Conheça como diferentes iniciativas na área da Saúde, Educação e Cultura têm se inspirado nos círculos de cultura de Paulo Freire para valorizar saberes, possibilitar diálogos e garantir direitos
Banner: arte de Karine Oliveira sobre guache do artista plástico pernambucano Francisco Brennad sobre o círculo de cultura, produzido para o Programa Nacional de Alfabetização
Por Stephanie Kim Abe
Na década de 1960, época em que estava à frente do projeto de Educação de Jovens e Adultos do Movimento de Cultura Popular do Recife (MCP), o educador Paulo Freire lançou os chamados “círculos de cultura”, com o intuito de superar a “passividade” da escola.
Esses espaços de debates em grupo tinham como elementos:
“Em lugar de professor, com tradições fortemente ‘doadoras’, o Coordenador de Debates. Em lugar de aula discursiva, o diálogo. Em lugar de aluno, com tradições passivas, o participante de grupo. Em lugar dos ‘pontos’ e de programas alienados, programação compacta, ‘reduzida’ e ‘codificada’ em unidades de aprendizado.”
FREIRE, P. Educação com prática da liberdade. 16. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.
Os círculos de cultura fizeram e continuam fazendo muito sucesso e são uma das bases da educação popular não só pela experiência bem sucedida nos trabalhos de alfabetização de jovens e adultos realizados por Freire, mas pelos princípios nos quais se ancoram: a dialogicidade, a valorização dos diferentes saberes, o desenvolvimento da consciência crítica e da autonomia do(a) educando(a).
Justamente por isso, o círculo de cultura é uma metodologia que tem sido aplicada em diversos contextos no âmbito da educação popular, que tem como premissa esses mesmos princípios.
Círculos de cultura na Saúde
Em Fortaleza (CE), de 2005 a 2013, a Secretaria Municipal de Saúde realizou o projeto Cirandas da Vida, que trazia a perspectiva da educação popular para a área da Saúde, baseando-se na humanização da prática do cuidado, valorizando as medicinas populares e construindo um olhar para as necessidades e demandas das comunidades periféricas da cidade, por meio dos círculos de cultura.
Vera Lúcia de Azevedo Dantas, educadora popular, médica da Secretaria Municipal de Saúde de Fortaleza (CE) e membro da coordenação do Grupo de Trabalho Educação Popular e Saúde da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), explica:
As pessoas traziam as suas questões a partir de diversas linguagens: as crianças por meio de cantigas de roda e brincadeiras; os jovens, a partir do hip hop ou teatro; e os adultos pela reconstituição da memória. Assim, íamos localizando e problematizando em diálogo com as diferentes gerações de cada comunidade periférica as estratégias de superação, a partir de sínteses criativas. Os trabalhadores e gestores da Saúde vinham para escutar e articular em conjunto.”
Vera Lúcia de Azevedo Dantas
Na Política Nacional de Educação Popular em Saúde, instituída pela Portaria 2.761/2013 no âmbito do Sistema Único de Saúde (PNEPS-SUS), a influência de Paulo Freire é evidente, à medida que propõe, em seu art. 2º: “uma prática político-pedagógica que perpassa as ações voltadas para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a partir do diálogo entre a diversidade de saberes, valorizando os saberes populares, a ancestralidade, o incentivo à produção individual e coletiva de conhecimentos e a inserção destes no SUS.” Já o artigo seguinte apresenta os princípios dessa política:
Art. 3º A PNEPS-SUS é orientada pelos seguintes princípios: I – diálogo; II – amorosidade; III – problematização; IV – construção compartilhada do conhecimento; V – emancipação; e VI – compromisso com a construção do projeto democrático e popular. (Política Nacional de Educação Popular em Saúde – Portaria 2.761/2013)
Ainda que essa política tenha sido colocada em segundo plano nos últimos governos, Vera aponta que há muitas iniciativas na área da Saúde que se inspiram nesses princípios, principalmente nos bairros periféricos. “A terapia comunitária é um movimento que está presente em muitos veículos de Saúde e que começa com um espaço de escuta da experiência das pessoas, se assemelhando aos círculos de cultura”, explica.
Em Fortaleza, no bairro de Bom Jardim, práticas populares como massoterapia e plantas medicinais foram incorporadas às desenvolvidas pelo Centro de Atendimento Psicossocial (Caps) do bairro. No Conjunto Palmeiras, foi construída uma oca comunitária, ao lado da Unidade Básica de Saúde (UBS), que também incorpora práticas dos saberes dos povos originários da região ao atendimento da comunidade.
Para a educadora, ainda que as experiências precisem avançar na questão da problematização, há muita potência na forma como elas têm se inspirado e adaptado suas ações às práticas realizadas por Freire:
A problematização, como foi proposta por Freire, é o que nos ajuda a dar o salto para desnaturalizar o que parece naturalizado, para gerar consciência crítica e, a partir disso, produzir soluções viáveis e fazer um movimento de superação. Mas há muitas possibilidades a serem exploradas de incluir os saberes de experiência feito que estão nos territórios e que, no geral, são invisibilizados, negligenciados, estigmatizados ou excluídos.”
Essas possibilidades não estão apenas no campo da Saúde. Confira a seguir outras três experiências que aplicam ou adaptam os círculos de cultura nas áreas de Educação e Cultura.
Acompanhe o nosso Especial #100AnosPauloFreire, que traz reportagens mensais sobre o patrono da educação brasileira ao longo deste ano, em homenagem ao seu centenário e em reconhecimento ao seu importante papel no pensamento e nas práticas educacionais brasileiras.
Círculos de cultura freirianos da #SAM2021
Entre a programação nacional da Semana de Ação Mundial (SAM) 2021, estão previstos dois círculos de cultura freirianos. O primeiro aconteceu ontem (dia 16/6), e reuniu educadores(as) do Brasil para contar e compartilhar suas práticas nesse momento.
Hoje, 17/6, às 18h30, acontece o segundo círculo de cultura freiriano, que deve reunir estudantes do Brasil. O encontro acontece virtualmente pelo canal do YouTube da Campanha Nacional pelo Direito à Educação.
Nem só de conteúdo fixo com foco no vestibular vive um cursinho popular. No Cursinho Popular EACH USP, os(as) educadores(as) buscam sempre dialogar com a vivência dos(as) educandos(as) – a sua maioria habitantes da zona leste de São Paulo (SP).
O “aulão”, por exemplo, que acontece duas vezes por ano, é um momento específico dedicado a ouvi-los(as), como explica Paulo Pantolfi, professor de Filosofia e Sociologia do cursinho:
Nós abrimos o espaço para os alunos trazerem as suas questões e o que eles estão vendo acontecer no seu cotidiano. ‘O que é o voto distrital e o que é o coeficiente eleitoral?’ são algumas das perguntas que surgem, que eles veem nos jornais. Nós não chamamos de círculos de cultura, mas a prática se aproxima de um, porque permite que eles se reconheçam como parte da sociedade em que estão inseridos e tragam temas norteadores para as aulas.”
Paulo Pantolfi
Mais do que isso, Paulo acredita que os pensamentos de Paulo Freire dão base à própria existência do cursinho popular, já que este se difere de um cursinho tradicional – que tem uma visão de mercado sobre a educação – ao realizar um trabalho de cidadania e uma prática emancipatória:
No cursinho comercial, o estudante para passar no vestibular e, uma vez que consegue, o trabalho se encerra ali. Nós enxergamos o cursinho popular dentro de um contexto político, no qual os alunos querem entrar em uma universidade, mas existe uma barreira que os impedem de atingir esse objetivo. São pessoas que estão buscando seus direitos e, nesse sentido, estamos em um horizonte de transformação mais coletiva, de fazê-las reconhecer o seu direito à educação e não de busca individual.”
Paulo Pantolfi
Frente de Resistência Samba do Congo
Com o intuito de difundir, valorizar e incentivar a arte popular por meio da composição musical, a Frente de Resistência Samba do Congo realiza diversas atividades culturais, como oficinas de cavaquinho, violão, percussão e samba rock, e encontro de escritores periféricos, e tem parcerias com diversos coletivos culturais da capital paulista.
Mas é no Encontro de Compositores que esse movimento cultural mantém as suas raízes desde a sua criação, em abril de 2011, no bairro Morro Grande, zona norte da capital paulista. O evento é uma roda aberta de trocas, onde cada pessoa tem espaço para mostrar a sua obra, a sua composição, o seu pensamento, o seu processo de criação do samba de raiz. Ou para simplesmente assistir, ouvir, bater palma.
Como explica Fernando Ripol, fundador do coletivo:
Nosso círculo de cultura tem um sentido literal, por colocar as pessoas em roda, sem uma verticalidade. Isso é muito simbólico, porque tira o compositor ou escritor de um pedestal ou um lugar inatingível. Além disso, à medida que temos 10 pessoas em uma roda e, enquanto uma fala, as outras ouvem, esse círculo é muito mais um espaço de escuta que de fala. O que queremos é incentivar o fazer junto, colocar em diálogo diferentes vertentes e pessoas no mesmo ambiente, ensinar a partir da realidade de cada um e, com isso, trazer possibilidades de práticas artísticas coletivas que atravessam muros de impossibilidades.”
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