- José Alves
As ameaças aos direitos de crianças e adolescentes hoje – e como enfrentá-las
Por Stephanie Kim Abe
Apesar de ter completado 30 anos este mês, o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069, de 13 de julho de 1990) é considerado, para alguns, jovem.
“Temos códigos e leis muito mais antigas no Brasil. 30 anos de história em um país é pouco tempo para conseguir fazer grandes mudanças”, diz Marta Volpi, assessora de advocacy e políticas públicas da Fundação Abrinq.
Mas isso não significa que não avançamos desde a sua aprovação. Pelo contrário. Ao longo de todo o mês de julho, o CENPEC Educação publicou matérias semanais que focaram diferentes aspectos referentes à essa importante legislação, que foi determinante para a melhoria da qualidade de vida e da garantia de direitos das crianças e adolescentes.
Especial CENPEC Explica: 30 anos do ECA
I. Conheça a história e a importância do Estatuto da Criança e do Adolescente
II. Entenda o papel da escola na rede de proteção e crianças e adolescentes
III. Por que devemos garantir os direitos dos jovens em conflito com a lei
IV. Como assegurar o direito à participação e o desenvolvimento integral de crianças e adolescentes
Entre esses avanços, estão o próprio princípio da proteção integral da criança e do adolescente trazido pelo ECA, a quase universalização do acesso ao Ensino Fundamental, a redução do trabalho infantil, a criação do Sistema Nacional de Medidas Socioeducativas (Sinase), a aprovação do Marco Legal da Primeira Infância, as políticas de transferência de renda etc.
Para que continuemos avançando na defesa da infância e da adolescência, é preciso olhar para o que tem sido discutido nos diferentes poderes de forma a entender o que vem no sentido de fortalecer o ECA e o que está na contramão dessa legislação.
Ataques no campo político
Os desafios hoje estão muito mais focados no contexto político do que normativo, porque o ECA já é um avanço. Há muitos ataques políticos que ameaçam essa garantia de direitos, como a redução da maioridade penal e a aprovação pelo Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas da regulamentação do acolhimento de adolescentes em comunidades terapêuticas
Deila Martins, conselheira do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) e coordenadora executiva do Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares (GAJOP)
As comunidades terapêuticas são instituições de acolhimento voluntário a dependentes químicos. Deila Martins é crítica e contrária à medida, já que, de acordo com ela, há denúncias de violação da dignidade do adolescente que está naquele espaço, afastamento da convivência familiar e comunitária, imposição de religiões, situações de maus tratos e trabalho penoso.
Uma reportagem da Agência Pública veiculada esta semana revela que há comunidades terapêuticas financiadas pelo Governo Federal denunciadas por violações de direitos humanos. De acordo com o veículo, quase 70% das verbas federais para comunidades terapêuticas vão para entidades de orientação cristã.
“A única instância que deve formular política da criança é o Conanda, e ele é contrário a esse tipo de situação”, diz a conselheira do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) e coordenadora executiva do Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares (GAJOP).
Ameaças ao Conanda
O próprio Conanda é exemplo das ameaças políticas das quais Deila Martins fala. Criado em 1991 (Lei no 8242/1991), ele é o órgão máximo de formulação e controle das políticas públicas de proteção integral à criança e ao adolescente.
Em 2019, o Conanda sofreu diversos ataques do Governo Federal, que buscaram impedir a participação dos membros da sociedade civil e o funcionamento pleno do órgão. Já em janeiro houve a extinção de cargos técnicos e o contingenciamento de recursos. O processo de inviabilização continuou com o adiamento de assembleias e reuniões, o cancelamento da XI Conferência Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente e a destituição por decreto de conselheitos eleitos democraticamente.
“Hoje, o Conanda segue funcionando por força de uma liminar, porque a sociedade civil entrou com uma ação na Justiça que conseguiu derrubar esse decreto. Mas essa liminar só garante o direito de completarmos o exercício do mandato para o qual fomos eleitos – ou seja, quando acabar após esse ano, há a possibilidade jurídica do decreto do governo passar a valer”, explica Deila.
Conselhos de direitos das crianças
Para Ana Claudia Cifali, doutora em Ciências Criminais e advogada do programa Prioridade Absoluta do Instituto Alana, é preciso também garantir o funcionamento e fortalecer a atuação dos conselhos municipais e estaduais de direitos das crianças e adolescentes, criados pelo ECA.
Art. 88 – São diretrizes da política de atendimento:
I – municipalização do atendimento;
II – criação de conselhos municipais, estaduais e nacional dos direitos da criança e do adolescente, órgãos deliberativos e controladores das ações em todos os níveis, assegurada a participação popular paritária por meio de organizações representativas, segundo leis federal, estaduais e municipais;
III – criação e manutenção de programas específicos, observada a descentralização político-administrativa;
IV – manutenção de fundos nacional, estaduais e municipais vinculados aos respectivos conselhos dos direitos da criança e do adolescente;
(…)
Lei 8.069 de 13 de julho de 1990 – ECA
Os Conselhos permitem a participação e o diálogo entre os governos e a sociedade civil para pensar as prioridades e formular políticas para cada município ou estado. Eles detêm essa responsabilidade de fazer um diagnóstico e decidir onde alocar os recursos de acordo com as suas necessidades – que podem ser muito diferentes em cada localidade
Ana Claudia Cifali, doutora em Ciências Criminais e advogada do programa Prioridade Absoluta do Instituto Alana
Ela também aponta como outra ameaça importante no campo político a Proposta de Emenda à Constituição 187/2019, mais conhecida como PEC dos Fundos, que possibilita a extinção de diversos fundos – entre eles o Fundo Nacional da Criança e do Adolescente, importante fonte de recursos para as políticas dessa área.
Veja aqui o Especial: 30 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente no Prioridade Absoluta
Monitorar o Congresso Nacional para avançar
Olhar para os projetos de lei que estão em tramitação é importante, já que eles refletem muito da percepção da sociedade sobre determinados temas e o que está em discussão no país no momento.
A Fundação Abrinq realiza um importante trabalho de incidência política e mobilização nesse sentido, que se reflete no Caderno Legislativo da Criança e do Adolescente.
Lançado anualmente desde 2014, ele traz um panorama das proposições legislativas que envolvem os direitos de crianças e adolescentes na Câmara dos Deputados e no Senado, com o objetivo de trazer subsídios e informações para parlamentares e sociedade brasileira sobre os temas.
“Hoje, nossa base de dados tem 5.712 proposições legislativas, mapeadas desde quando começamos esse trabalho. É um número alto, que chama bastante atenção. Um dos projetos antigos de lei em tramitação até agora data de 1999, e um dos mais antigos, que foi arquivado há pouco tempo, data de 1993. Nessa época, não havia dado tempo ainda de implementar o ECA para questionar o modelo”, explica a assessora da Fundação Abrinq Marta Volpi.
Acesse os dados do Observatório da Criança e do Adolescente, da Fundação Abrinq
Considerando que o ECA é uma das leis mais avançadas no mundo sobre o tema, o que essa grande quantidade de leis mostra não é tanto a falta de amparo legal, mas sim de entender que há outros mecanismos que precisam acompanhar esses textos legais para que eles saiam de fato do papel.
A lei vai se defasando conforme o tempo passa e, para continuar acompanhando a sociedade, precisa de aprimoramentos. A sensação que temos, porém, é que toda vez que não conseguimos efetivar um direito, buscamos a solução em leis mais duras, concretas, que obrigue os responsáveis ou o Estado a entregar esse direito. Ainda não pensamos muito na política pública como um caminho para a efetivação de direitos
Marta Volpi, assessora de advocacy e políticas públicas da Fundação Abrinq.
Ameaças e incoerências legislativas
No sistema do Observatório da Criança e do Adolescente da Fundação Abrinq, os projetos de lei (PLs) são classificados em três eixos (proteção, educação e saúde), e subdivididos em outras categorias. Olhando apenas para o ano de 2019, temos 1.050 PLs que abordam os direitos da infância e adolescência.
A ideia é monitorar não apenas as proposições legislativas que falam diretamente sobre os direitos das crianças e adolescentes, mas que afetam esses atores indiretamente. É o caso, por exemplo, das propostas sobre o Estatuto do Desarmamento (Lei nº 10.826/2003 e Decreto nº 5.123/2004).
Foram identificados 25 projetos de lei que buscam dificultar o acesso a armas de fogo e 36 que propõem, em sua maioria, a ampliação das categorias profissionais que podem ter posse ou porte de armas.
“Quando você olha o dado de mortes por arma de fogo entre crianças e adolescentes, que corresponde a 78% dos homicídios, você entende qual é a relação que se tem em facilitar o acesso às armas e a prospecção de que isso aumentará a violência contra criança e adolescente também”, diz Marta.
Os dados de homicídio entre crianças e adolescentes também mostram que quatro em cada cinco vítimas são negras – o que evidencia o racismo e coloca a população negra mais em risco do que a população branca.
Nesse leque de proposições legislativas, também é possível achar projetos de lei que tratam de questões pontuais, sem olhar para o quadro todo, ou que não são da alçada do Congresso Nacional.
É o caso, por exemplo, de algumas das propostas de educação. De acordo com Marta, há 1.493 proposições referentes à temática ativas (ou seja, em tramitação). Elas falam sobre qualidade da educação, financiamento, currículo escolar, violência na escola etc.
“A maioria dos projetos de lei de financiamento busca permitir a quitação de débitos educacionais ou o uso do FGTS para pagar mensalidade. São poucas as que buscam um financiamento para Educação Básica geral, como o Fundeb. No caso do currículo, chama atenção o grande número de propostas que querem incluir na grade obrigatória alguma disciplina relacionada ao direito ou à cidadania (como educação moral e cívica). Sendo que a maioria das escolas mal tem uma quadra esportiva – e a Educação Física já é uma disciplina obrigatória -, e que a atribuição de base curricular é do MEC, e não do poder legislativo”, explica Marta.
Saiba mais sobre a importância do Fundeb no especial CENPEC Explica: Fundeb na prática
Falta de um olhar para a prevenção
O que todos esses exemplos citados mostram é que há uma tentativa de focar só nas respostas, e desconsiderar a prevenção.
“Assim como a questão da violência, a convivência familiar também é trabalhada muito em um viés de resposta para algo que já aconteceu. Tenta-se arranjar uma família para crianças que estão em acolhimento em vez de olhar para o trabalho que podia ser feito com essas famílias para que as crianças nem precisassem desse serviço. O debate talvez pudesse ser mais amplo, no sentido de pensar maneiras de se prevenir que esses direitos fossem violados e de que maneira – se por lei ou não – se garante isso”, diz Marta.
Para Ana Claudia Cifali, do Instituto Alana, a prevenção é um dos pilares previstos no ECA que torna essa lei tão inovadora. Para que ela seja efetivada, ele prevê a criação de instâncias intersetoriais e a articulação de toda essa rede.
Para Ana, essas políticas de prevenção são ainda mais importantes nos territórios vulneráveis, periféricos, tanto para a prevenção como para evitar a revitimização desse público. De acordo com dados do Cenário da Infância e Adolescência no Brasil 2020, há 18,8 milhões de crianças e adolescentes de 0 a 14 anos vivendo nas classes de rendimentos mais baixos.
“É urgente o desenvolvimento de políticas públicas nesses territórios – onde se encontram crianças e adolescentes que sofrem múltiplas violências -, que diminuam as desigualdades, para que tanto eles quanto suas famílias possam se desenvolver em um ambiente saudável”, explica a advogada.
Participar para garantir financiamento prioritário
Para que isso aconteça, é preciso reforçar o princípio da prioridade absoluta, e garantir que governos e entes públicos reconheçam e se submetam a ele.
Art. 4º – É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.
Parágrafo único. A garantia de prioridade compreende:
a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias;
b) precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública;
c) preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas;
d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude.
Lei 8.069 de 13 de julho de 1990 – ECA
Para Deila Martins, a mobilização social é o primeiro passo para a garantia de direitos: “Não conheço nada na nossa história de direitos que não tenha sido alcançado a partir da mobilização da sociedade”.
Ela também aponta para a necessidade de desmistificar falsas impressões do ECA – como a ideia de que a lei só dá direitos e não deveres e de que só protege jovens em conflito com a lei.
O segundo passo é garantir investimento público prioritário para a efetivação das políticas voltadas para a infância e adolescência.
“No caso das comunidades terapêuticas, por exemplo, o ECA aponta que a criança ou o adolescente que faça uso problemático de álcool e outras drogas seja tratado dentro do Sistema de Garantia de Direitos, através de políticas públicas efetivas. Isso requer investimento, orçamento e descentralização político-administrativa. Ou seja, os municípios precisam receber esse recurso para investir nessa rede de atendimento aos adolescentes”, explica a conselheira do Conanda.
Ao analisar o envolvimento da sociedade nos debates nas casas legislativas, o que se vê é um reflexo muito significativo no resultado final da matéria legislada.
“O projeto de lei acaba atendendo melhor determinada demanda quando há uma ampla discussão. Isso porque essas pessoas que trabalham com o público-alvo trazem aquilo que, na prática, acontece, faz falta ou precisa ser enfrentado na ponta. A qualidade da lei que é produzida com a participação social é sempre melhor”, defende Marta.
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