Conheça a história e a importância do Estatuto da Criança e do Adolescente

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Conheça a história e a importância do Estatuto da Criança e do Adolescente

Em série especial de comemoração aos 30 anos do ECA, o CENPEC Educação traz fatos, olhares e dados para entender a importância dessa legislação na garantia e proteção de direitos das crianças e adolescentes brasileiros

Por Stephanie Kim Abe

Uma legislação inovadora e avançada. Uma conquista dos movimentos sociais e da mobilização popular. Um marco na garantia dos direitos e na proteção de crianças e adolescentes brasileiros. Essas são algumas das características centrais da Lei 8.069, de 13 de julho de 1990 – mais conhecida como Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

Essa legislação tem como sujeitos 31,2% da população brasileira, já que há, de acordo com o último Censo demográfico do IBGE (2019), 65,5 milhões de crianças e adolescentes no Brasil. Mas por que ela é inovadora? Quais direitos ela garante? Como ela foi construída?

Para responder essas questões e evidenciar a importância dessa lei, o CENPEC Educação começa hoje (01/07) uma série especial do CENPEC Explica sobre os 30 anos do ECA. Durante todas as quartas-feiras do mês de julho, novas matérias que contextualizam, enfocam e trazem diferentes olhares e dados sobre o ECA serão publicadas para debater e informar os leitores sobre o passado, o presente e o futuro da garantia dos direitos e da proteção das crianças e adolescentes no Brasil.

Art. 3º – A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.

Lei 8.069 de 13 de julho de 1990 – ECA


Especial CENPEC Explica: 30 anos do ECA

II. Entenda o papel da escola na rede de proteção e crianças e adolescentes

III. Por que devemos garantir os direitos dos jovens em conflito com a lei

IV. Como assegurar o direito à participação e o desenvolvimento integral de crianças e adolescentes

V. As ameaças aos direitos de crianças e adolescentes hoje – e como enfrentá-las


Contexto histórico do ECA

A história do Estatuto da Criança e do Adolescente está intrinsecamente ligada ao contexto de fim da Ditadura Militar e ao processo de redemocratização do Brasil.

Diversas organizações, fundações empresariais e movimentos sociais, entre eles os de educação de origem católica, o de meninos e meninas de rua e os sindicais, se mobilizaram durante o processo da Constituinte para garantir que os direitos das crianças e dos adolescentes estivessem presentes na Carta Magna.

Eles se articularam no Fórum Nacional de Entidades Não Governamentais de Defesa dos Direitos da Criança e Adolescente (FNDCA), criado em 1988 – e foram determinantes para a inclusão do art. 227 e 228 da Constituição, aprovada em 5 de outubro de 1988.

Fotografia de Marco Antonio da Silva, mais conhecido como Markinhus, em frente a uma prateleira com brinquedos. Markinhus é educador, coordenador geral do Projeto Meninos e Meninas de Rua e representante do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua (MNMMR) no Conselho Nacional de Direitos Humanos

Uma vez criada a Constituição, esse grande movimento que pedia democracia e eleições vai continuar e buscar uma especificidade, já que esses dois artigos precisam de regulamentação. É preciso dizer o que é o direito à escola, o direito à saúde, o direito à liberdade. Como eu traduzo e coloco isso para os municípios, estados e União


Marco Antonio da Silva, mais conhecido como Markinhus, educador, coordenador geral do Projeto Meninos e Meninas de Rua e representante do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua (MNMMR) no Conselho Nacional de Direitos Humanos

Entre os episódios influentes e marcantes dessa mobilização, Markinhus destaca o Encontro Nacional de Meninos e Meninas de Rua e a Ciranda da Constituinte, um cerco ao Congresso Nacional por mais de 20 mil crianças e adolescentes, em 05 de outubro de 1985, dia em que foi votada a Emenda Criança (responsável pela inclusão dos art. 227 e 228 na Constituição). “Essa ação sensibiliza a opinião pública e a imprensa, e ganha simpatia de muitos parlamentares”, diz.

Imagem de crianças formando um cerco ao Congresso Nacional, em 1985. A ação ficou conhecida como Ciranda da Constituinte
Arquivo: Projeto Meninos e Meninas de Rua

Assista ao documentário Crianças Abandonadas – II Encontro Nacional de Meninos e Meninas de Rua / Brasília / 1989:


Crianças Abandonadas – II Encontro Nacional de Meninos e Meninas de Rua / Brasília / 1989

Bases legais do ECA

“O ECA não nasceu espontaneamente. Ele surgiu do vigor, da força e do combate dos movimentos sociais, que souberam se organizar e influenciar a Constituinte, e praticamente escrever, com as próprias mãos, os textos que hoje estão na Constituição Federal. Isso gerou a possibilidade de inclusive trazer uma legislação de infância – uma ideia, que naquela época era nova, de uma democracia completamente participativa”, explica Clilton Guimarães dos Santos, advogado, professor universitário e ex-procurador de justiça do Ministério Público de São Paulo.

Art. 227 – É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Constituição da República Federativa do Brasil (1988)

A Constituição Federal é a mãe do Estatuto da Criança e do Adolescente, mas essa nova concepção de infância e de sua prioridade absoluta não foi criada ali. Ela veio de legislações internacionais que já olhavam para a criança no sentido de seus direitos – como a Declaração dos Direitos da Criança (1959) e a Convenção sobre os Direitos da Criança (1989). O Brasil ratificou essa última em setembro de 1990.

“A Constituição trouxe uma filosofia nova, que contemplava uma perspectiva que era tão democrática quanto a própria sociedade pretendia ser”, defende Clilton.


Código de menores e a doutrina da situação irregular

Foi por trazer essa concepção de infância para a legislação brasileira – que ainda que já existisse no mundo, era nova no Brasil – que o ECA foi muito inovador.

Fotografia de Marília Rovaron, cientista social e coordenadora técnica do projeto Educação com Arte pelo CENPEC Educação.

Antigamente a criança era tida como um ‘adulto em miniatura’, sem dispor de um tratamento especial. Isso era muito cruel.

Marília Rovaron, cientista social e coordenadora técnica do projeto Educação com Arte pelo CENPEC Educação.

Antes do Estatuto, a legislação vigente era o Código de Menores, de 1979. Esse era, porém, o 2º Código de Menores, sendo o seu antecessor – também conhecido como Código Mello Mattos, em homenagem ao primeiro juiz de menores do Brasil – datado de 1927. Este foi o primeiro documento legal para a população menor de 18 anos.

Essa legislação refletia o contexto da época, de manter a ordem social. “O Código de Menores trazia uma carga autoritária muito forte no trato da criança e do adolescente, inclusive com juízos muito discriminatórios ao seu respeito, à medida que distinguia menores em situação irregular daqueles outros que assim não se encontravam, aprofundando as desigualdades e a discriminação”, explica Clilton.

Imagem de manifestação de crianças e adolescentes pelos seus direitos.
Reprodução: Oficina de imagens

Era essa a premissa da Política Nacional do Bem-Estar do Menor (PNBEM) e da Fundação Nacional de Bem-Estar do Menor (FUNABEM), que nos estados eram as FEBEMs (Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor). Uma política assistencialista e de aprisionamento daquelas crianças e adolescentes que eram consideradas deliquentes ou abandonadas, tratando-as como uma questão de segurança nacional – e por isso era objeto de muita denúncia e questionamentos, nos anos 70 e 80.


Uma legislação inovadora

Essa doutrina de situação irregular significava que apenas as crianças pobres, abandonadas ou delinquentes (ou seja, em situação irregular) eram objeto do Estado. Ou seja, não considerava o “menor” como uma criança com família, de classe média ou alta, por exemplo.

“A criança que estava pelas ruas, órfã ou que fora abandonada, era considerada como um possível ‘perigo’. Para o imaginário social, ela se tornaria ‘marginal’. E qualquer criança ou adolescente nessa condição de situação irregular era tutelada pelo Estado, que tinha sobre ela plenos poderes”, explica Marília. O ECA rompe com esse paradigma e traz a doutrina da proteção integral como base.

Fotografia de Clilton Guimarães dos Santos, advogado, professor universitário e ex-procurador de justiça do Ministério Público de São Paulo.

A doutrina da proteção integral é a antítese da doutrina da situação irregular. Primeiro porque ela não é uma doutrina conformista. Ela é transformativa, ou seja, crê no discurso jurídico como uma força capaz de gestar e gerar nova realidade. A doutrina da situação irregular não apenas conforma com a realidade da desigualdade, mas a aprofunda


Clilton Guimarães dos Santos, advogado, professor universitário e ex-procurador de justiça do Ministério Público de São Paulo

O Estatuto também reconhece as crianças e os adolescentes como sujeitos de direitos e de proteção, e não mais como objetos. O que também implica o dever do Estado, da família e da sociedade de atuarem como facilitadores desse desenvolvimento.

“Objeto significa submeter-se, não atuar-se, não opinar, não coparticipar. Daí falar-se que o ECA inaugura a fase da cidadania da criança e do adolescente, ao reconhecê-los como sujeitos de direito”, explica o advogado.


Ordenamentos jurídicos

Essa nova concepção traz todo um reordenamento jurídico para que esses direitos possam ser respeitados. As crianças passam, por exemplo, a ter direito a representação e defesa perante o juiz, e à convivência familiar e comunitária.

O ECA, mesmo 30 anos depois de sua aprovação, ainda é uma legislação bastante respeitada e admirada, tida como a mais avançada da área no mundo. A meu ver, isso se deve porque ela apreende as diferentes esferas que compõem o tratamento dispensado à criança e ao adolescente, marcando muito bem as políticas intersetoriais.

Marília Rovaron, cientista social e coordenadora técnica do projeto Educação com Arte pelo CENPEC Educação

O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), os conselhos municipais e estaduais, os conselhos tutelares, os fóruns, as áreas especializadas da Defensoria Pública e do Ministério Público são algumas das instâncias institucionais que garantem a promoção, a proteção e a defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes.

Art. 4º – É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.

Lei 8.069 de 13 de julho de 1990 – ECA

“O ECA é dividido em três eixos. O primário fala das garantias universais e tem caráter preventivo, ou seja, elenca as políticas que devem ser articuladas para que as crianças cresçam em plenas condições. O secundário, chamado de proteção especial (medidas protetivas), trata da criança que sofreu algum tipo de violência, seja da família, da comunidade etc. O terceiro fala das medidas socioeducativas, ou seja, dos adolescentes que infracionam”, explica Marília.

Outro ponto importante apontado por Marília Rovaron foi a questão da idade, considerando-se como criança aquele(a) com até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquele(a) entre doze e dezoito anos de idade.

Imagem de manifestação de crianças e adolescentes pelos seus direitos. À frente das pessoas que compõem a manifestação, crianças e adolescentes tocam instrumentos de percussão.
Reprodução: Oficina de imagens

O Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente (SGD) é definido na Resolução 113 do Conanda, e o Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente Vítima ou Testemunha de Violência foi regulamentado na Lei 13.431, de 04 de abril de 2017.

Para Markinhus, os avanços nos últimos 30 anos foram enormes, considerando “ganhos de salário mínimo, emprego, ampliação de acesso à escola e diminuição da mortalidade frente à desigualdade profunda que existe no Brasil”. Mas ele acredita que há desafios a serem enfrentados para que continuemos avançando daqui para frente.

“O ECA é uma lei progressista. O Estado Brasileiro, as instituições e a cultura brasileira, no entanto, são conservadoras. Então é como se nós tivéssemos sempre em uma eterna disputa sobre o modelo de sociedade que nós queremos para as nossas crianças”, diz o educador.

Acesse a linha do tempo sobre os direitos de crianças e adolescentes no site do Ministério Público do Paraná


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