e da escrita, a fim de trazer luzes às propostas da Política Nacional de Alfabetização (PNA), do Ministério da Educação (MEC), o CENPEC Educação conversa com a especialista Sônia Madi.

Sônia Madi
Foto: Acervo CENPEC

Mestre em Didática pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FE-USP), onde apresentou a pesquisa “O processo reflexivo do professor sobre os jogos interacionais em situação de narrativa na pré-escola”, Sônia Madi foi professora, coordenadora e diretora em escolas da rede municipal de ensino de São Paulo (SP). Idealizou e coordenou o programa Escrevendo o Futuro/Olimpíada de Língua Portuguesa (CENPEC/Itaú Social//MEC). Recentemente, coordenou os cursos dos projetos Alfaletrar e Letra Viva Alfabetiza (CENPEC).

Sônia defende a importância das práticas sociais de leitura, escrita e oralidade para que as crianças ingressem de forma ativa no mundo letrado. Nesse processo, a especialista defende também o ensino sistemático das relações entre grafemas (letras) e sons (fonemas) e do sistema alfabético.

A própria BNCC reconhece a necessidade de atividades sistemáticas de alfabetização durante esse período. No entanto, fica claro na Base que esse trabalho deve estar aliado ao letramento, ou seja, à participação ativa e cotidiana das crianças em práticas de leitura e escrita. Esse é um caminho do meio, chamado por Magda Soares de alfabetizar letrando, já adotado por muitos educadores, escolas e redes, com sucesso.”

Sônia Madi

Leia mais na entrevista a seguir.


Portal CENPEC: Como já abordado em entrevistas já publicadas nesta série, Alfabetização em Foco, a cartilha com orientações para implementação da Política Nacional de Alfabetização (PNA), divulgada em 15.8, adota a expressão “literacia”, vocábulo empregado em Portugal, em lugar de “letramento”.
Em sua visão, que efeitos para o ensino e a aprendizagem da leitura e da escrita essa substituição implica?

Sônia Madi: A PNA define literacia como “ensino e aprendizagem das habilidades de leitura de de escrita” (MEC, 2019, p. 18). No entanto, o conceito de letramento é mais amplo, pois envolve a convivência do aprendiz com as práticas sociais em torno da leitura e da escrita. 

Excluir a palavra “letramento” no documento é, de certa forma, negar uma longa história de estudos, pesquisas e práticas em torno do ensino-aprendizagem de leitura e da escrita desde a década de 1980, com as pesquisas de Emilia Ferreiro e Ana Teberosky sobre como a criança pré-alfabetizada reflete sobre o sistema alfabético e os estudos de Magda Soares, Mary Kato, Angela Kleiman, Leda Tfouni e outros sobre o papel das práticas sociais de leitura e escrita (letramento) na aprendizagem.

Participar ativamente na cultura letrada traz sentido ao estudo do sistema de escrita e remonta ao papel primordial da educação, que é formar cidadãos capazes de compreender e atuar em sua realidade de forma consciente e crítica. 

Portal CENPEC: Outro conceito apresentado na PNA é o de “literacia familiar”:

“O êxito das crianças na aprendizagem da leitura e da escrita está fortemente vinculado ao ambiente familiar e às práticas e experiências relacionadas à linguagem, à leitura e à escrita que elas vivenciam com seus pais, familiares ou cuidadores, mesmo antes do ingresso no ensino formal. Esse conjunto de práticas e experiências recebe o nome de literacia familiar (WASIK, 2004; SÉNÉCHAL, 2008)”

MEC (2019, p. 23).

Quais são as possíveis consequências desse enfoque numa política de alfabetização?

SM: Como atribuir às famílias, principalmente às que têm menor nível socioeconômico, a responsabilidade de inserir as crianças no mundo da leitura e da escrita, como sugerido no documento, se as práticas da cultura letrada ainda não foram dominadas plenamente por grande parte da população brasileira? 

O próprio documento, ao contextualizar a política de alfabetização, refere-se aos dados Indicador de Alfabetismo Funcional (Inaf), do Instituto Paulo Montenegro, que aponta uma porcentagem considerável de pessoas entre 15 e 64 anos que ainda tem grandes dificuldades de leitura e escrita.

Segundo a publicação do MEC:

“Implementar programas e ações de literacia familiar como medidas preventivas do insucesso escolar tem sido uma estratégia empregada em diversos países. Esses programas e ações, em geral, objetivam encorajar pais ou cuidadores a desempenharem um papel mais ativo no desenvolvimento da literacia das crianças em idade pré-escolar.
Os principais beneficiários são as famílias de nível socioeconômico mais baixo, cujas crianças se encontram em desvantagem com relação às demais (TUNMER, 2013; SÉNÉCHAL, 2008). Até mesmo pais ou cuidadores não alfabetizados podem realizar práticas simples e eficazes de literacia familiar quando bem orientados  (CARPENTIERI et al., 2011)”

MEC (2019, p. 23).

Essas considerações parecem muito distantes da realidade da maioria da população, válidas apenas da perspectiva de uma classe média e alta, já inseridas na cultura letrada.

Para grande parte das crianças e dos jovens brasileiros, no entanto, o acesso às práticas sociais de leitura e escrita se dá por meio da escola. Por isso, as políticas públicas de alfabetização devem focar no trabalho realizado em sala de aula, fortalecendo a formação dos professores e gestores. 

Portal CENPEC: Leitura como decodificação ou como prática social: é possível apontar uma melhor abordagem para se alfabetizar?

SM: O documento da PNA considera habilidades de leitura e escrita como a capacidade de “decodificar e codificar qualquer palavra” da língua. Em seguida, a cartilha explica que “ler e escrever com autonomia […] é conhecer o código alfabético e as correspondências grafofonêmicas a ponto de conseguir ler e escrever apropriadamente, sem a intervenção, antes necessária, de um mediador” (MEC, 2019, p. 19).

Assim, a publicação parece distinguir a leitura – que identifica como decodificação – da compreensão de textos, como se observa neste trecho: “É o objetivo final, que depende primeiro da aprendizagem da decodificação e, posteriormente, da identificação automática de palavras e da fluência em leitura oral” (MEC, 2019, p. 19).

No entanto, a história da alfabetização nos ensina que métodos focados no ensino mecânico das relações entre sons e letras/sílabas/palavras de forma isolada do sentido e do contexto em que esses se encontram, ou mesmo de centrados em textos sem sentido, como “Vovó viu a uva” e “O bebê baba”, não são eficientes para formar leitores proficientes. 

Portal CENPEC: O projeto Letra Viva Alfabetiza (CENPEC), inspirado na metodologia desenvolvida por Magda Soares em Lagoa Santa (MG), aborda a importância da consciência fonológica na alfabetização. Há pontos em comum entre essa abordagem à proposta do método fônico, apresentado na PNA?

SM: É papel da escola ajudar as crianças a refletir sobre o sistema de escrita alfabética e perceber que a escrita é a representação gráfica da fala. É o que costumamos chamar de consciência fonológica. De forma progressiva e sistemática, com a mediação dos professores, elas vão percebendo como essa representação é feita no sistema alfabético. 

Há um longo caminho a percorrer dentro da consciência fonológica para que as crianças compreendam plenamente as regras do sistema alfabético. A primeira aprendizagem nesse caminho é a de que a escrita representa graficamente os sons da fala. Em seguida, aprendem que as palavras são compostas por partes, as sílabas. Depois, compreendem que essas partes podem ocupar diferentes posições dentro da palavra (no início, meio e fim). 

Nesse processo, a consciência fonêmica, ou seja, a percepção de que as sílabas também são compostas por partes, os fonemas, é a última etapa desse caminho. A apreensão dos fonemas é abstrata, pois dependem das vogais para formar sonoridade (por isso, o termo “consoante”, que significa “soar com”).

Assim, se queremos de fato que as crianças compreendam as regras do sistema de escrita alfabética, não é produtivo iniciar por essa etapa, como propõe o método fônico. Isso é ainda mais complicado quando trabalhamos com crianças que têm pouca experiência em práticas sociais de leitura e escrita, como é o caso de grande parte da população brasileira.

Portal CENPEC: Qual seria o melhor caminho para alfabetizar crianças, na sua opinião?

SM: O documento da PNA destaca que “a compreensão do princípio alfabético (ou seja, de que as letras representam os sons da fala) depende do ensino explícito e sistemático das relações grafema-fonema” (MEC, 2019, p. 18).

De fato, muitas pesquisas e trabalhos apontam a necessidade do ensino-aprendizagem explícito e sistemático das propriedades do sistema de escrita alfabética na aprendizagem inicial da escrita. A própria BNCC reconhece a necessidade de atividades sistemáticas de alfabetização durante esse período. No entanto, fica claro na Base que esse trabalho deve estar aliado ao letramento, ou seja, à participação ativa e cotidiana das crianças em práticas de leitura e escrita. Esse é um caminho do meio, chamado por Magda Soares de alfabetizar letrando, já adotado por muitos educadores, escolas e redes, com sucesso. 

A formação continuada de professores focada na alfabetização que o CENPEC desenvolve há décadas caminha nesse sentido: combinando atividades que explicitem as relações gráficas e sonoras (grafemas e fonemas), de forma sistemática e progressiva, às práticas de letramento que dialoguem com o repertório cultural dos aprendizes. Ou seja, não basta propor a leitura e a escrita, é importante que estas façam sentido e despertem o interesse dos estudantes por essa aprendizagem. Para isso, o papel do professor é fundamental, como mediador entre a cultura escolar, letrada, e as culturas de origem dos estudantes.

No caso das crianças, a imersão na cultura letrada se dá principalmente por meio das brincadeiras e dos textos de tradição oral. Isso é especialmente importante quando se trata de crianças com pouco acesso à cultura letrada, mas oriundas de um entorno cultural rico em oralidade. Esse é o trabalho de arar o terreno, prepará-lo para que a aprendizagem seja significativa, prazerosa e consistente.

Por meio desses textos de tradição oral (quadrinhas, adivinhas, trava-línguas, parlendas…), é possível fazer um trabalho com os sons da língua, para que as crianças adquiram consciência fonológica e avancem na aprendizagem da leitura e da escrita.


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